Carlos Graieb
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Revista Veja, 13/10/1999

Resenhas podres
Mesmo os maiores autores 
já levaram pancada.
E até os melhores críticos 
já disseram asneira 

            Em 1885, o sergipano Sílvio Romero, um dos principais críticos de seu tempo, resolveu desancar um autor. Afiou as garras e atacou para valer.  Chamou-o de frívolo, caquético, opilado, sem idéias, um simples “burilador de frases banais”. Para concluir, sentenciou: ele não tinha um romance que marcasse época. A vítima desse massacre era Machado de Assis. Sim, ele mesmo, que hoje ocupa a posição mais alta na literatura brasileira. Surpresa? Nem tanto. Todo escritor, não importa quão grande ele seja, já teve de agüentar pancadas. E todo crítico, não importa quão preparado, conta com pelo menos uma asneira em seu currículo. Basta investigar um pouco para constatar esse fato e divertir-se com ele. 

            Talvez um dia alguém encontre plaquinhas de argila nas quais um resenhador sumério destroça a epopéia Gilgamesh, mais antiga obra literária conhecida. Há bons indícios de que as agressões da crítica, assim como seus equívocos, são tão antigas quanto a civilização. Nos Estados Unidos, uma ótima antologia sobre esse tema foi organizada. Chama-se Rotten Reviews, ou Resenhas Podres, e foi parar na lista de best-sellers com cerca de 70.000 exemplares vendidos. O primeiro julgamento venenoso registrado pelos editores do livro data de 411 a.C. Mostra o dramaturgo grego Aristófanes demolindo os enredos e personagens de um de seus companheiros de ofício, Eurípides, autor de peças como Orestes e Medéia. “Ele é um colecionador de clichês”, diz Aristófanes. “Um fabricante de marionetes esfarrapadas.” Nunca é demais lembrar que Eurípedes pertence à santíssima trindade do teatro grego, ao lado de Ésquilo e Sófocles. 

            As confusões prosseguem ao longo da História. O gênio de Shakespeare, que viveu no século XVI, é hoje reconhecido em qualquer parte do globo. Os intelectuais o reverenciam. O público o aprecia em livros, peças, filmes para cinema e TV. Mas nem sempre foi assim. Quando as obras do autor inglês começaram a ganhar notoriedade na França, no século XVIII, a maioria dos críticos ficou escandalizada. Elas rompiam com todas as regras do teatro clássico, pareciam excessivas e desordenadas. O escritor e filósofo Voltaire deu o veredicto: elas seriam obras de um “selvagem bêbado”. Mesmo depois, Shakespeare continuou levando estocadas. O poeta Lord Byron, seu conterrâneo, profetizou que a fama do autor de Romeu e Julieta era exagerada e logo se extinguiria. E o dramaturgo irlandês Bernard Shaw, que morreu já no século XX, dizia que as peças do bardo estavam repletas de “caracterizações de araque”. 

            Shakespeare, pelo menos, teve a sorte de não estar presente quando esses insultos foram escritos. Outros sofreram mais. Rotten Reviews registra toda uma gama de críticas que foram lançadas como ovos podres diretamente na cara dos infelizes artistas. Ao lançar Folhas da Relva, obra fundadora de toda a poesia americana moderna, Walt Whitman teve de ler que “entendia tanto de arte quanto um porco de matemática”.  Quando publicou Madame Bovary, Gustave Flaubert, o grande estilista da prosa francesa, descobriu na resenha do jornal Le Figaro que “não era um escritor”. Saído quentinho da gráfica, Alice no País das Maravilhas foi parar na redação da revista inglesa Livros para Crianças. Seu autor, Lewis Carroll, deve ter engolido em seco ao descobrir que, na avaliação do resenhista, o romance era “rígido e elaborado demais”. 

            No Brasil, é claro, também houve qüiproquós. O mesmo Machado de Assis pichado por Sílvio Romero foi autor de uma resenha bastante injusta de O Primo Basílio, do romancista português Eça de Queiroz. Já o modernismo trouxe alguns escândalos de incompreensão. Guimarães Rosa, ao lançar sua obra-prima, levou estocadas e mais estocadas, a tal ponto que a revista Leitura, em 1958, publicou uma seção especial de depoimentos com o título “Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas”. Entre os maus leitores estavam Adonias Filho, Ferreira Gullar e Marques Rebelo. Por constrangimento semelhante passou o poeta Carlos Drummond de Andrade — os críticos simplesmente não conseguiam engolir os versos de seu No Meio do Caminho. Ele, ao menos, manteve o bom humor. Recortou pacientemente todas as injúrias e mais tarde as reuniu num livro-vingança, Biografia de um Poema. As polêmicas brasileiras, no entanto, têm algo de peculiar. Quase todos os críticos — de Machado de Assis aos que rejeitaram Guimarães Rosa — mais tarde fizeram de conta que não haviam dito nada e voltaram atrás em suas opiniões. 

            Qual seria a “moral” dessa história? Isso depende. São raros os escritores que convivem bem com críticas negativas. Alguns simplesmente abolem o costume de prestar atenção ao que os jornais dizem sobre seus livros, de modo a evitar surpresas desagradáveis. Para esses, Rotten Reviews deve ser um consolo. Aliás, o livro é mesmo dedicado a todos aqueles “que passaram anos ou até a vida inteira escrevendo um livro, para depois vê-lo apedrejado”. Já para os resenhistas a conclusão deve ser outra. Há vários modos de fazer crítica. Pode-se adotar uma posição conservadora e demolir obras que não se encaixam na tradição, como Voltaire fez com Shakespeare. Pode-se ser populista, e imaginar que livro bom é o que atende ao pretenso gosto do público. 

            Funcionários de editoras tendem a adotar essa posição, como aquele que se negou a publicar A Revolução dos Bichos, de George Orwell, dizendo que “é impossível vender histórias sobre animais nos Estados Unidos”. Além desses, há os iconoclastas e os acadêmicos. Os primeiros acreditam que só as obras revolucionárias têm algum valor. Os segundos procuram lançar mão de recursos “científicos” para julgar um livro. Os dois tendem a ficar em maus lençóis quando uma nova revolução ou uma nova teoria substitui as deles. O que todos esses personagens têm em comum é o seguinte: nenhum está a salvo de proferir besteiras, se não diante de seus contemporâneos, ao menos diante da posteridade. Isso não significa que a crítica é dispensável, e sim que se trata de um negócio arriscado. Justamente por envolver perigos, continua sendo uma atividade honrada. É como dizia o americano T.S. Eliot, que além de poeta costumava dar palpites sobre as obras dos outros: “Os críticos erram muito. Os escritores também”. 

As jóias apontadas por Graieb

Um drama bárbaro e vulgar que não seria tolerado pelo mais vil populacho na França ou na Itália. Pode-se imaginar o que é a obra de um selvagem bêbado.

[O filósofo e escritor francês, sobre Hamlet, de Shakespeare].

O livro é o trabalho torturante, desconexo e difícil de um homem de gênio que se perdeu num assunto e leva 900 páginas a encontrar-lhe saída, correndo e percorrendo o mesmo carreiro, na persuasão de que vai triunfante por uma grande e bela estrada real

[Filinto de Almeida, sobre os Maias, de Eça]

Dentro de 100 anos, os historiadores da literatura francesa mencionarão esta obra quese como uma curiosidade.

[Emile Zola, sobre as Flores do Mal, de Baudelaire]

Esse romântico em desmantelo, esse pequeno representante do pensamento retórico e velho no Brasil é hoje o mais pernicioso enganador, que vai pervertendo a mocidade.Essa sereia matreira deve ser abandonada. O autor de Brás Cubas, bolorento pastel literário, assaz o conhecemos por suas obras, e ele está julgado.

[Sílvio Romero, Brasil, sobre Machado]

Caro colega, talvez eu esteja morto do pescoço para cima, mas por mais que dê tratos à bola não consigo entender que alguém precise de 30 páginas para descrever como se revira na cama antes de dormir

[O editor francês, Marc Humblot, ao rejeitar o primeiro volume de Em busca to tempo perdido, de Proust]

O senhor Carlos Drummond de Andrade é difícil. Por mais que esprema o cérebro não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio. Homem! E não houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela.

[Cândido da Fonseca, Brasil]

Concluí a leitura do livro e considero que é um fracasso. O texto é difuso e desagradável. E pretensioso. E inculto. Um escritor de primeira linha respeitaria mais a escrita a não lançaria mão de tantos artifícios.

[Virginia Wolf, sobre Ulisses., de Joyce]

Li setenta páginas do Grande Sertão Veredas. Não pude ir adiante. A essa altura, o livro começou a me parecer uma história de cangaço contada para linguistas."

[Ferreira Gullar, poeta, Brasil]

Dos Leiores

Claudio Jorge Willer  cjwiller@uol.com.br
 

           Já vi essa matéria, evidentemente não literalmente igual, mas comentando Rotten Critics, em outro lugar, se não me engano em um suplemento de jornal, Jornal da Tarde ou Folha. A crítica assinalar erros da crítica é um tema recorrente, o que não impede a repetição dos mesmos erros. Nas duas ocasiões, na matéria que eu havia lido não sei onde, e agora, acho que faltou uma distinção importante, entre duas coisas bem diferentes. Uma delas, erros de avaliação, do crítico que não entendeu o que leu, por limitação. Outra, o choque de tendências literárias, paradigmas, valores, poéticas. 

           Exemplifico, usando a matéria da própria Veja. Sílvio Romero simplesmente não entendeu Machado, por isso, não gostou. Zola, por sua vez, entendeu Baudelaire muito bem. Acontece que Baudelaire sempre foi um crítico do realismo, com sua afirmação do primado da imaginação, sua visão da literatura como expressão da imaginação e não como retrato da realidade. Essa poética de Baudelaire influencia decisivamente o Simbolismo. No final do século XIX, havia uma guerra aberta entre realistas, cujo expoente máximo era o naturalista e cientificista Zola, e simbolistas, discípulos de Baudelaire. Notável é a ruptura de Zola e J. K. Huysmans, que de realista e amigo de Zola passou a ideólogo do decadentismo, bem baudelairiano (com um inflamado elogio ao autor de As Flores do Mal, em Às Avessas). Ser contra Baudelaire é, então, um capítulo, um momento, uma batalha dessa guerra. Possivelmente, reflexo da ruptura com Huysmans. Nem é crítica, entendida como registro ou recepção jornalística de outro autor, pois foi escrito bem depois da morte de Baudelaire. 

           Pode pertencer à mesma categoria, realistas vs simbolistas, o que Ferreira Gullar disse de Guimarães Rosa. Na época, 1960, ouvi de um intelectual também ligado ao Partidão a observação de que Jorge Amado, esse sim, era um escritor que permaneceria, e Guimarães Rosa era um equívoco passageiro.  Por um bom tempo, o pessoal mais sectário rejeitou Guimarães, em nome do romance realista típico. Assim, juntar as duas coisas, erro de crítico e choque de correntes literárias, confunde em vez de esclarecer. 

           Há uma terceira categoria, o crítico idiossincrático. É a grande matéria prima para levantamentos do tipo de Rotten Critics. Como não gosta de nada, também não gosta do que é bom e importante. É o juiz que expulsou Pelé. Temos alguns, ainda.
 

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