Poeta Soares: Achei muito original a teoria dos poetas crepusculares e aurorais. E também apreciei a interpretação pouco ortodoxa de “O Crime do Padre Amaro” e “Dom Casmurro”, com a qual, no fundo – embora eu tenha dito “pouco ortodoxa” –, penso que todo mundo concordará, sem o admitir. Não teria Eça escrito esse romance apenas para servir de moldura – uma moldura suja e feia, convenhamos, embora construída com a melhor das artes – ao retrato do abade Ferrão (um alter-ergo de Eça ou talvez aquilo que ele gostaria de ter sido se não fosse o “mau destino” do mundo a lhe impor obstáculos?) e não teria Machado de Assis composto o seu “Dom Casmurro” apenas para emoldurar o retrato em miniatura do José Dias? Mas é como você disse: nem sempre nos damos conta de que escrevemos para isso, quer dizer, para descobrir a aurora no final da noite. Eu – um auroral? um crepuscular? Não sei: acho que, na verdade, estamos sempre a atravessar para o outro lado, isto é: creio que, não importa o que se diga em contrário, e não importa o que as evidências pareçam provar, só podemos existir – e só existimos de fato – na medida em que atravessamos, seja para que lado for. Observe que você não disse diurnos e noturnos, mas crepusculares e aurorais – criaturas em trânsito, portanto, seja a entrar na noite, seja a sair dela, mas sempre em trânsito, com a consciência de que, para me valer de umas palavras de Rilke, “sempre há o que ver” e de que é preciso (não me pergunte por que ou como) suster o títere, mesmo quando as lâmpadas se apagaram no palco. Quanto à evocação de Augusto dos Anjos, aceito-a em parte, muito porque não é um dos meus preferidos, uma leitura “de cabeceira”, digamos assim. No entanto descubro ali um humor bastante sutil, que aprecio por ser o que é, e que sempre há de fazer da poesia de Augusto muito mais do que um passatempo para melancólicos. Comprova que todo grito de revolta, toda acusação “contra a vida”, para me valer mais uma vez das palavras de outrem (no caso, o arqui-sombrio e transilvânico E. M. Cioran), só pode ser, mesmo, um grito em favor da vida –a afirmar que, entre duas alternativas sombrias, não nos resta senão escolher a menos sombria, nem que seja para não parecermos idiotas? Ora, o que é totalmente escuro não pode ser visto (e muito menos pode ser lido), mas, por outro lado, o que é somente luz também nos ofusca, não havendo claridade que se sustente senão pela moldura de treva que lhe dê relevo. As palavras lapidares: a tarefa da literatura – “a abordagem do humano, lá dentro, faca bem afiada cortando tão fino que a gente nem o percebe”. O mais? Eu acrescentaria: esse aprender cotidiano da lâmina, a coleção de feridas e esse aprendizado de desastres, mas sem o qual, se não estivermos dispostos a correr os riscos, nenhuma experiência se corporificará em nós (que o digam os esgrimistas japoneses). Do fundo destes escuros, a atravessar para um dia cujos primeiros raios anunciam em nós o poema por vir, envio o abraço, do Renato Suttana 10-3-3005 |
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Sent: Saturday, March 19, 2005 1:38 AM
Subject: Re: Três jovens poetas
Poeta, suas respostas-poema a Carlos William Leite, Francisco Perna Filho e João Aquino Batista me ensinaram:
Árvores derrubam meninos no chão; Não há quem não empaque sorteado no verde.
Os jegues calculam o instante do freio; Gessos nos pés levam os olhos aos vales e terreiros.
Quem cai da queda que inventou, ascende Mais alto do que o Balão de São Prestes, Eliot.
Então derrubar árvores inverte os horários Depois empaca coração e cérebro nos cemitérios.
Se os números são para os olhos no mundo, Os asininos nos pais — de Vieira a Gonzagão.
Nem Lúcifer nem Gabriel sabem onde embaixo Como mais embaixo dentro e fora sabem os poetas.
É por requisição que os versos às letras vaticinam Onde entre cavernas e ruas transitam as almas.
Não há palavra maior do que o palavrão Se criptografado ou a serviço nos vértices de esquinas.
Porque mais para dentro, que o diga Auchwitz, Plantaram sílabas nas chãs dos mundos os poetas,
Homero e os outros até os dias mais cedo Intervalados entre seus sopros, e “a poesia é um sopro”,
Em imagens de espelhos, Tebas e outras terras, A América toda: de onças, palmeiras, condores,
Totens, águias e outras pessoas que sejam para sexo, Que sejam para igreja e que sejam para fantasmas.
Plantar é construção e golpe nos minerais E faz vaginação nas touceiras e nas aléais;
É fundação dos poetas: verdade certa, Mesmo às cegas — recolhe ilhas e portas,
E nega fé às claras da glória, soprando Sensações emotivas de idéias até a última sílaba,
Vagindo sensatez de martelo pelo que sabe No tempo passado e no tempo futuro —
Para dentro e de fora, onde o presente e nascimentos E invenções e aparições e feições do verbo
Quando julgam tarde, cinqüenta anos, por exemplo — Gestação justa para bíblias… signo de eternidade.
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