Tribos invisíveis
Não parece, mas ainda
existem
poetas no Brasil. Eles escrevem,
publicam –
e até brigam
"Nota do Editor:
O JP publica, com grande atraso, a matéria de Veja, de autoria do
crítico de literatura, sr. Carlos Graieb. É que minha assinatura
da www.uol venceu e não pude renová-la, de modo que
estou sem acessar a Veja e a Folha de São Paulo. [Deus
é grande, um dia chove!] Enquanto não chove[u], alguns ficaram
de me mandar o arquivo eletrônico, mas não mandaram; até
que o Cláudio Willer mandou. Aí está. Acho o artigo
do Graieb uma lindeza: abre o debate!
Você, meu caro leitor, acha correta a classificação
das "tribos"? Como se classifica a si mesmo? Outras tribos? Houve deboche?
Meta a colher! Cacete no Graieb, se for o caso. Debatamos. E, claro, todo
o espaço ao Graieb!
Eu, em particular, acho perfeita a classificação em 3 grandes
"famílias". Apenas mandaria retirar o "neo", porque não há
nada de neo em canto algum. Como conservador, continuo procurando fazer
a mesma velha poética que sempre se fez em 5.000 anos de história
ocidental. E os concretos continuam concretos; os marginais continuam à
margem. Se fazem poesia? Eles acham que sim, e abominam os conservadores;
e vice-versa, de lá pra cá e daqui pra cá, e, como
registra o Graib: odiamo-nos. Reciprocamente, cobras e lagartos. Razão
com ninguém, parece. Que seja civilizadamente. Retirem os neos,
por favor. Em breve comentarei o artigo do moço. O debate!, vamos
a ele.
Soares Feitosa,
conservador, velho"
|
[A
classificação das escolas, segundo Graieb]
Grupo:
Neoconservadores
Revista:
Poesia Sempre
O
que propõem: Retorno às formas fixas, repúdio
ao vanguardismo, defesa da poesia como forma "nobre e elevada"
Representantes:
Ivan Junqueira e Alexei Bueno |
Grupo:
Neomarginais
Revista:
O Carioca
O
que propõem: Espontaneidade, atitude inconformista e "antiliterária"
Representantes:
Chacal, Michel Melamede, Pedro Rocha; Viviane Mose, Guilherme
Zarvos, Gisela Campos, Guilherme Levi |
Grupo:
Neovanguardistas
Revista:I
nimigo Rumor
O
que propõem:
Ecletismo, erudição,
perícia técnica
Representantes:
Carlito Azevedo, Jorge Viveiro de Castro (editor), Lu Menezes, Alberto
Puche |
Interessar-se por
poesia é como mexer num vespeiro. Lá está ele, perdido
na paisagem. Até que alguém o toca e as vespas aparecem,
voando por todos os lados. No mercado editorial, a poesia é como
esse vespeiro num cenário bem mais amplo. As tiragens são
pequenas, assim como as vendas. Como observou o escritor russo Joseph Brodski,
ao aceitar o Prêmio Nobel em 1987, é bem provável que
o número de leitores de poesia jamais tenha chegado a 1% da população
mundial, ao longo de toda a história humana. Apesar dessa relativa
invisibilidade, no entanto, o gênero persiste. No Brasil, como em
outros países, basta uma espiada mais atenta para constatar que
os poetas formam um ecossistema peculiar, com suas regras e manias. Como
no caso das vespas, trata-se de uma sociedade industriosa e agitada. Eles
editam revistas, como a Inimigo Rumor, a Azougue ou a Orobó.
Organizam espetáculos como o CEP 20.000,
recital anual que congregava poetas do Rio de Janeiro entre 1990 e
1998. E, de vez em quando, alguns guerreiros até saem a campo para
brigar com os vizinhos: das raras polêmicas literárias no
Brasil recente, quase todas foram protagonizadas por poetas. Mesmo sendo
alérgico a poemas ou a picadas, sempre é curioso prestar
um pouco de atenção a um universo como esse.
É praticamente
impossível fazer um levantamento completo da poesia produzida no
Brasil hoje. O maior esforço nesse sentido é a série
organizada pelo escritor Assis Brasil para a editora Imago. Até
agora, foram onze coletâneas, cada uma dedicada a um Estado. No total,
cerca de 500 escritores. Mas o intuito desses livros é apenas documental,
ou seja, não há julgamento de valor e cabe aos leitores separar
o joio do trigo. Bem mais crítica é a coletânea Esses
Poetas – Uma Antologia dos Anos 90, organizada
pela professora paulista Heloísa Buarque de Hollanda. Seu objetivo
é identificar as tendências dominantes na produção
dos poetas surgidos nesta década, a maioria na faixa entre 25 e
45 anos. Lançada no final de 1998, ela acaba de chegar à
segunda edição e reúne 23 autores –
a maioria dos quais moradora do eixo Rio–São
Paulo. Não é por acaso. Nesta segunda metade do século,
São Paulo e Rio (onde se concentram as maiores editoras, jornais
e revistas) têm disputado o posto de capital poética.
Famílias –
A vantagem, atualmente, fica com o Rio, onde é relativamente fácil
identificar, se não grupos fechados, pelo menos famílias
poéticas. Uma delas se poderia chamar de "neo-marginal". A poesia
marginal ganhou corpo nos anos 70, tendo por expoentes nomes como Cacaso,
Waly Salomão ou Chacal. Era marcada por um grande desejo de dessacralizar
a literatura, por um quase desprezo pela cultura erudita. Em seus melhores
momentos, seus textos eram um registro quase jornalístico (e muito
bem-humorado) de eventos cotidianos ou políticos. Nos últimos
anos, alguns jovens poetas voltaram a se identificar com esse ideário.
Encontraram em Chacal, da geração passada, um incentivador
e ponto de referência. Na década de 90, Chacal (que os inimigos
chamam de "Chatal") não apenas editou a revista O Carioca como
também produziu, ao lado de outro poeta, Guilherme Zarvos, o evento
CEP 20.000. Tanto a revista quanto
o evento estão suspensos por falta de verba. Mas Chacal garante
que vai retomá-los e, enquanto isso, se encontra com seus "pupilos"
em centros culturais como o Fundição Progresso, ou em pontos
tradicionais como o Bar da Hípica, onde se pode "beber, fumar e
ouvir rock". Segundo Chacal, a dificuldade de publicar está levando
esses jovens a desenvolver formas de poesia falada. "Às vezes, soa
como uma mistura de cordel e hip hop, com altas doses de improviso", diz
ele.
Um segundo grupo
é o dos "neovanguardistas". É o mais numeroso, o mais coeso
– e o que melhor define o "estilo da época".
Seu ideário é eclético, para dizer o mínimo.
Eles assumem legados do modernismo de 1922, como o coloquialismo, o poema-piada
e o poema-minuto. Vinculam-se a "grifes", como João Cabral de Melo
Neto ou Carlos Drummond de Andrade. Retomam experimentos do movimento concretista
inaugurado na década de 50 – como a
fragmentação da palavra ou o emprego de efeitos visuais e
tipologias especiais. Até mesmo características da poesia
marginal dos anos 70 são incorporadas. Tudo isso, é importante
que se diga, é feito com extremo apuro técnico. Em grande
parte, os nomes de maior destaque dessa vertente, como Carlito Azevedo,
Lu Menezes, Aníbal Cristobo ou o paulista Heitor Ferraz, têm
ligações com a universidade e conhecimentos de crítica
literária, sendo, em mais de um sentido, "poetas-estudantes". Nos
últimos anos, a editora carioca Sette Letras tornou-se a principal
encorajadora desse movimento. Ela não apenas lança obras
individuais como também banca a revista Inimigo Rumor, editada
por Carlito Azevedo, na qual, além de poemas, ensaios e traduções
são publicados.
Por fim, há
a vertente "neoconservadora". Dos nomes que despontaram nos anos 90, o
mais conhecido é o de Alexei Bueno, que tem grande afinidade com
autores mais velhos, como Ivan Junqueira, hoje na casa dos 60 anos. A revista
que melhor acomodou sua produção é a Poesia Sempre,
publicada pela Biblioteca Nacional (embora uma crise de orçamento
ameace cortar a verba de 30.000 reais gasta,
em média, com cada número). Um retorno às formas fixas,
como o soneto, ou aos versos metrificados, é a principal característica
desses autores. Em vez da herança modernista, que de certa forma
até repudiam, eles preferem o simbolismo do final do século
passado e autores da Antiguidade clássica.
Tomates nos "reumáticos" –
Como acontece em toda família, às vezes há desavenças
internas nesses grupos. Muitos dos neovanguardistas, por exemplo, começaram
sua trajetória próximos do grupo concretista encabeçado
pelos irmãos paulistas Augusto e Haroldo de Campos, cuja bênção
foi, por três décadas ao menos, um auxílio precioso
para quem desejasse ter sucesso rápido na poesia. Ciumentos de suas
crias, os Campos costumam deserdar quem se desfilia dos preceitos concretistas
– e por isso quase todos os neovanguardistas
já tiveram rusgas com eles. Os poetas desse grupo, no entanto, aliam-se
aos neomarginais na hora de jogar tomates nos neoconservadores, acusados
de fazer versos "reumáticos" ou então de acreditar, pomposamente,
que sua poesia é um antídoto contra a "decadência da
cultura ocidental". Diante desses ataques, Alexei Bueno retruca dizendo
que falta visão de mundo a seus adversários. "Todos escrevem
a mesma coisa, sem significar nada", acusa.
É uma objeção
a levar em conta, mesmo por aqueles que não têm entusiasmo
especial pela poesia retrô praticada por Alexei e aliados. Iumna
Maria Simon, por exemplo, é professora de teoria literária
da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas e uma
das poucas a ensinar poesia contemporânea brasileira regularmente
aos alunos. Ela conta que, mesmo depois de familiarizar-se com as muitas
técnicas poéticas postas em circulação pelos
grandes escritores deste século, seus alunos têm dificuldade
em julgar a produção dos jovens poetas. "As vozes são
muito indiferenciadas", analisa ela. "Os poetas são competentes,
têm muitos recursos, conseguem efeitos pirotécnicos, mas parecem
não ter nada a dizer sobre a vida e a experiência. Falta-lhes
aquilo que Sérgio Buarque de Holanda chamou de gesto ativo de criação."
Num quadro como esse, o leitor indiferente à poesia talvez não
mereça ser recriminado. Ou você já tentou diferenciar
uma vespa de outra?
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