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Nelson Ascher


Coreografia da crítica - ensaio sobre “Ironias da Modernidade”, de Arthur Nestrovski



 20.06.96
 

A crítica brasileira contemporânea, jornalística ou universitária, tornou-se preponderantemente uma desconversa, um diálogo-de-surdos entre os que evitam a controvérsia a todo custo e os que exigem conversões a qualquer preço. Uns lançam mão de toda uma terminologia esotérica supérflua para não dizer nada ou repetir singelos lugares-comuns; outros degradam planos pilotos de outrora em seus próprios planos pilantras para pregar uma (meia)-verdade, tão indiscutível quanto irrelevante, no deserto que eles mesmos criam ao seu redor. Essa desconversa generalizada exclui tão somente o objeto de estudo e seu destinatário, ou seja, o autor e o leitor entre os quais pensava-se em tempos mais felizes que a crítica seria uma ponte.

"Ironias da Modernidade", de Arthur Nestrovski, está definitivamente desatualizado do contexto acima, pois é o livro de um leitor, sobre leituras e/ou sobre a leitura, dirigido —escândalo dos escândalos!— aos leitores. Seus textos são concebidos de uma maneira tão obsoleta que chegam a evocar criaturas pré-pós-modernas como Anatol Rosenfel, Otto Maria Carpeaux ou Paulo Rónai, esses cosmopolitas que ainda acreditavam no mito inteiramente desacreditado do estilo ensaístico individual. E tampouco estão livres de inúmeros outros vícios dos quais este país se acreditava curado.

Nestrovski insiste, por exemplo, em discorrer não sobre os novos meios, a multi e a interdisciplinaridade, a sociedade e o inconsciente (individual ou coletivo), mas, preferencialmente, sobre autores e obras literárias ou musicais, levando-os —imaginem!— a sério, como se fossem temas dignos da verdadeira crítica (com o agravante de que a maioria de escritores mencionados não são nem sequer brasileiros, nem a música analisada é a popular); julga-os também mais interessantes do que as interpretações que oferece e cai, portanto, no pecado de não usá-los apenas —e eles têm alguma outra utilidade?— para demonstrar, ou melhor, ilustrar grandes teorias; além disso, ele perde todo o seu tempo tentando entender e explicar (operações sabidamente impossíveis) o que já foi feito antes, quando, de acordo com os padrões atuais, deveria ter se dedicado a compor um manual de instruções para as artes do futuro. Para que serve um crítico desses? Que se pode fazer com ele? Só mesmo lê-lo.

"Ironias da Modernidade" aborda um conjunto de autores e compositores que vai de Shakespeare a Sam Sheppard, passando por Hawthorne, Borges, Orkény, Calvino, Pérec, James Joyce, Haroldo de Campos, e de Beethoven a Schõnberg e Kurt Weill, valendo-se, para tanto, de um elenco de teóricos e exegetas em que os anglo-americanos —Mathew Arnold, Northrop Frye, Harold Bloom etc.— ocupam lugar de destaque.

O essencial, porém, é que nenhum desses estudiosos se congela enquanto um "guru" cujos ensinamentos devem ser automática e irrefletidamente repetidos. (Exemplar, neste sentido, o artigo sobre Haroldo de Campos, no qual o que se realiza, ao contrário da regra que tantos aqui aplicam a tantos outros, é um exercício crítico de admiração que não se dilui em protestos de uma vassalagem epidermicamente consagratória.) O que Nestrovski faz é submeter os críticos ao mesmo escrutínio que merecem os autores — algo que resulta na mútua iluminação de duas séries diferentes (por mais que entrelaçadas), a da criação e a da crítica.

E o escrutínio mesmo se transforma num dos temas condutores de um livro em que artigos de origem heterogênea convergem na formulação de algumas questões centrais. Ao tematizar a "modernidade" à luz do conceito de "ironia", o autor não só reafirma sua convicção de que o nascimento daquela coincide em linhas gerais com o romantismo, como enfatiza que, se há algo que a diferencia do que a precede, é a autoconsciência inevitavelmente inscrita, desde então, em todas as suas obras relevantes. Esse fio de Ariadne permite o trânsito de duas mãos entre a produção propriamente "criativa" e a explicitamente crítica, produções que, como se demonstra, há muito convivem menos em simbiose e complementaridade do que em competição e conflito.

A investigação das obras, o exame de seus comentários e a retomada frequente das primeiras por meio da consideração consciente e distanciada do que sobre elas se escrevera harmonizam-se, em "Ironias da Modernidade", num conjunto de operações simultâneas que se desenrolam com uma elegância quase coreografada.

Essa quase coreografia põe também em cena, um pouco em todos os textos, mas de modo explícito e didático no intitulado "Influência", um conflito entre duas idéias da modernidade que se encarnaram em dois autores-personagens: T.S. Eliot (representado antes de mais nada por seu "Tradição e o Talento Individual") e, não tanto o Harold Bloom de "A Angústia da Influência" que se poderia esperar de seu principal paladino brasileiro, o Borges de "Kafka e seus Precursores". Historiando e descrevendo as diferenças entre duas concepções não raro consideradas similares, o autor toma decididamente o partido do argentino e coloca a discussão crítica nacional nos únicos termos reais em que merece ser prosseguida.
 

 

 

Hélio Rola

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