Gerardo Mello Mourão
POESIA, POETA, POEMA
(Introdução
a Dora Ferreira da Silva)
Remetido por
Iosito Aguiar
A leitura – ou re-leitura
– de Dora Ferreira da Silva, nas provas gráficas da edição
de sua poesia reunida, é um privilégio e uma surpresa. O
privilégio parece óbvio: a fortuna de contemplar um poeta
na perspectiva tridimensional e até prismática de sua presença
demiúrgica, da flor da adolescência à frutuosa maturidade
de seu canto. Assim, na re-leitura estremecem o enigma e o estratagema
da própria formação do poema permanente e fluvial
de Dora, seu acontecimento heraclítico, sempre outro e sempre o
mesmo, como no prodígio que vai formando a ninfa, a larva, a libélula,
o vôo esperado da inesperada borboleta. A poesia aqui se infiltra
e se produz em sua própria surpresa, na impressão de se estar
lendo pela primeira vez tudo aquilo que a própria memória
já guardava e já sabia. Por isso, queria Unamuno, toda leitura
– sobretudo a re-leitura - deve ser meticulosa. Meticulosa – no sentido
etimológico, isto é, cheia de meticuli – pequenos medos,
como se fôssemos entrar por caminhos perigosos, que a cada momento
podem ser novos, podem estar sendo inventados ou re-inventados. A criação
é a coisa do poeta, o demiurgo, o que faz a forma das coisas, das
pessoas e dos lugares, formas que não se esgotam nunca porque sempre
que as contemplamos, as encontramos de novo. E são, assim,
in-ventadas de novo ao nosso amoroso conhecimento. In-ventadas no sentido
original da palavra: invenire significa achar, e inventio –
invenção significa achamento.
O oficial do ofício
do ouro ou da prata deixa sempre na peça contrastada a marca da
sua lavra. O poeta, fabbro do poema, deixa também, em cada verso,
o contraste verificador da sua obra inteira. De certo modo, mesmo quando
abandona os processos iniciais da expressão, do trato com a palavra
e seus nexos, passando a buscar e inventar novas urgias (demi-urgias),
o vero e mero poeta repete sempre seu primeiro poema. O sopro inaugural
atravessa todo o opus poético. Em qualquer coletânea de poesias,
as Fleurs du Mal, as Illuminations, a Saison en Enfer, os hinos, as elegias,
os cantos de Baudelaire, Rimbaud, Hoelderlin, Rilke ou Leopardi, respectivamente,
e mais perto no tempo, de Elliot, de Pound e assim por diante, cada verso
é o fragmento, a frase musical de um mesmo e único poema
e traz o contraste do quilate da peça inteiriça de ouro e
prata nas sílabas lavradas. Hopkins já notava isso em seus
próprios versos e nos de S. João da Cruz. Só os poetas
autênticos sabem guardar esta identidade. E esta é a primeira
impressão da re-leitura da obra reunida neste volume de Dora, com
um texto musical que se estende de 1948 até 1998. Ela inventa uma
frase musical, que repete incessantemente, na flauta incessante, em todos
os tons.
Já se disse
que “ut pictura poesis”. A poesia se compõe como a pintura. E assim
como os peritos identificam, mesmo sem a assinatura e sem documentos, um
texto de cores e formas de Rembrandt, os que estão aderidos ao santo
vício de ler poesia, identificam com freqüência um verso
perdido ou encontrado inesperadamente, dos poetas a cuja voz se habituaram.
Como se identifica até na corrupção sonora do telefone
a voz de uma pessoa amiga. Assim é que se ouve sempre a mesma voz,
nestas centenas de páginas, em que a poesia de Dora se implanta
e se instaura como um indivíduo arquitetônico único,
o mesmo da primeira à última página, em que o primeiro
verso de Andanças (1948) – “vim rolando nas águas como pedra
solta”- ressoa nos últimos versos do derradeiro canto (1997), em
que o poema aparece também rolando “no conserto ou desconserto do
mundo”.
Por isto mesmo, será
melhor dizer, não “ut pictura”, mas “ut musica poesis”. O
opus poético se compõe e se rege segundo a clave e a escala
da partitura musical. A arte de escrever, prosa ou poesia, chamava-se antigamente
Gramática. Os que praticavam o sagrado ofício de escrever
eram chamados gramáticos, os que se ocupam do Grama, isto é,
da letra – e é bom lembrar que as letras do alfabeto, a escritura,
foram inventadas por um poeta, Linos, filho de Apolo com uma de suas musas.
Pois a primeira, a mais antiga das Gramáticas do Ocidente, cem ou
duzentos anos antes de nossa era, é a Gramática de Dionísio,
o Trácio, que aponta, em seu primeiro capítulo, a leitura
e a crítica da poesia como “a coisa mais difícil para o estudioso
que trata com as letras”. E explica por que: - “porque a poesia é
coisa de um sopro”. Ensina Descartes que é mais fácil entender
o espírito do que o corpo. Um dia Deus soprou uma imagem de barro,
e daí contornou-se o corpo de um homem. Outro Deus soprou uma vez
uma flauta, e as serpentes e as pedras e os animais e as árvores,
os homens e as mulheres começaram a aventura da dança no
chão e no ar, o verbo infinitivo, o supino, o gerúndio e
o gerundivo de formas, gestos, corpos que de si mesmos se incorporam e
desincorporam. Não é difícil entender o sopro onipotente
e genesíaco que parte de um deus, e é capaz de formar um
corpo. O que é difícil é entender a gema viva
desse corpo. Como Orfeu, o poeta é o senhor do sopro, mas o corpo
criado se desprende do mito criador, como a criança que se desprende
do seio materno, na expressão de Rilke, e passa a ser a estrela
viva de uma constelação inesperada, na galáxia a que
se integra para sempre. Assim, o poema é a gema do mito, o mitologema.
Este é o saber poético de Dora:
“... Não há
maestro. Tudo segue o
improvisado
tema de uma gota de água de um grilo ou
das cigarras
no fim da tarde.
A natureza é sua carnação
a alma seu módulo
invisível e invenção...
........
... Um POEMA.”
Nesse canto, que se
intitula exatamente O POEMA, Dora traz à poesia de nosso tempo aquela
clara e límpida voz que, como relembram sempre Michel Déguy,
Godofredo Iommi e Edi Simons, o Musolepto – faz de Hoelderlin o poeta por
excelência, “o poeta do poeta, o poeta do poema”. Ainda neste texto
((O POEMA) , epílogo do livro Poemas em Fuga, está dito,
no primeiro verso, que “poema não ensina: é pedra, flor ar
e terra / fogo, também, não escolhido mas colhido entre coisas
de passagem / pelas mãos de um andarilho”.
I A. Richards, em seu temerário
ensaio “How does a Poem Know When it is finished?” Lembra que o próprio
poema, desde que é um Poema, tem consciência de si mesmo.
E que, embora o poema não seja uma pessoa, a metáfora de
sua consciência própria – o “self-conscious poem” a
que se refere Michael O’Neill – leva à sustentação
de Coleridge, diante da Ode a uma Urna Grega, de que este poema “sabe mais
do que Keats”. Aqui, vale a pena sugerir que uma das famosas invenções
de Heidegger pode ser audaciosamente diagramada tanto faz dizer que o ser
é a morada da palavra, como entender que a palavra é a morada
do ser. Pois, também o poema é a morada do Poeta, como o
Poeta é a morada do Poema. E não se pode ungir o poeta com
uma sagração maior do que esta de conhecer e re-conhecer,
diante desta obra reunida de Dora Ferreira da Silva, que seu Poema sabe
mais do que o Poeta. Sabe mais e vive mais. Pois o Poeta só há
de durar enquanto dure seu Poema. E o Poema dura para sempre, para lá
da história, quando o momento genesíaco que lhe deu a forma
e a liberdade de seu corpo se situa também para lá da história,
no regaço do mito, no território numinoso da aurora dos tempos
e dos seres, quando os vivos saúdam os mortos e os mortos saúdam
os vivos, e a vida e a morte se cantam no mesmo tom na viola d’amore do
poeta.
O princípio da poesia,
na aventura lírica de Dora, como em toda aventura poética,
é o princípio da hospitalidade. “Le principe de la poésie
est le principe de l’hospitalité (Michel Déguy). O Poeta
é hóspede do Poema, e os dois são hóspedes
e hospedeiros da Poesia. Como o Apolo Délfico, a Poesia e o Poeta
não ensinam nada. Mas proferem o Oráculo, o Poema. Como a
Pítia sagrada, o Poema – oráculo do Poeta e da Poesia – também
não ensina. Faz mais do que isto: revela. E revela tudo, pois revela
a Beleza. A Beleza é, então e finalmente, a coisa do Poeta,
a coisa da Poesia, aquela “espressione riuscita” invocada por Croce, das
coisas, dos lugares, das pessoas, das circunstâncias do espaço
e do tempo. É certo que o conhecimento lógico, que se limita
e se esgota na epiderme conceitual da realidade, não consegue pisar
aquelas zonas medulares do conhecimento mágico, intuitivo, onde
dorme a fremente beleza de todas as coisas vivas, rastro dos tempos aurorais
do mito, esquecidos pela história, mas lembrados subitamente pelo
meticuloso entusiasmo do Poeta, curador da memória genealógica
da criação. A lembrança brota do esquecimento, pois,
como advertia Platão, a gente só se lembra daquilo que esqueceu.
O Poeta é o alquimista das alquimias da memória e ressuscita
a beleza inaugural de todas as circunstâncias da vida. Assim é
que para o homem aderido ao conhecimento conceitual, o encontro da beleza
se circunscreve à aparência benevolente da fantasia hedonista.
Mas o poeta vai buscar a beleza no fundo do mar, no oco do mundo, nas alamedas
do Olimpo ou nos abismos do inferno. Ariosto proclama a beleza das feridas
no peito dos guerreiros, o Dante canta a beleza do desfile dos condenados,
como Virgílio canta a beleza do incêndio horroroso de Tróia
e Shakespeare a beleza da ímpia morte dos amantes sepultados em
vida. E assim por diante. Ninguém melhor que a alquimista Dora mostraria
as belezas ocultas ao comum dos mortais, em momentos de inigualável
conhecimento mágico, desde os primeiros cantos de Andanças
e a suite pungente das Tapeçarias.
Como nas duas passagens de
Hoelderlin, evocadas por Heidegger no pequeno e cristalino ensaio sobre
a essência da poesia – a mais inocente e, ao mesmo tempo, a mais
perigosa das ocupações – assim é a beleza. Certa vez,
num encontro em Londres, Brancusi perguntou a Pound que buscava o poeta
em seu trabalho. “Beauty”- respondeu o poeta. Procurava a Beleza, trabalhava
a Beleza. Oficial do mesmo ofício, o famoso escultor rumeno fechou
os olhos, sacudiu pensativamente a cabeça e disse: “Beauty is difficult”.
A Beleza é difícil, a mais difícil das caças
ousadas pelo “homo venator”, na cobiça litúrgica e sacramental
que está dentro de todo ser que mamou em peito de mulher. A Beleza
é difícil, mas é também a mais fácil
das coisas. É a única coisa inconfundível que se pode
achar no mundo. É impossível não a reconhecer nos
breves cantos da suite órfica dos textos finais do último
poema, deste livro, com o desfile das deusas, a Grande Mãe, as duas
Artemis, Afrodite, Perséfone, Hécate, Tálida.
Talvez existam os trezentos
e sessenta modos de escrever poesia, referidos por Kipling, lembrados até
por T. S. Eliot. Essa suposta pluralidade não elide a natureza singular
da Poesia, uma e única. Afinal, não sabemos muita coisa sobre
a Poesia e sobre o próprio Poema que, como adverte Michael O’Neill,
há de ser sempre uma metáfora, e ainda assim, com o risco
de transformar-se num enigma. Mas isto basta para a alegria de encontrar
a Poesia e o Poema ao longo da obra aqui reunida de Dora. Nosso século
assistiu a uma salubre inquietação poética, da qual
resultaram fecundas aberturas, mas também estéreis paroxismos
e desvios erráticos, no campo das letras e das artes em geral. A
lucidez de um dos maiores artistas contemporâneos, Picasso, em seu
Segundo Manifesto, chamava a atenção para o risco que podia
comprometer os protagonistas da renovação estética.
Faziam-se pesquisas da mais alta qualidade, um grande número de
artistas começava a divulgar e impor o esboço didático
das pesquisas como obra conclusa. Começou a rarear o número
de Poetas, artistas plásticos e músicos, substituídos
por pesquisadores, nem sempre aparelhados, da linguagem poética,
da linguagem plástica e da linguagem musical. De um modo geral,
os Poetas em voga começam, bem ou mal, em nome de uma fé
(para não dizer de uma doutrina, o que seria pior, como ocorreu
com o grupo surrealista, que colocaria a Poesia a serviço da revolução,
cuja figura mais coroada seria o poeta Aragon, levado no fim da vida a
uma confissão melancólica: “eu perdi meu tempo”).
O que importa notar é
que muitos dos contemporâneos – o que é uma pena – ignoram
a advertência de Baudelaire, de que é preciso sempre e absolutamente
“ser moderno”. Em vez disso, fazem questão de ser “modernistas”,
o que é outra coisa. Ficaram enclausurados em suas experiências,
no futurismo, no dadaísmo, no cubismo, no surrealismo, no ultraísmo,
no construtivismo, no criacionismo, no concretismo, etc., etc., etc. Imolaram
tudo ao processo. Mas a Poesia não se exaure no processo. Ela é
uma forma, com “o” aberto, não uma fôrma com “ô” fechado.
A fôrma, o molde, ‘’e exatamente a marca da composição
morta, da composição acadêmica, que ignora a invenção
e a liberdade próprias da Poesia de todos os tempos. A revolução
da linguagem poética teve uma de suas palavras de ordem: a salutar
advertência de Verlaine, de que é preciso torcer o pescoço
da eloqüência. Muitos estão confundindo as coisas. Ouviram
cantar o galo, mas não sabem onde. Passaram a torcer o pescoço
do verso e da própria poesia. Em nome de uma concisão
buscada e rebuscada, cultivam uma espécie de desprezo intencional
pela palavra, pelo sopro, pelo som, pelo ritmo e a mágica da sintaxe
poética, num abuso tão grave como o que contra ela cometem
os declamadores de versos. Não será fora de propósito
lembrar que em recente debate sobre o panorama da nova poesia francesa,
o caderno de letras do “Le Monde” verificava que os jovens poetas da língua
proclamavam todos a restauração do grande verso sonoro, de
tom claudeliano. E Robert Marteau, sumo poeta francês de nossos dias,
invocava a voz de Claudel, como a mais alta e mais pura de seu tempo.
A poesia das línguas
ocidentais nasceu da grande árvore poética dos gregos e dos
romanos, com suas regras, seus cânones musicais e suas fugas, na
medida dos ritmos e no tom das vogais sonoras, breves e longas, em que
se ordenavam os hexâmetros de Homero e Virgílio, os pentâmetros
de Horácio, os pés regidos pela dança e regentes da
dança, nos tempos silábicos singelos ou complexos, do jambo,
do troqueu, do espondeu, do dáctilo, do anapesto, do crético
e do coriambo. Essa medida greco-latina por sílabas breves e longas,
foi mantida pela poesia inglesa e pela poesia alemã, até
nossos dias, e está presente no ritmo interior dos poetas mais avançados,
mesmo quando usam versos de metros inumeráveis e díspares,
como Pound, Auden ou Eliot. A Poesia das línguas latinas abandonou
os processos métricos greco-romanos, mantendo padrões que
se escandem sob a regência de sílabas átonas e tônicas.
Mesmo assim, nas oitavas camoneanas, nos tercetos de Dante, como nos alexandrinos
franceses e nos decassílabos de Góngora, como nos poetas
de nossos dias, o “connoisseur” de ritmos e de tons melódicos, pode
descobrir a presença da harmonia ordenada e escandida do verso grego
e latino. Na poesia portuguesa, esta presença pode ser marcada,
ao compasso da dança, em qualquer poema de Fernando Pessoa, de José
Régio, Sá Carneiro e de todos. Assim também no Brasil,
na poesia dos mestres-cantores, que aqui não se mencionam, para
evitar omissões. Enganam-se, assim, os que supõem que a poesia
moderna suprimiu o ritmo e o som. Ao contrário, como anunciava um
deles, ela adotou “todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis”.
Toda escritura é feita
para ser lida. Toda escritura tem seu tom, seu som. Santo Agostinho chegou
um dia ao gabinete do doutor Santo Ambrósio, que lia uns salmos
sem mover os lábios. Agostinho ficou atônito: este não
é o modo fiel e saudável de fazer uma leitura. Para ler fecundamente,
é preciso ir pronunciando as palavras que, mesmo num murmúrio,
devem ter seu som e sua aparição nos lábios aflitos
ou felizes. Já lembrei, certa vez, em carta à própria
Dora, a anedota de Borges e Roger Caillois. Reencontraram-se um dia em
Buenos Aires, já idosos. Caillois, que vinha do surrealismo francês,
estranhou a Poesia que Borges vinha escrevendo nos últimos tempos.
E estranhou porque Borges, era, anos antes, protagonista do ultraísmo
espanhol. Borges explicou-se: “é que eu evoluí”. – “Evoluiu
como?”- “Evoluí para Boileau”. Apesar das dimensões da poesia
do velho clássico francês, e apesar da nota de humor desse
diálogo precioso, evoluir para Boileau, seria evoluir para Homero,
para Virgílio, para o Dante. É ainda da sabedoria de Borges
a observação de que a poesia “é, especialmente, seu
tom”. Su tono. Na verdade, quando lemos Hoelderlin, parece que ouvimos
o tom da sua voz. Todo poeta acredita conhecer o tom da voz de Rilke. E
assim de Baudelaire. E assim de Rimbaud. Mas ninguém conhece a voz
dos fazedores de versos falsos. Eles ficaram afônicos ao ancorarem
nalgum dos “ismos” oportunos a seu tempo. Precisam evoluir como Borges.
“Hacia Boileau”. Pois, como dizia o grande poeta português Miguel
Torga, “está a faltar-lhes o tom”.
O Poema de Dora sustenta
seu próprio tom do princípio ao fim. Não porque
seja elaborado e escandido segundo as regras dos compêndios de Arte
Poética. Não adianta aprender as regras, se é que
as há, rigorosamente, como querem os fundamentalistas. O ritmo está
mesmo é no sopro do Poeta. Mas, assim como o músico que sabe
apenas tocar de ouvido, e não consegue, só com a graça
de seus recursos naturais, elevar-se à partitura do “opus” bachiano
ou mozartiano, o Poeta de ofício precisa, para a lavra e o lavor
do Poema duradouro, cultivar também os caprichos de sua matéria-prima
– a palavra e seu jogo dentro de uma sintaxe lírica especial. Aí
se identifica, por exemplo, a grandeza revolucionária de Baudelaire,
talvez o primeiro grande Poeta “moderno” de sua língua. Dele disse
Thibaudet que “Baudelaire escrevia a poesia de Sainte-Beuve, mais a Poesia.
Alguns sabem a poesia de Sainte-Beuve – ou de Croce, ou de Horácio
– mas não sabem a Poesia propriamente dita. Outros sabem a Poesia,
mas não sabem a poesia de Sainte-Beuve. Tocam de ouvido, mas não
alcançam a grande música. Dora Ferreira da Silva da o tom
da Poesia, o seu tom, mais o tom da poesia elaborada, com a sabedoria aprendida,
com os que foram ensinados ao trato das uvas no lagar, para o religioso
fermento do vinho nobre nas dornas silenciosas. Isto fica claro, vivamente,
quando alguns de seus poemas visitam a música e a pintura (Satie,
Mahler, etc.) “Le parfum, la couleur et le son se répondent”. Seus
poemas sempre respondem com palavras a todos os sentidos. Por que não
o sabor? O bruxo José Lezama Lima lembra que a poesia de Keats
é um pêssego. O pêssego responde ao tato, ao sabor,
ao perfume e à forma que lhes são herentes e in-herentes.
E Raul Young queria, segundo as leis de Efrain Tomás, que o corpo
do Poema fosse como o corpo do homem e da mulher na leitura erótica
e agônica do tálamo: flexível e maduro, banhado por
luares de lâmpadas mudas e aromas estudiosamente aveludados na pele,
ao murmúrio de vozes moribundas. Isto não quer dizer que
devamos – e até não podemos – cometer o incesto de re-produzir
em palavras e cor, as linhas de um quadro e o som de uma sonata. Mallarmé
reagiu com desgosto, e até com indignação, à
tentativa de musicalização de “L’après-midi d’un Faune”.
Dora freqüenta, com
devoção romeira, os lugares sagrados da Grécia. É
um hábito, talvez uma segunda natureza de todos os que têm
o vício egrégio de conviver com mitos, com a circunstância
inaugural daquele mundo vicioso (vicioso, no sentido quinhentista da palavra,
isto é, abundante), vicioso de ninfas e de fontes, de deuses e de
musas. O cubano Lezama Lima lembra que Goethe, o mais “moderno” dos alemães
e dos europeus de seu tempo, partiu certa vez para uma peregrinação
a Assis. Queria orar e meditar nos lugares sagrados do Poverello Francisco
e de Santa Clara. A meio caminho encontrou-se com as ruínas de um
velho templo etrusco de Minerva – a Pallas de Atenas, a padroeira dos tocadores
de flauta – interrompeu a viagem e ficou ali durante dois dois dias em
oração fervorosa à deusa de olhos garços. Como
o Poema, a Grécia é hóspede e hospedeira permanente
do Poeta. Para nosso mundo ocidental helênico-judáico-cristão,
de seus montes, de suas grutas, da espuma de suas ondas nas praias de Poseidon,
veio o primeiro canto que aprendemos no grande Poema inaugural de Hesíodo,
que canta os tempos aurorais em que os deuses e deusas viviam no meio dos
homens e com eles se confundiam suas próprias linhagens familiares,
no leito das Musas e dos pastores que sabiam soprar a avena de cinco furos.
Por isso, o primeiro verso da cantata pastoral de Hesíodo, o mais
antigo dos que nos restam do mundo grego, começa com convite irresistível
a todos os Poetas: “antes de qualquer outra coisa, vamos cantar as musas
helicônias”. É ali que a Poesia recebe a sagrada semente no
útero sagrado em que o Poema assume forma e expressão: aquele
negócio de Zenon de Eléia, para quem o Poema é o “Logos”,
e o “Logos” é a beleza. Esta beleza tem, ensina o eleata, uma dimensão,
um “metros”. A repetição do “Logos”, uma palavra, mais outra,
mais outra e mais outra, gera a configuração do “Pachos”
– palavra que significa “espessura”. Esta espessura configura a forma e
a expressão da Beleza, as palavras, uma atrás da outra, sobre
a outra, debaixo da outra, com uma força dominadora, destruindo
para construir, na ânsia da grande ternura genesíaca. A ternura
da flor que se destrói para consumar o fruto. A Poesia de Dora alcança
o “corpus” do Poema exatamente assim, neste rito eleata da dimensão
e da espessura da palavra.
Já se disse que a
pintura é o “landscape”, a paisagem, enquanto a poesia é
o “in-scape”. A palavra “in-scape” foi introduzida na Poesia
inglesa por Gerard Manley Hopkins, consumando a expressão, a medida
do ser, no momento em que o homo se ergue no humus da gruta bendita
para ser forma. Klee, sob a grande influência de Heidegger, queria
isto de sua arte, não ser um produto, mas uma expressão genesíaca.
Nestes tempos indigentes em que a deficiência ou a depravação
do saber se tornou incapaz do conhecimento mágico, quando a cultura
vai sendo tratada como uma “indústria”, o Poema e a obra de arte
em geral começam a ser destituídos da taumaturgia e da demiurgia
de sua origem erótica, no leito de folhas ou de areia em que os
deuses se entregavam às ninfas e às musas, e os pastores
de abelhas ou de ovelhas seduziam com o canto de sua flauta as deusas peregrinantes.
Naquele tempo, as fêmeas dos bosques e das ondas arrastavam com sua
voz os homens inocentes para a prática do milagre e da mágica
em que se criava um momento de beleza. Hoje, já são poucos
os que ainda cultivam, como uma religião secreta, um mistério
órfico, a mágica de criar a beleza, o Poema, que dura para
sempre. Os tempos corruptos empenham-se em “fabricar” a Beleza apenas como
um “produto cultural”.
Mas estas notas não
são um texto crítico. Muito menos um texto de crítica
acadêmica ou ortodoxa. O poeta que as redige não é
um crítico de ofício. Não dispões do equipamento
laboratorial de que se servem os críticos de ofício para
o exame de uma obra como esta, do volume de Poesias Reunidas de Dora Ferreira
da Silva. Outros escritores, estes sim, críticos competentes já
o fizeram, e aqui mesmo, no final dos textos poéticos, estão
os ensaios críticos de escritores como Euríalo Canabrava,
Vilem Flusser, Gilberto de Melo Kujavski, o saudoso Nogueira Moutinho,
Constança Marcondes César, Cassiano Ricardo e José
Paulo Paes, além de uma carta comovida de Agostinho da Silva, profeta
de nossa língua e de nossos reinos e impérios. Como se vê,
uma fortuna crítica que não é pequena. Para Agostinho
da Silva, a poesia de Dora, ao mesmo tempo em que exige o relatório
de um crítico de gênio, suportaria também o testemunho
de um poeta. É este testemunho que me atrevo a trazer aqui, resultado
de um convívio demoroso com esta Poesia única na literatura
de nossa língua e na literatura contemporânea de qualquer
outra língua. Não é, pois, um ensaio, muito menos
um ensaio crítico, que deveria selecionar e citar versos, referir
livros e datas e dar conta das traduções exemplares a que
a autora se dedicou, de Hoelderlin a Rilke, a Lawrence, nomes em cuja linhagem
lírica se inscreve seu próprio nome. Todos sabem como são
fúteis e provincianas as dimensões de grandeza comparativa
com que às vezes se qualificam os escritores. Mas uma coisa parece
certa: não há e não houve neste país mulher
alguma de presença tão viva e de vos tão alta, na
história de nossa escritura poética e de nossa escritura
em geral, como Dora Ferreira da Silva. E não falo de homens, porque
diante destes poemas, não se pode falar senão da Musa propriamente
dita. E assim como aqueles foram os funerais de Heitor, esta é a
introdução ao poema de Dora, com o temor e o tremor dos olhos
e dos ouvidos “doroleptos” para sempre.
Página inicial
do Jornal de Poesia
Página
inicial de GMM
Página inicial
de Dora
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