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Gerardo Mello Mourão
POESIA, POETA, POEMA
(Introdução a Dora Ferreira da Silva)
Remetido por
Iosito Aguiar
 
 

 A leitura – ou re-leitura – de Dora Ferreira da Silva, nas provas gráficas da edição de sua poesia reunida, é um privilégio e uma surpresa. O privilégio parece óbvio: a fortuna de contemplar um poeta na perspectiva tridimensional e até prismática de sua presença demiúrgica, da flor da adolescência à frutuosa maturidade de seu canto. Assim, na re-leitura estremecem o enigma e o estratagema da própria formação do poema permanente e fluvial de Dora, seu acontecimento heraclítico, sempre outro e sempre o mesmo, como no prodígio que vai formando a ninfa, a larva, a libélula, o vôo esperado da inesperada borboleta. A poesia aqui se infiltra e se produz em sua própria surpresa, na impressão de se estar lendo pela primeira vez tudo aquilo que a própria memória já guardava e já sabia. Por isso, queria Unamuno, toda leitura – sobretudo a re-leitura -  deve ser meticulosa. Meticulosa – no sentido etimológico, isto é, cheia de meticuli – pequenos medos, como se fôssemos entrar por caminhos perigosos, que a cada momento podem ser novos, podem estar sendo inventados ou re-inventados. A criação é a coisa do poeta, o demiurgo, o que faz a forma das coisas, das pessoas e dos lugares, formas que não se esgotam nunca porque sempre que as contemplamos, as encontramos de novo.  E são, assim, in-ventadas de novo ao nosso amoroso conhecimento. In-ventadas no sentido original da palavra:  invenire  significa achar, e inventio – invenção significa achamento.

 O oficial do ofício do ouro ou da prata deixa sempre na peça contrastada a marca da sua lavra. O poeta, fabbro do poema, deixa também, em cada verso, o contraste verificador da sua obra inteira. De certo modo, mesmo quando abandona os processos iniciais da expressão, do trato com a palavra e seus nexos, passando a buscar e inventar novas urgias (demi-urgias), o vero e mero poeta repete sempre seu primeiro poema. O sopro inaugural atravessa todo o opus poético. Em qualquer coletânea de poesias, as Fleurs du Mal, as Illuminations, a Saison en Enfer, os hinos, as elegias, os cantos de Baudelaire, Rimbaud, Hoelderlin, Rilke ou Leopardi, respectivamente, e mais perto no tempo, de Elliot, de Pound e assim por diante, cada verso é o fragmento, a frase musical de um mesmo e único poema e traz o contraste do quilate da peça inteiriça de ouro e prata nas sílabas lavradas. Hopkins já notava isso em seus próprios versos e nos de S. João da Cruz. Só os poetas autênticos sabem guardar esta identidade. E esta é a primeira impressão da re-leitura da obra reunida neste volume de Dora, com um texto musical que se estende de 1948 até 1998. Ela inventa uma frase musical, que repete incessantemente, na flauta incessante, em todos os tons.

 Já se disse que “ut pictura poesis”. A poesia se compõe como a pintura. E assim como os peritos identificam, mesmo sem a assinatura e sem documentos, um texto de cores e formas de Rembrandt, os que estão aderidos ao santo vício de ler poesia, identificam com freqüência um verso perdido ou encontrado inesperadamente, dos poetas a cuja voz se habituaram. Como se identifica até na corrupção sonora do telefone a voz de uma pessoa amiga. Assim é que se ouve sempre a mesma voz, nestas centenas de páginas, em que a poesia de Dora se implanta e se instaura como um indivíduo arquitetônico único, o mesmo da primeira à última página, em que o primeiro verso de Andanças (1948) – “vim rolando nas águas como pedra solta”- ressoa nos últimos versos do derradeiro canto (1997), em que o poema aparece também rolando “no conserto ou desconserto do mundo”.

 Por isto mesmo, será melhor dizer, não “ut pictura”,  mas “ut musica poesis”. O opus poético se compõe e se rege segundo a clave e a escala da partitura musical. A arte de escrever, prosa ou poesia, chamava-se antigamente Gramática. Os que praticavam o sagrado ofício de escrever eram chamados gramáticos, os que se ocupam do Grama, isto é, da letra – e é bom lembrar que as letras do alfabeto, a escritura, foram inventadas por um poeta, Linos, filho de Apolo com uma de suas musas. Pois a primeira, a mais antiga das Gramáticas do Ocidente, cem ou duzentos anos antes de nossa era, é a Gramática de Dionísio, o Trácio, que aponta, em seu primeiro capítulo, a leitura e a crítica da poesia como “a coisa mais difícil para o estudioso que trata com as letras”. E explica por que: - “porque a poesia é coisa de um sopro”. Ensina Descartes que é mais fácil entender o espírito do que o corpo. Um dia Deus soprou uma imagem de barro, e daí contornou-se o corpo de um homem. Outro Deus soprou uma vez uma flauta, e as serpentes e as pedras e os animais e as árvores, os homens e as mulheres começaram a aventura da dança no chão e no ar, o verbo infinitivo, o supino, o gerúndio e o gerundivo de formas, gestos, corpos que de si mesmos se incorporam e desincorporam. Não é difícil entender o sopro onipotente e genesíaco que parte de um deus, e é capaz de formar um corpo. O que é difícil é entender  a gema viva desse corpo. Como Orfeu, o poeta é o senhor do sopro, mas o corpo criado se desprende do mito criador, como a criança que se desprende do seio materno, na expressão de Rilke, e passa a ser a estrela viva de uma constelação inesperada, na galáxia a que se integra para sempre. Assim, o poema é a gema do mito, o mitologema. Este é o saber poético de Dora:
 
“... Não há maestro. Tudo segue o
    improvisado tema de uma gota de água de um grilo ou
                                                              das cigarras
  no fim da tarde. A natureza é sua carnação
 a alma seu módulo invisível e invenção...

........
... Um POEMA.”

 Nesse canto, que se intitula exatamente O POEMA, Dora traz à poesia de nosso tempo aquela clara e límpida voz que, como relembram sempre Michel Déguy, Godofredo Iommi e Edi Simons, o Musolepto – faz de Hoelderlin o poeta por excelência, “o poeta do poeta, o poeta do poema”. Ainda neste texto ((O POEMA) , epílogo do livro Poemas em Fuga, está dito, no primeiro verso, que “poema não ensina: é pedra, flor ar e terra / fogo, também, não escolhido mas colhido entre coisas de passagem / pelas mãos de um andarilho”.

I A. Richards, em seu temerário ensaio “How does a Poem Know When it is finished?” Lembra que o próprio poema, desde que é um Poema, tem consciência de si mesmo. E que, embora o poema não seja uma pessoa, a metáfora de sua consciência própria – o “self-conscious poem”  a que se refere Michael O’Neill – leva à sustentação de Coleridge, diante da Ode a uma Urna Grega, de que este poema “sabe mais do que Keats”.  Aqui, vale a pena sugerir que uma das famosas invenções de Heidegger pode ser audaciosamente diagramada tanto faz dizer que o ser é a morada da palavra, como entender que a palavra é a morada do ser. Pois, também o poema é a morada do Poeta, como o Poeta é a morada do Poema. E não se pode ungir o poeta com uma sagração maior do que esta de conhecer e re-conhecer, diante desta obra reunida de Dora Ferreira da Silva, que seu Poema sabe mais do que o Poeta. Sabe mais e vive mais. Pois o Poeta só há de durar enquanto dure seu Poema. E o Poema dura para sempre, para lá da história, quando o momento genesíaco que lhe deu a forma e a liberdade de seu corpo se situa também para lá da história, no regaço do mito, no território numinoso da aurora dos tempos e dos seres, quando os vivos saúdam os mortos e os mortos saúdam os vivos, e a vida e a morte se cantam no mesmo tom na viola d’amore do poeta.

O princípio da poesia, na aventura lírica de Dora, como em toda aventura poética, é o princípio da hospitalidade. “Le principe de la poésie est le principe de l’hospitalité (Michel Déguy). O Poeta é hóspede do Poema, e os dois são hóspedes e hospedeiros da Poesia. Como o Apolo Délfico, a Poesia e o Poeta não ensinam nada. Mas proferem o Oráculo, o Poema. Como a Pítia sagrada, o Poema – oráculo do Poeta e da Poesia – também não ensina. Faz mais do que isto: revela. E revela tudo, pois revela a Beleza. A Beleza é, então e finalmente, a coisa do Poeta, a coisa da Poesia, aquela “espressione riuscita” invocada por Croce, das coisas, dos lugares, das pessoas, das circunstâncias do espaço e do tempo. É certo que o conhecimento lógico, que se limita e se esgota na epiderme conceitual da realidade, não consegue pisar aquelas zonas medulares do conhecimento mágico, intuitivo, onde dorme a fremente beleza de todas as coisas vivas, rastro dos tempos aurorais do mito, esquecidos pela história, mas lembrados subitamente pelo meticuloso entusiasmo do Poeta, curador da memória genealógica da criação. A lembrança brota do esquecimento, pois, como advertia Platão, a gente só se lembra daquilo que esqueceu. O Poeta é o alquimista das alquimias da memória e ressuscita a beleza inaugural de todas as circunstâncias da vida. Assim é que para o homem aderido ao conhecimento conceitual, o encontro da beleza se circunscreve à aparência benevolente da fantasia hedonista. Mas o poeta vai buscar a beleza no fundo do mar, no oco do mundo, nas alamedas do Olimpo ou nos abismos do inferno. Ariosto proclama a beleza das feridas no peito dos guerreiros, o Dante canta a beleza do desfile dos condenados, como Virgílio canta a beleza do incêndio horroroso de Tróia e Shakespeare a beleza da ímpia morte dos amantes sepultados em vida. E assim por diante. Ninguém melhor que a alquimista Dora mostraria as belezas ocultas ao comum dos mortais, em momentos de inigualável conhecimento mágico, desde os primeiros cantos de Andanças e a suite pungente das Tapeçarias.

Como nas duas passagens de Hoelderlin, evocadas por Heidegger no pequeno e cristalino ensaio sobre a essência da poesia – a mais inocente e, ao mesmo tempo, a mais perigosa das ocupações – assim é a beleza. Certa vez, num encontro em Londres, Brancusi perguntou a Pound que buscava o poeta em seu trabalho. “Beauty”- respondeu o poeta. Procurava a Beleza, trabalhava a Beleza. Oficial do mesmo ofício, o famoso escultor rumeno fechou os olhos, sacudiu pensativamente a cabeça e disse: “Beauty is difficult”. A Beleza é difícil, a mais difícil das caças ousadas pelo “homo venator”, na cobiça litúrgica e sacramental que está dentro de todo ser que mamou em peito de mulher. A Beleza é difícil, mas é também a mais fácil das coisas. É a única coisa inconfundível que se pode achar no mundo. É impossível não a reconhecer nos breves cantos da suite órfica dos textos finais do último poema, deste livro, com o desfile das deusas, a Grande Mãe, as duas Artemis, Afrodite, Perséfone, Hécate, Tálida.

Talvez existam os trezentos e sessenta modos de escrever poesia, referidos por Kipling, lembrados até por T. S. Eliot. Essa suposta pluralidade não elide a natureza singular da Poesia, uma e única. Afinal, não sabemos muita coisa sobre a Poesia e sobre o próprio Poema que, como adverte Michael O’Neill, há de ser sempre uma metáfora, e ainda assim, com o risco de transformar-se num enigma. Mas isto basta para a alegria de encontrar a Poesia e o Poema ao longo da obra aqui reunida de Dora. Nosso século assistiu a uma salubre inquietação poética, da qual resultaram fecundas aberturas, mas também estéreis paroxismos e desvios erráticos, no campo das letras e das artes em geral. A lucidez de um dos maiores artistas contemporâneos, Picasso, em seu Segundo Manifesto, chamava a atenção para o risco que podia comprometer os protagonistas da renovação estética. Faziam-se pesquisas da mais alta qualidade, um grande número de artistas começava a divulgar e impor o esboço didático das pesquisas como obra conclusa. Começou a rarear o número de Poetas, artistas plásticos e músicos, substituídos por pesquisadores, nem sempre aparelhados, da linguagem poética, da linguagem plástica e da linguagem musical. De um modo geral, os Poetas em voga começam, bem ou mal, em nome de uma fé (para não dizer de uma doutrina, o que seria pior, como ocorreu com o grupo surrealista, que colocaria a Poesia a serviço da revolução, cuja figura mais coroada seria o poeta Aragon, levado no fim da vida a uma confissão melancólica: “eu perdi meu tempo”).

O que importa notar é que muitos dos contemporâneos – o que é uma pena – ignoram a advertência de Baudelaire, de que é preciso sempre e absolutamente “ser moderno”. Em vez disso, fazem questão de ser “modernistas”, o que é outra coisa. Ficaram enclausurados em suas experiências, no futurismo, no dadaísmo, no cubismo, no surrealismo, no ultraísmo, no construtivismo, no criacionismo, no concretismo, etc., etc., etc. Imolaram tudo ao processo. Mas a Poesia não se exaure no processo. Ela é uma forma, com “o” aberto, não uma fôrma com “ô” fechado. A fôrma, o molde, ‘’e exatamente a marca da composição morta, da composição acadêmica, que ignora a invenção e a liberdade próprias da Poesia de todos os tempos. A revolução da linguagem poética teve uma de suas palavras de ordem: a salutar advertência de Verlaine, de que é preciso torcer o pescoço da eloqüência. Muitos estão confundindo as coisas. Ouviram cantar o galo, mas não sabem onde. Passaram a torcer o pescoço do verso e da própria poesia. Em nome de uma concisão  buscada e rebuscada, cultivam uma espécie de desprezo intencional pela palavra, pelo sopro, pelo som, pelo ritmo e a mágica da sintaxe poética, num abuso tão grave como o que contra ela cometem os declamadores de versos. Não será fora de propósito lembrar que em recente debate sobre o panorama da nova poesia francesa, o caderno de letras do “Le Monde” verificava que os jovens poetas da língua proclamavam todos a restauração do grande verso sonoro, de tom claudeliano. E Robert Marteau, sumo poeta francês de nossos dias, invocava a voz de Claudel, como a mais alta e mais pura de seu tempo.

A poesia das línguas ocidentais nasceu da grande árvore poética dos gregos e dos romanos, com suas regras, seus cânones musicais e suas fugas, na medida dos ritmos e no tom das vogais sonoras, breves e longas, em que se ordenavam os hexâmetros de Homero e Virgílio, os pentâmetros de Horácio, os pés regidos pela dança e regentes da dança, nos tempos silábicos singelos ou complexos, do jambo, do troqueu, do espondeu, do dáctilo, do anapesto, do crético e do coriambo. Essa medida greco-latina por sílabas breves e longas, foi mantida pela poesia inglesa e pela poesia alemã, até nossos dias, e está presente no ritmo interior dos poetas mais avançados, mesmo quando usam versos de metros inumeráveis e díspares, como Pound, Auden ou Eliot. A Poesia das línguas latinas abandonou os processos métricos greco-romanos, mantendo padrões que se escandem sob a regência de sílabas átonas e tônicas. Mesmo assim, nas oitavas camoneanas, nos tercetos de Dante, como nos alexandrinos franceses e nos decassílabos de Góngora, como nos poetas de nossos dias, o “connoisseur” de ritmos e de tons melódicos, pode descobrir a presença da harmonia ordenada e escandida do verso grego e latino. Na poesia portuguesa, esta presença pode ser marcada, ao compasso da dança, em qualquer poema de Fernando Pessoa, de José Régio, Sá Carneiro e de todos. Assim também no Brasil, na poesia dos mestres-cantores, que aqui não se mencionam, para evitar omissões. Enganam-se, assim, os que supõem que a poesia moderna suprimiu o ritmo e o som. Ao contrário, como anunciava um deles, ela adotou “todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis”.

Toda escritura é feita para ser lida. Toda escritura tem seu tom, seu som. Santo Agostinho chegou um dia ao gabinete do doutor Santo Ambrósio, que lia uns salmos sem mover os lábios. Agostinho ficou atônito:  este não é o modo fiel e saudável de fazer uma leitura. Para ler fecundamente, é preciso ir pronunciando as palavras que, mesmo num murmúrio,  devem ter seu som e sua aparição nos lábios aflitos ou felizes. Já lembrei, certa vez, em carta à própria Dora, a anedota de Borges e Roger Caillois. Reencontraram-se um dia em Buenos Aires, já idosos. Caillois, que vinha do surrealismo francês, estranhou a Poesia que Borges vinha escrevendo nos últimos tempos. E estranhou porque Borges, era, anos antes, protagonista do ultraísmo espanhol. Borges explicou-se: “é que eu evoluí”. – “Evoluiu como?”- “Evoluí para Boileau”. Apesar das dimensões da poesia do velho clássico francês, e apesar da nota de humor desse diálogo precioso, evoluir para Boileau, seria evoluir para Homero, para Virgílio, para o Dante. É ainda da sabedoria de Borges a observação de que a poesia “é, especialmente, seu tom”. Su tono. Na verdade, quando lemos Hoelderlin, parece que ouvimos o tom da sua voz. Todo poeta acredita conhecer o tom da voz de Rilke. E assim de Baudelaire. E assim de Rimbaud. Mas ninguém conhece a voz dos fazedores de versos falsos. Eles ficaram afônicos ao ancorarem nalgum dos “ismos” oportunos a seu tempo. Precisam evoluir como Borges. “Hacia Boileau”. Pois, como dizia o grande poeta português Miguel Torga, “está a faltar-lhes o tom”.

O Poema de Dora sustenta seu próprio tom  do princípio ao fim. Não porque seja elaborado e escandido segundo as regras dos compêndios de Arte Poética. Não adianta aprender as regras, se é que as há, rigorosamente, como querem os fundamentalistas. O ritmo está mesmo é no sopro do Poeta. Mas, assim como o músico que sabe apenas tocar de ouvido, e não consegue, só com a graça de seus recursos naturais, elevar-se à partitura do “opus” bachiano ou mozartiano, o Poeta de ofício precisa, para a lavra e o lavor do Poema duradouro, cultivar também os caprichos de sua matéria-prima – a palavra e seu jogo dentro de uma sintaxe lírica especial. Aí se identifica, por exemplo, a grandeza revolucionária de Baudelaire, talvez o primeiro grande Poeta “moderno” de sua língua. Dele disse Thibaudet que “Baudelaire escrevia a poesia de Sainte-Beuve, mais a Poesia. Alguns sabem a poesia de Sainte-Beuve – ou de Croce, ou de Horácio – mas não sabem a Poesia propriamente dita. Outros sabem a Poesia, mas não sabem a poesia de Sainte-Beuve. Tocam de ouvido, mas não alcançam a grande música. Dora Ferreira da Silva da o tom da Poesia, o seu tom, mais o tom da poesia elaborada, com a sabedoria aprendida, com os que foram ensinados ao trato das uvas no lagar, para o religioso fermento do vinho nobre nas dornas silenciosas. Isto fica claro, vivamente, quando alguns de seus poemas visitam a música e a pintura (Satie, Mahler, etc.) “Le parfum, la couleur et le son se répondent”. Seus poemas sempre respondem com palavras a todos os sentidos. Por que não o sabor?  O bruxo José Lezama Lima lembra que a poesia de Keats é um pêssego. O pêssego responde ao tato, ao sabor, ao perfume e à forma que lhes são herentes e in-herentes. E Raul Young queria, segundo as leis de Efrain Tomás, que o corpo do Poema fosse como o corpo do homem e da mulher na leitura erótica e agônica do tálamo: flexível e maduro, banhado por luares de lâmpadas mudas e aromas estudiosamente aveludados na pele,  ao murmúrio de vozes moribundas. Isto não quer dizer que devamos – e até não podemos – cometer o incesto de re-produzir em palavras e cor, as linhas de um quadro e o som de uma sonata. Mallarmé reagiu com desgosto, e até com indignação, à tentativa de musicalização de “L’après-midi d’un Faune”. 

Dora freqüenta, com devoção romeira, os lugares sagrados da Grécia. É um hábito, talvez uma segunda natureza de todos os que têm o vício egrégio de conviver com mitos, com a circunstância inaugural daquele mundo vicioso (vicioso, no sentido quinhentista da palavra, isto é, abundante), vicioso de ninfas e de fontes, de deuses e de musas. O cubano Lezama Lima lembra que Goethe, o mais “moderno” dos alemães e dos europeus de seu tempo, partiu certa vez para uma peregrinação a Assis. Queria orar e meditar nos lugares sagrados do Poverello Francisco e de Santa Clara. A meio caminho encontrou-se com as ruínas de um velho templo etrusco de Minerva – a Pallas de Atenas, a padroeira dos tocadores de flauta – interrompeu a viagem e ficou ali durante dois dois dias em oração fervorosa à deusa de olhos garços. Como o Poema, a Grécia é hóspede e hospedeira permanente do Poeta. Para nosso mundo ocidental helênico-judáico-cristão, de seus montes, de suas grutas, da espuma de suas ondas nas praias de Poseidon, veio o primeiro canto que aprendemos no grande Poema inaugural de Hesíodo, que canta os tempos aurorais em que os deuses e deusas viviam no meio dos homens e com eles se confundiam suas próprias linhagens familiares, no leito das Musas e dos pastores que sabiam soprar a avena de cinco furos. Por isso, o primeiro verso da cantata pastoral de Hesíodo, o mais antigo dos que nos restam do mundo grego, começa com convite irresistível a todos os Poetas: “antes de qualquer outra coisa, vamos cantar as musas helicônias”. É ali que a Poesia recebe a sagrada semente no útero sagrado em que o Poema assume forma e expressão: aquele negócio de Zenon de Eléia, para quem o Poema é o “Logos”, e o “Logos” é a beleza. Esta beleza tem, ensina o eleata, uma dimensão, um “metros”. A repetição do “Logos”, uma palavra, mais outra, mais outra e mais outra, gera a configuração do “Pachos” – palavra que significa “espessura”. Esta espessura configura a forma e a expressão da Beleza, as palavras, uma atrás da outra, sobre a outra, debaixo da outra, com uma força dominadora, destruindo para construir, na ânsia da grande ternura genesíaca. A ternura da flor que se destrói para consumar o fruto. A Poesia de Dora alcança o “corpus” do Poema exatamente assim, neste rito eleata da dimensão e da espessura da palavra.

Já se disse que a pintura é o “landscape”, a paisagem, enquanto a poesia é o “in-scape”.  A palavra  “in-scape” foi introduzida na Poesia inglesa por Gerard Manley Hopkins, consumando a expressão, a medida do ser, no momento em que o homo  se ergue no humus da gruta bendita para ser forma. Klee, sob a grande influência de Heidegger, queria isto de sua arte, não ser um produto, mas uma expressão genesíaca. Nestes tempos indigentes em que a deficiência ou a depravação do saber se tornou incapaz do conhecimento mágico, quando a cultura vai sendo tratada como uma “indústria”, o Poema e a obra de arte em geral começam a ser destituídos da taumaturgia e da demiurgia de sua origem erótica, no leito de folhas ou de areia em que os deuses se entregavam às ninfas e às musas, e os pastores de abelhas ou de ovelhas seduziam com o canto de sua flauta as deusas peregrinantes. Naquele tempo, as fêmeas dos bosques e das ondas arrastavam com sua voz os homens inocentes para a prática do milagre e da mágica em que se criava um momento de beleza. Hoje, já são poucos os que ainda cultivam, como uma religião secreta, um mistério órfico, a mágica de criar a beleza, o Poema, que dura para sempre. Os tempos corruptos empenham-se em “fabricar” a Beleza apenas como um “produto cultural”.

Mas estas notas não são um texto crítico. Muito menos um texto de crítica acadêmica ou ortodoxa. O poeta que as redige não é um crítico de ofício. Não dispões do equipamento laboratorial de que se servem os críticos de ofício para o exame de uma obra como esta, do volume de Poesias Reunidas de Dora Ferreira da Silva. Outros escritores, estes sim, críticos competentes já o fizeram, e aqui mesmo, no final dos textos poéticos, estão os ensaios críticos de escritores como Euríalo Canabrava, Vilem Flusser, Gilberto de Melo Kujavski, o saudoso Nogueira Moutinho, Constança Marcondes César, Cassiano Ricardo e José Paulo Paes, além de uma carta comovida de Agostinho da Silva, profeta de nossa língua e de nossos reinos e impérios. Como se vê, uma fortuna crítica que não é pequena. Para Agostinho da Silva, a poesia de Dora, ao mesmo tempo em que exige o relatório de um crítico de gênio, suportaria também o testemunho de um poeta. É este testemunho que me atrevo a trazer aqui, resultado de um convívio demoroso com esta Poesia única na literatura de nossa língua e na literatura contemporânea de qualquer outra língua. Não é, pois, um ensaio, muito menos um ensaio crítico, que deveria selecionar e citar versos, referir livros e datas e dar conta das traduções exemplares a que a autora se dedicou, de Hoelderlin a Rilke, a Lawrence, nomes em cuja linhagem lírica se inscreve seu próprio nome. Todos sabem como são fúteis e provincianas as dimensões de grandeza comparativa com que às vezes se qualificam os escritores. Mas uma coisa parece certa: não há e não houve neste país mulher alguma de presença tão viva e de vos tão alta, na história de nossa escritura poética e de nossa escritura em geral, como Dora Ferreira da Silva. E não falo de homens, porque diante destes poemas, não se pode falar senão da Musa propriamente dita. E assim como aqueles foram os funerais de Heitor, esta é a introdução ao poema de Dora, com o temor e o tremor dos olhos e dos ouvidos “doroleptos” para sempre.     


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