Nelson Ascher
O purgatório do Boca do Inferno
Mistérios gregorianos
20.10.96
Desde sua
morte, há prováveis 300 anos, até os dias de hoje, a pessoa e a
poesia de Gregório de Matos são objeto de uma polêmica ininterrupta
Gregório de Matos e Guerra, cujo tricentenário da morte ocorre
provavelmente no presente ano, é geralmente considerado a figura
literária mais relevante do Brasil colonial. Ainda assim, o Boca do
Inferno encontra-se há cerca de 150 anos num purgatório crítico,
depois de ter passado outros tantos numa espécie de limbo. Tão ou
mais célebre do que o satirista barroco é a ininterrupta polêmica
que, por século e meio, mas, de certa forma, há já, pelo menos, três
séculos, tem posto em questão tudo que diz respeito à sua pessoa,
obra, reputação, época etc.
Nascido em
Salvador, talvez em 1636, ou seja, há 360 anos, ele teria estudado
na Bahia e em Portugal (Coimbra), e vivido dos dois lados do
Atlântico, numa trajetória que incluiria um exílio em Angola, algo
que, segundo a lenda, decorreria de uma reação de autoridades
ofendidas pela virulência de suas sátiras. Julga-se que, já de
retorno ao Brasil, teria morrido no Recife em 1696 ou 1695 (a
segunda hipótese é defendida pelo historiador Fernando da Rocha
Peres em texto nesta página).
A primeira
"biografia" foi escrita um século depois. Acerca de sua vida há,
portanto, pouquíssimos fatos, bastante conjetura e muito mais
ignorância.
Os mistérios
que cercam sua obra são ainda maiores, pois, enquanto vivia o
provável autor, seus poemas — jamais recolhidos por ele mesmo num
volume autógrafo — circularam em folhas soltas, copiados e
recopiados à mão, e seu texto se alterava de versão em versão. Como
discutir então suas intenções originais? Virtualmente "desaparecida"
depois de sua morte, a obra volta realmente a circular aos poucos
apenas em 1850. E, embora o poeta já tivesse sido atacado em vida
enquanto imitador, foi só com a publicação de meados do século
passado que principiou de verdade a "questão gregoriana".
Como se poderia
esperar, essa polêmica dizia amiúde menos respeito ao poeta ou aos
poemas do que às preocupações dos polemistas e de seu tempo. Num
primeiro momento, que cobre cerca de cem anos, há sem dúvida textos
sérios, mas o que se discute em geral é menos a qualidade dos
textos, seu contexto histórico e outras tantas coisas do gênero, do
que seu "caráter":
Gregório é
autor original ou mero plagiário? Trata-se de um grande poeta que
torna grande a poesia brasileira desde seus primórdios ou será ele,
alternativamente, um português ou um mulato sem relevância.
Ufanemo-nos dele e do nosso país ou não?
A mudança
qualitativa da querela vem na segunda metade dos anos 40, primeiro
com a publicação, por parte de Segismundo Spina, de uma antologia
comentada e prefaciada por um minucioso estudo favorável ao poeta,
tudo isso realizado segundo critérios de discussão mais congeniais
aos dias que correm. Em seguida, a posição contrária também se
renova por meio de alguns estudos de Paulo Rónai, que não tanto
repete os velhos argumentos quanto os modifica ao repô-los em bases
filológicas e estilísticas mais seguras.
Uma observação
contundente, porém, que João Carlos Teixeira Gomes faz em seu
"Gregório de Matos - O Boca-de-Brasa", é a de que nem uma vez sequer
usa Rónai, para se referir ao poeta, o termo "barroco". Pode-se
argumentar que o crítico húngaro formou-se num país e num período
quando esse nome era sinônimo de decadência não só literária, mas
social, econômica, nacional. Isso talvez ajude a explicar a posição
de Rónai que, defensor de primeira hora de Drummond e de Guimarães
Rosa, não pode ser qualificado de literato conservador.
Em todo caso, a
omissão de Rónai demarca o signo sob o qual a polêmica viria a
continuar e segue se travando: o da importância do barroco. A
reavaliação do barroco, efetuada sobretudo nos anos 20, por gente
como T.S. Eliot na Inglaterra, García Lorca na Espanha e Walter
Benjamin na Alemanha, foi mais do que uma discussão meramente
erudita e resumia, à sua maneira, muitos dos pontos programáticos do
modernismo internacional. A partir dos anos 50, a "questão
gregoriana" que inicialmente pouco tinha a ver com isso tudo,
revestiu-se também desse significado que no Brasil parece agora ser
o central. Esse é seguramente o tema principal do estudo de Haroldo
de Campos, como se pode ver até mesmo em seu título —"O Sequestro do
Barroco".
Ser hoje contra
ou a favor de Gregório implica principalmente tomar partido num
debate sobre o barroco, seu significado e sua relevância para a
literatura moderna. É claro que há outras discussões paralelas como,
segundo o gosto de nosso tempo, sobre o sentido político da obra de
Gregório, se suas sátiras são, de acordo com os padrões de sua época
ou da nossa, anticolonialistas, progressistas, talvez
revolucionárias, ou conformistas, reacionárias e mesmo racistas. É
justo que estas e outras questões sejam esmiuçadas e é provável que
encontrem tão pouca resolução, ou pelo menos consenso, quanto as
mais antigas. Para todos os efeitos, quanto mais "sub judice", mais
presente a obra contestada de Gregório se torna na literatura
brasileira, embora sua presença se configure sob a forma do paradoxo
—provavelmente perpétuo.
Original e revolucionário.
Leia a obra de Gregório de Matos
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