Glauco Mattoso
O assobiador
Domingo. Churrasco no condomínio.
Atrás do jardim, num pátio cimentado que serve de playground à
molecadinha, a família mais festeira do prédio arma a churrasqueira
e os vizinhos aderem, trazendo a farofa, o vinagrete, a torta, a
maionese. Quem não faz comida traz cerveja. Inquilinos recentes,
pouco entrosados com os antigos moradores, geralmente não dão as
caras, exceto os poucos extrovertidos. Entre os antigos, um bancário
que mora sozinho no nono, que cumprimenta todo mundo e não incomoda
ninguém. Entre os novos, três universitários que montaram república
no sexto, que provocam reclamações à síndica mas souberam fazer
camaradagem e já são bem aceitos pela maioria.
Dois dos estudantes são magrelas, que
cursam biomédicas e logo ficarão gordos, quase tão gordos como o
gastroenterologista que trata da prisão de ventre do bancário,
prescrevendo-lhe rigorosa dieta de fibras enquanto ele, o gastro, se
empanturra de lingüiça toscana no mensal churrasco dum outro
condomínio que fica num bairro bem mais chique. Voltando aos
magrelas, têm por colega de república um balofinho que cursa exatas
e cujo negócio serão números e gráficos, de preferência ascendentes
como o estado permanente de seu membro fimosado feito bico de
chaleira. Os magrelas não são muito dados com a vizinhança, curtem
mais uma baderninha entre si ou com as respectivas garotas. Já o
balofo dá bola, notada e notoriamente para a síndica, uma balzaca
que enviuvou cedo porque o marido não deu bola para as recomendações
do cardiologista, este, por sinal, outro gordo que, no condomínio
horizontal do bairro das mansões ajardinadas, prefere a picanha e a
maminha nos churrascos bimestrais.
Naquele domingo o trio desceu com as
cervejas mas os magrelas logo puxaram papo com os poucos rapazes da
mesma idade e caíram fora assim que um deles sugeriu outro programa
mais esportivo. Ficou o balofo no meio dos casais maduros, posando
de contador de piada e brincando de pesquisador, coisa que sempre
dava certo em festinhas familiares. Improvisando uma prancheta num
caderno, entrevistava um ou outro homem e todas as mulheres. Cada
entrevistado era questionado conforme a cara e alguns dados prévios
que o balofo colhia do entrevistado anterior: E aquela que tá
arrumando a mesa? Que é que eu vou perguntar pra ela?
Munido de sugestões provocativas e
prevenido contra alguma gafe grave, o estudante se sentia autorizado
a todas as indiscrições desculpáveis num clima de descontração entre
adultos. E partia para cima de casadas, solteiras, separadas e
indecisas, interpelando-as precisamente sobre seu estado, além do
estado natal, do estado de espírito e dos segredos de estado. Quando
se acercou da síndica, tinha em volta alguns curiosos a mais que os
dois ou três interessados na enquete. Afinal, além de tomar conta do
edifício a balzaca já era popular na vizinhança pelos hábitos
compulsivos, tipo fumar um cigarro atrás do outro, checar sua
correspondência várias vezes ao dia mesmo sabendo que o carteiro só
passa uma vez, levar o cachorrinho para passear de madrugada, ler
instintivamente qualquer página de classificados ou quadro de
avisos, e manias inquietas que tais.
O estudante, que até então só
entretivera com ela papos amenos, embora percebendo-lhe um
sorrisinho permissivo entre uma tragada e outra, desta vez sentiu-se
mais à vontade para soltar seu balão de ensaio, apesar da platéia
mastigante e gargalhante.
O estudante: Dá licença de interromper
seu almoço? Eu sou do IBGE. Sabe o que é o IBGE?
A síndica: Instituto eu sei. O resto
já imagino. (Risos da assistência)
O estudante: Não, não é isso que você
tá pensando. É Instituto Bisbilhoteiro de Gente Elegante...
Apartes do público: Mentira! Pra mim
ele falou que era de Gente Estranha! Pra mim que era de Gente
Esquisita! Não, de Gente Engraçada!
A síndica: Vai ver que eu sou
diferente... (Risadinhas de puxa saquismo)
O estudante: Posso perguntar? Casada
ou descascada?
A síndica: Ih, tem gente que acha que
sou casca grossa! (Risos de sempre, que nem serão mais registrados)
O estudante: Verde ou madura?
A síndica: Madura, vai. Mas não
passada, né?
O estudante: Azeda ou doce?
A síndica: Doce só na hora certa...
O estudante: Tem caroço?
A síndica: Pouquinho. Mas dá pra
aproveitar.
O estudante: De comer, de chupar ou de
fazer suco?
A síndica: Pra todos os gostos.
O estudante: Cara ou barata?
A síndica: Depende da época.
O estudante: Vende na feira?
A síndica: Não, só encomendando.
O estudante: Tá em falta ou sobrando?
A síndica: Ah, anda em falta... Mas
duma hora pra outra pode sobrar... Questão de oferta e procura.
O estudante: Pra quem gosta sempre
tem, certo?
A síndica: Ah, quando o paladar é
exigente, sabe aproveitar de vários jeitos...
O estudante: Sabendo descascar, dá pra
comer?
A síndica: Dá até pra repetir e
acostumar...
A essa altura os aplausos cortam
providencialmente a entrevista e a síndica recebe alguns parabéns
pela presença de espírito (esportivo), enquanto o estudante,
dando-se por satisfeito com a perspectiva duma visita à quitanda,
agradece com seu cacoete que corrompe a expressão "Isso mesmo!"
tirando o S do "mesmo" e aumentando um S no "isso", o qual fica
comprido como o chiado duma válvula de panela de pressão: "Issso
memo!"
Preocupados em se servir e beber, os
curiosos dispersam em direção da fumaça. Poucos acompanham o
estudante quando este aborda as gêmeas solteironas do primeiro
andar, pois sabem que elas só respondem com acessos de riso e
daquela moita não sai coelho nem daquele galho sai fruta. Dali a
pouco, depois de mais umas mordidas e uns goles, o estudante,
seguido apenas de dois chatos que nem ele, cerca o bancário que já
se esquivara de outras investidas. Repertório parecido, e o
bancário, que teve tempo de estudar a situação dos demais
entrevistados, resolve adotar a tática da síndica e entrar no jogo
para sair inteiro.
O estudante: Mora só ou divide?
O bancário: Só divido se não duvido.
O estudante: Divide cama e mesa?
O bancário: Só mesa e cadeira.
O estudante: Come bem ou só faz uma
boquinha?
O bancário: Estou de dieta.
O estudante: Cenoura ou pepino?
O bancário: Laranja e manga.
O estudante: Sabe chupar bem?
O bancário: Não só chupar como
assobiar... e tudo ao mesmo tempo.
O estudante: Anda muito ocupado?
O bancário: Muito. Agora, por exemplo,
preciso urgentemente provar aquela torta de palmito. Até já!
O bancário escapa, os dois chatos
espectadores batem palma e o estudante repete seu fatal "Issso memo!".
Esgotadas as opções femininas e enquanto outras vizinhas ainda não
desceram, o pesquisador percebe que o bancário fez seu pratinho e
foi se sentar no banco de pedra ao fundo do pátio, donde acompanhava
furtivamente as entrevistas. Na primeira oportunidade, o estudante
vem com seu copo cheio e seu caderno, apóia o pé no mesmo banco,
escreve sobre a coxa e repuxa o papo com o bancário que o encara em
silêncio, mastigando para não precisar sorrir nem falar. Ante a
insistência do implicante e a momentânea ausência de testemunhas,
sente que chegou o momento de abrir a guarda.
Segue-se um diálogo em que, a cada
resposta, vai-se abrindo um sorriso descarado de parte a parte, de
quem finge fingir mas cuja vontade é a verdade e cuja verdade é a
vontade:
O estudante: Deixe eu confirmar uns
dados aqui... Quer dizer então que você assobia... mas chupa!
O bancário: Não só chupo como engulo.
O estudante, fazendo que anota: Engole
tudo?
O bancário, mantendo o tom de pilhéria
como para ver até onde o outro banca o gaiato: Tudo... pela metade.
O estudante: Não vai até o fim?
O bancário: Vou e volto, se precisar.
O estudante: Então por que metade, e
não tudo?
O bancário: Bom... Metade do que
entra... e tudo o que sai.
O estudante: E não dá pra entrar tudo?
O bancário: Melhor no capricho que no
sacrifício, né?
O estudante: "Issso memo!" Mas e se
não tiver escolha?
O bancário: Aí vai o que vier, e faço
o que puder.
O estudante: Sem reclamar?
O bancário: E sem espalhar, também.
O estudante, parando de anotar e
encarando o bancário sem desmontar o sorriso irônico: "Issso memo!"
É dum serviço assim que eu tava precisando. Não quer trabalhar pra
mim?
O bancário, sem desviar o olho mas a
pique de enrubescer: Quanto você paga?
O estudante, pressentindo a vitória
como num xeque-mate: Nada!
O bancário, no esperneio da derrota:
Mas aí já é trabalho escravo!
O estudante, triunfante: "Issso memo!"
O bancário, capitulando no tremor da
voz: Quando eu começo?
O estudante, recolhendo a prancheta e
afastando-se rápido para abordar outra vizinha que passa carregando
bandeja: Pode aguardar que ainda hoje eu interfono.
Embora faça questão de desobedecer ao
gastro, o bancário não aprecia carne mal-passada e tem pouco o que
comer ali. Feita a presencinha, sobe logo e, antes que escureça, já
se pôs a ouvir rock no fone para não importunar o casal de
aposentados do apê pegado. Já os festeiros ficam digerindo o alho em
roda do dentista que vira violonista nas horas vagas, e desafinam no
pouco que lembram de Beatles e festivais da Record até o fim da
tarde, como de hábito nessas domingueiras. Àquela altura o balofo
também já se recolheu e, antes de cair no cochilo, lembra de
interfonar ao bancário, que já esperava mas mostra-se pego de
surpresa. Como os magrelas também estão em casa, balofo e bancário
apenas trocam telefones para posterior e efetivo contato.
Ao fone, na outra noite, o estudante
pode se abrir sem que os colegas estejam por perto. Fica sabendo que
o bancário é experiente mas discreto a ponto de nunca ter tido
companhia masculina para um pernoite e de dificilmente receber
visitas noturnas. Mas no caso do estudante a coisa mudava, pois
bastaria usar o elevador num horário de pouco movimento. Os
encontros seriam marcados no apê do bancário, de cuja poltrona
favorita o estudante se apoderou para refestelar-se até que o
bancário se acostumasse a uma nova dieta, quase semanal, de carne
crua com direito a queijo, molho branco e gargarejos quentes, sem
sobremesa e animada por gargalhados palpites tipo "Issso memo!" como
trilha sonora das sessões de deglutição. Nada de palavras de afeto,
porém. O máximo de amabilidade que o bancário ouviu da boca
sardônica do estudante foi que a namorada deste não usava a boca com
tamanha manha e tanta garganta. Fora disso, só exigências de
capricho e sacrifício ao mesmo tempo.
Para a síndica o discurso foi inverso:
o estudante disse ter uma namorada boa de boca mas não tão gostosa
de cama como a balzaca, cujo apetite pedia bis ao coito tão
naturalmente como um segundo tempo se segue a uma preleção no
vestiário. Mas disso a síndica só ficou sabendo depois que os
encontros viraram rotina e depois que o estudante ganhou mais
confiança para vencer uma timidez que a própria viúva não imaginava
enquanto apenas fantasiava o rapaz em seu leito de casal, naquelas
posições tão extravagantes na hipótese e agora tão mecânicas na
prática. A fruta foi descascada horizontal e verticalmente, cortada
de largo e de comprido, comida pelo umbigo e pelo fundo, picada em
salada, batida em vitamina e espremida em suco. Ou antes, se
ofereceu à faca como o pregão do feirante, bastando ao estudante o
gesto cômodo de provar sem compromisso.
Ano seguinte, desmontada a república,
aquele apê do sexto passou a ser ocupado por um casal de pais com um
casal de filhos, desses bem pestinhas, e a síndica continuou tendo
motivo para reclamações. Poucos se lembravam, passados uns meses,
dos três universitários, mas quem mais fingia ter-se esquecido deles
era o bancário, que, quando perguntado casualmente pela síndica ao
se cruzarem no saguão, respondeu: Quem? Aqueles do sexto? Não sei,
quase não cruzava com eles no elevador. Meus horários eram
diferentes. Nem percebi que já tinham mudado. Comigo não deixaram
endereço, não. Por quê?
A síndica tirou o cigarro da boca,
soltou o ar num suspiro, disfarçando o nervosismo atrás da baforada,
e afetou indiferença ao comentar: Ah, pensei que aquele mais cheinho
era seu amigo. Tem correspondência pra ele que ficou comigo. Achei
que você tinha contato...
O bancário, que sabia muito bem da
mudança e achava que a síndica teria o contato do "cheinho", também
simulou desinteresse ao entrar no elevador: Não, não. Só sei que ele
costumava aparecer quando tinha churrasco...
Coincidência ou não, a família
festeira também logo se mudou e as churrascadas perderam a graça,
rareando até desaparecerem da rotina do condomínio. Aquele típico "Issso
memo!", cujo S sibilava como um assobio, ficou gravado na memória
auditiva dum grego e duma troiana ao mesmo tempo.
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