Resenhas podres
Mesmo os maiores autores
já levaram pancada.
E até os melhores
críticos
já disseram asneira
Em 1885, o sergipano Sílvio Romero, um dos principais críticos
de seu tempo, resolveu desancar um autor. Afiou as garras e atacou para
valer. Chamou-o de frívolo, caquético, opilado, sem
idéias, um simples “burilador de frases banais”. Para concluir,
sentenciou: ele não tinha um romance que marcasse época.
A vítima desse massacre era Machado de Assis. Sim, ele mesmo, que
hoje ocupa a posição mais alta na literatura brasileira.
Surpresa? Nem tanto. Todo escritor, não importa quão grande
ele seja, já teve de agüentar pancadas. E todo crítico,
não importa quão preparado, conta com pelo menos uma asneira
em seu currículo. Basta investigar um pouco para constatar esse
fato e divertir-se com ele.
Talvez um dia alguém encontre plaquinhas de argila nas quais um
resenhador sumério destroça a epopéia Gilgamesh, mais
antiga obra literária conhecida. Há bons indícios
de que as agressões da crítica, assim como seus equívocos,
são tão antigas quanto a civilização. Nos Estados
Unidos, uma ótima antologia sobre esse tema foi organizada. Chama-se
Rotten Reviews, ou Resenhas Podres, e foi parar na lista de best-sellers
com cerca de 70.000 exemplares vendidos. O primeiro julgamento venenoso
registrado pelos editores do livro data de 411 a.C. Mostra o dramaturgo
grego Aristófanes demolindo os enredos e personagens de um de seus
companheiros de ofício, Eurípides, autor de peças
como Orestes e Medéia. “Ele é um colecionador de clichês”,
diz Aristófanes. “Um fabricante de marionetes esfarrapadas.” Nunca
é demais lembrar que Eurípedes pertence à santíssima
trindade do teatro grego, ao lado de Ésquilo e Sófocles.
As confusões prosseguem ao longo da História. O gênio
de Shakespeare, que viveu no século XVI, é hoje reconhecido
em qualquer parte do globo. Os intelectuais o reverenciam. O público
o aprecia em livros, peças, filmes para cinema e TV. Mas nem sempre
foi assim. Quando as obras do autor inglês começaram a ganhar
notoriedade na França, no século XVIII, a maioria dos críticos
ficou escandalizada. Elas rompiam com todas as regras do teatro clássico,
pareciam excessivas e desordenadas. O escritor e filósofo Voltaire
deu o veredicto: elas seriam obras de um “selvagem bêbado”. Mesmo
depois, Shakespeare continuou levando estocadas. O poeta Lord Byron, seu
conterrâneo, profetizou que a fama do autor de Romeu e Julieta era
exagerada e logo se extinguiria. E o dramaturgo irlandês Bernard
Shaw, que morreu já no século XX, dizia que as peças
do bardo estavam repletas de “caracterizações de araque”.
Shakespeare, pelo menos, teve a sorte de não estar presente quando
esses insultos foram escritos. Outros sofreram mais. Rotten Reviews registra
toda uma gama de críticas que foram lançadas como ovos podres
diretamente na cara dos infelizes artistas. Ao lançar Folhas da
Relva, obra fundadora de toda a poesia americana moderna, Walt Whitman
teve de ler que “entendia tanto de arte quanto um porco de matemática”.
Quando publicou Madame Bovary, Gustave Flaubert, o grande estilista da
prosa francesa, descobriu na resenha do jornal Le Figaro que “não
era um escritor”. Saído quentinho da gráfica, Alice no País
das Maravilhas foi parar na redação da revista inglesa Livros
para Crianças. Seu autor, Lewis Carroll, deve ter engolido em seco
ao descobrir que, na avaliação do resenhista, o romance era
“rígido e elaborado demais”.
No Brasil, é claro, também houve qüiproquós.
O mesmo Machado de Assis pichado por Sílvio Romero foi autor de
uma resenha bastante injusta de O Primo Basílio, do romancista português
Eça de Queiroz. Já o modernismo trouxe alguns escândalos
de incompreensão. Guimarães Rosa, ao lançar sua obra-prima,
levou estocadas e mais estocadas, a tal ponto que a revista Leitura, em
1958, publicou uma seção especial de depoimentos com o título
“Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas”.
Entre os maus leitores estavam Adonias Filho, Ferreira Gullar e Marques
Rebelo. Por constrangimento semelhante passou o poeta Carlos Drummond de
Andrade — os críticos simplesmente não conseguiam engolir
os versos de seu No Meio do Caminho. Ele, ao menos, manteve o bom humor.
Recortou pacientemente todas as injúrias e mais tarde as reuniu
num livro-vingança, Biografia de um Poema. As polêmicas brasileiras,
no entanto, têm algo de peculiar. Quase todos os críticos
— de Machado de Assis aos que rejeitaram Guimarães Rosa — mais tarde
fizeram de conta que não haviam dito nada e voltaram atrás
em suas opiniões.
Qual seria a “moral” dessa história? Isso depende. São raros
os escritores que convivem bem com críticas negativas. Alguns simplesmente
abolem o costume de prestar atenção ao que os jornais dizem
sobre seus livros, de modo a evitar surpresas desagradáveis. Para
esses, Rotten Reviews deve ser um consolo. Aliás, o livro é
mesmo dedicado a todos aqueles “que passaram anos ou até a vida
inteira escrevendo um livro, para depois vê-lo apedrejado”. Já
para os resenhistas a conclusão deve ser outra. Há vários
modos de fazer crítica. Pode-se adotar uma posição
conservadora e demolir obras que não se encaixam na tradição,
como Voltaire fez com Shakespeare. Pode-se ser populista, e imaginar que
livro bom é o que atende ao pretenso gosto do público.
Funcionários de editoras tendem a adotar essa posição,
como aquele que se negou a publicar A Revolução dos Bichos,
de George Orwell, dizendo que “é impossível vender histórias
sobre animais nos Estados Unidos”. Além desses, há os iconoclastas
e os acadêmicos. Os primeiros acreditam que só as obras revolucionárias
têm algum valor. Os segundos procuram lançar mão de
recursos “científicos” para julgar um livro. Os dois tendem a ficar
em maus lençóis quando uma nova revolução ou
uma nova teoria substitui as deles. O que todos esses personagens têm
em comum é o seguinte: nenhum está a salvo de proferir besteiras,
se não diante de seus contemporâneos, ao menos diante da posteridade.
Isso não significa que a crítica é dispensável,
e sim que se trata de um negócio arriscado. Justamente por envolver
perigos, continua sendo uma atividade honrada. É como dizia o americano
T.S. Eliot, que além de poeta costumava dar palpites sobre as obras
dos outros: “Os críticos erram muito. Os escritores também”.
As jóias apontadas
por Graieb
Um
drama bárbaro e vulgar que não seria tolerado pelo mais vil
populacho na França ou na Itália. Pode-se imaginar o que
é a obra de um selvagem bêbado.
[O filósofo e escritor
francês, sobre Hamlet, de Shakespeare]. |
O
livro é o trabalho torturante, desconexo e difícil de um
homem de gênio que se perdeu num assunto e leva 900 páginas
a encontrar-lhe saída, correndo e percorrendo o mesmo carreiro,
na persuasão de que vai triunfante por uma grande e bela estrada
real
[Filinto
de Almeida, sobre os Maias, de Eça] |
Dentro
de 100 anos, os historiadores da literatura francesa mencionarão
esta obra quese como uma curiosidade.
[Emile
Zola, sobre as Flores do Mal, de Baudelaire] |
Esse
romântico em desmantelo, esse pequeno representante do pensamento
retórico e velho no Brasil é hoje o mais pernicioso enganador,
que vai pervertendo a mocidade.Essa sereia matreira deve ser abandonada.
O autor de Brás Cubas, bolorento pastel literário, assaz
o conhecemos por suas obras, e ele está julgado.
[Sílvio
Romero, Brasil, sobre Machado] |
Caro
colega, talvez eu esteja morto do pescoço para cima, mas por mais
que dê tratos à bola não consigo entender que alguém
precise de 30 páginas para descrever como se revira na cama antes
de dormir
[O
editor francês, Marc Humblot, ao rejeitar o primeiro volume de Em
busca to tempo perdido, de Proust] |
O
senhor Carlos Drummond de Andrade é difícil. Por mais que
esprema o cérebro não sai nada. Vê uma pedra no meio
do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio. Homem! E não
houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio
com ela.
[Cândido
da Fonseca, Brasil] |
Concluí
a leitura do livro e considero que é um fracasso. O texto é
difuso e desagradável. E pretensioso. E inculto. Um escritor de
primeira linha respeitaria mais a escrita a não lançaria
mão de tantos artifícios.
[Virginia
Wolf, sobre Ulisses., de Joyce] |
Li
setenta páginas do Grande Sertão Veredas. Não pude
ir adiante. A essa altura, o livro começou a me parecer uma história
de cangaço contada para linguistas."
[Ferreira
Gullar, poeta, Brasil] |
Dos Leiores
Claudio Jorge Willer cjwiller@uol.com.br
Já vi essa matéria, evidentemente não literalmente
igual, mas comentando Rotten Critics, em outro lugar, se não me
engano em um suplemento de jornal, Jornal da Tarde ou Folha. A crítica
assinalar erros da crítica é um tema recorrente, o que não
impede a repetição dos mesmos erros. Nas duas ocasiões,
na matéria que eu havia lido não sei onde, e agora, acho
que faltou uma distinção importante, entre duas coisas bem
diferentes. Uma delas, erros de avaliação, do crítico
que não entendeu o que leu, por limitação. Outra,
o choque de tendências literárias, paradigmas, valores, poéticas.
Exemplifico, usando a matéria da própria Veja. Sílvio
Romero simplesmente não entendeu Machado, por isso, não gostou.
Zola, por sua vez, entendeu Baudelaire muito bem. Acontece que Baudelaire
sempre foi um crítico do realismo, com sua afirmação
do primado da imaginação, sua visão da literatura
como expressão da imaginação e não como retrato
da realidade. Essa poética de Baudelaire influencia decisivamente
o Simbolismo. No final do século XIX, havia uma guerra aberta entre
realistas, cujo expoente máximo era o naturalista e cientificista
Zola, e simbolistas, discípulos de Baudelaire. Notável é
a ruptura de Zola e J. K. Huysmans, que de realista e amigo de Zola passou
a ideólogo do decadentismo, bem baudelairiano (com um inflamado
elogio ao autor de As Flores do Mal, em Às Avessas). Ser contra
Baudelaire é, então, um capítulo, um momento, uma
batalha dessa guerra. Possivelmente, reflexo da ruptura com Huysmans. Nem
é crítica, entendida como registro ou recepção
jornalística de outro autor, pois foi escrito bem depois da morte
de Baudelaire.
Pode pertencer à mesma categoria, realistas vs simbolistas, o que
Ferreira Gullar disse de Guimarães Rosa. Na época, 1960,
ouvi de um intelectual também ligado ao Partidão a observação
de que Jorge Amado, esse sim, era um escritor que permaneceria, e Guimarães
Rosa era um equívoco passageiro. Por um bom tempo, o pessoal
mais sectário rejeitou Guimarães, em nome do romance realista
típico. Assim, juntar as duas coisas, erro de crítico e choque
de correntes literárias, confunde em vez de esclarecer.
Há uma terceira categoria, o crítico idiossincrático.
É a grande matéria prima para levantamentos do tipo de Rotten
Critics. Como não gosta de nada, também não gosta
do que é bom e importante. É o juiz que expulsou Pelé.
Temos alguns, ainda.
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