Por George Steiner
O crítico George Steiner situa Fernando
Pessoa entre os mestres da modernidade
em artigo que inicia o leitor de língua inglesa na obra do
poeta e seus três heterônimos
É raro um país e uma língua
adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi
precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914.
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu
naquela capital provinciana e algo
lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço
público e a música figuravam no
passado da família. Já em janeiro de 1894, após
a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a
inventar "heterônimos" — "personas" imaginárias para povoar
um "teatro íntimo do eu". O garoto de seis anos trocava cartas com
um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e
a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio
à luz um certo Alexander Search, invenção para quem
Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo
nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua
inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início,
eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de Carlyle, Tennyson
e Browning.
Em 1905, o jovem empresário de "eus"
retornou a Lisboa. Logo abandonou a
universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa
escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu
como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo
cartas em inglês e francês. De vez e quando, traduzia uma antologia
literária. Essa existência marginal e autônoma vincula
Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como James Joyce, Ítalo
Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de
certo modo, Franz Kafka.
Até 1909, a poesia imputada a Alexander
Search permanece em inglês, à exceção de seis
sonetos portugueses. O ano de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se
nos incontáveis círculos, conventículos e publicações
efêmeras de cunho
lítero-estético-político-moral que surgiram
da crescente crise social portuguesa. (77 mil habitantes emigraram só
naquele ano). A vida íntima de Pessoa — a alternância entre
o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical — encontrou expressão
num secreto "Livro do Desassossego" e no primeiro rascunho de um longo
poema inglês. A fissão em incandescência quadri-partida
teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece
um dos fenômenos mais notáveis da história da literatura.
Ao rememorar o fato (numa carta de 1935), Pessoa fala de um "êxtase
cuja natureza não conseguirei definir (...) aparecera em mim o meu
mestre".
Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas
a toque de caixa. A estes se seguiram,
"imediatamente e totalmente", seis poemas de Fernando Pessoa ele
só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho.
Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo
Reis; o outro: "De repente, em derivação oposta à
de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num
jato, e à máquina de escrever, sem interrupção
nem emenda, surgiu a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos — a Ode
com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma "coterie"
inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências,
conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências
de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo,
o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim.
E parece que assim ainda se passa".
Pseudônimos, "noms de plume", anonimato
e toda forma de máscara retórica são
tão velhos quanto a literatura. Os motivos são muitos.
Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia,
desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios
de personalidade. O "companheiro secreto" (íntimo de Conrad), o
"duplo" prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente —
veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também
é o tema — antigo como a rapsódia homérica — da poesia
"tomada sob ditado", sob o assalto literal e imediato das Musas, ou seja,
das vozes divinas ou dos finados.
Nesse sentido de "inspiração",
de "ser escrito em vez de escrever", as técnicas de
escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos
dos grandes escritores
voltaram-se abertamente contra si próprios, contra sua obra
ou seu estilo anteriores, a
ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade,
o ego convertido em legião, pode ser
festiva, como em Whitinan, ou sombriamente auto-irônica, como
em Kierkegaard.
Há disfarces e paródias que
a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz
de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos
pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico
prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos os prestigiosos
quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou
a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua
própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação
da modernidade, "Eu é um outro".
Entretanto o caso de Pessoa permanece sui
generis. Ele não tem nenhum paralelo
próximo, não apenas por causa de sua estrutura quadri-partida,
mas também por
diferenças mercantes entre suas quatro vozes. Cada uma tem
sua própria biografia e físico detalhados. Caeiro é
loiro, pálido e de olhos azuis; Reis é de um vago moreno
mate; e "Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português,
cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo",
como nos diz Pessoa. Caeiro quase não dispôs de educação
e vive de pequenos rendimentos. Reis, educado num colégio de jesuítas,
é um médico auto-exilado no Brasil desde 1919, por convicções
monárquicas. Campos é engenheiro naval e latinista.
O inter-relacionamento dos três, seja
na atitude ou no estilo literário, é de uma
densidade e sutileza jamesianas, a exemplo de seus vários
laços de parentesco com o
próprio Pessoa. O Caeiro em Pessoa faz poesia por pura e
inesperada inspiração. A obra de Ricardo Reis é fruto
de uma deliberação abstrata, quase analítica. As afinidades
com Campos são as mais nebulosas e intricadas. "É um semi-heterônimo
porque, não sendo a personalidade a minha, é, não
diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu,
menos o raciocínio e a afetividade".
A língua de Campos é bastante
parecida à de Pessoa; Caeiro escreve um português
descuidado, por vezes com lapsos; Reis é um purista cujo
linguajar Pessoa considera
exagerado.
O labirinto é explorado na introdução
de Octavio Paz a "A Centenary Pessoa" ("Um Pessoa Centenário"),
uma antologia com bela produção editada por Eugênio
Lisboa e L. C. Taylor. Paz vê Caeiro, Reis e Campos como "os protagonistas
de um romance que Pessoa jamais escreveu". Pessoa não é entretanto
"um inventor de poetas-personagens, mas um criador de obras de poetas",
argumenta Paz. "A diferença é crucial". As biografias imaginárias,
as anedotas, o "realismo mágico" do contexto histórico-político-social
em que cada máscara se desenvolve são um acompanhamento,
uma elucidação para os textos. O enigma da autonomia de Reis
e Campos é tal que, vez por outra, eles chegam a tratar Pessoa com
ironia ou condescendência. Caeiro, por sua vez, é, como vimos,
o mestre cuja brusca autoridade e salto para a vida generativa desencadeiam
todo o projeto dramático. Paz distingue com acurácia estes
fantasmas animados.
Caeiro é um agnóstico que
deseja anular a morte por negar a consciência. Sua
postura é de um paganismo existencial. Há em seus
textos e sua "persona" retoques de quietude e sagacidade orientais. Sua
fraqueza, sugere Paz, é a qualidade esfumada da experiência
que alega encarnar. Ele morre jovem. Como Caeiro, Campos pratica versos
livres e lida de modo irreverente com o português clássico
ou castiço. Ambos são pessimistas, apaixonados pela realidade
concreta. Mas Caeiro é um ingênuo que cultiva a abstinência
e o retraimento filosóficos, ao passo que Campos é um dândi
peregrino.
De novo,é Paz quem formula de modo
incisivo:"Caeiro pergunta-se : o que sou?
Campos: quem sou?". Para Campos, essa questão é quase
abafada pelo clamor da
máquina, pelo bramido da nova tecnologia na fábrica
e nas ruas da metrópole moderna. Partindo da premissa de que a única
realidade é a sensação, Campos acabará por
se perguntar se ele próprio é real (uma modulação
irônica, em vista de seu primeiro e mais celebrado poema, a "Ode
Triunfal").
Ricardo Reis é o mais complexo destes
disfarces. Anacoreta, ele privilegia os
gêneros neoclássicos altamente elaborados, como o epigrama,
a elegia e a ode. Raríssima mescla de esteta estóico (um
eco talvez de Walter Pater?), a perfeição técnica
de seus poemas curtos busca a tranqüila resignação ao
destino. Pessoa chama atenção para as obras não publicadas
de Reis; elas incluem "Um Debate Estético entre Ricardo Reis e Álvaro
de Campos" e notas críticas sobre Caeiro e Campos, qualificadas
por Pessoa como "modelos de precisão verbal e equívoco estético".
(Tão encantadoramente tortuosos são o dédalo e o quarto
de espelhos de Pessoa que mesmo um Borges ou um Paz, ambos mestres em labirintos,
parecem simples em comparação). E a respeito do titereiro
ele próprio (apesar dessa comparação grosseira)?
Paz o imagina como essencialmente ausente:
"Ele nunca aparecerá: não há um outro. O que aparece
insinua a si próprio sua alteridade, que não tem nome, que
não é dito e nossas pobres palavras invocam. Isto é
poesia? Não: poesia é o que resta e nos consola, a consciência
das ausências. E, mais uma vez, quase imperceptivelmente, um rumor
de algo. Pessoa ou a iminência do desconhecido".
A silhueta que Paz traça de Pessoa,
sendo palavras de despedida tão sutis, correm o risco de obscurecer
um fato básico. Do jogo espectral dos heterônimos emerge uma
poesia com força de primeira grandeza. Pessoa é com justiça
arrolado entre as 26 figuras centrais do sugestivo, embora um tanto pueril,
"Cânone Ocidental" (de Harold Bloom).
O português é uma língua
resistente. Suas guturais o fazem como que o membro eslavo da família
das línguas românicas. Na ausência, ademais, de uma
tradução adequada para, o inglês dos "Lusíadas",
de Camões, essa grande epopéia de um império trágico
e conquistador, para a maioria de nós a literatura portuguesa (que
inclui, naturalmente, a do Brasil) permanece estranha.
Somos por isso gratos às traduções
e seleções de nosso quarteto a cargo de Keith
Bosley. Primeiro, a voz de Pessoa: "Não sei quem me sonho...";
"Ditosos a quem acena/ Um lenço de despedida!" ; "Dá a surpresa
de ser". Ou o característico "O mais do que isto/ É Jesus
Cristo,/ Que não sabia nada de finanças/ Nem consta que tivesse
biblioteca..." Há este registro irônico e incerto, com seu
constante apelo ao mar, a um Portugal quase liberto de suas amarras européias:
"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu".
Ouvimos a seguir a sensualidade filosófica
de Caeiro:
"Não me importo com às rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de
exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior".
Há laconismos inesquecíveis
(uma distante melodia de Emily Dickinson): "Li hoje
quase duas páginas/ Do livro dum poeta místico,/ E
ri como quem tem chorado muito".
Caeiro saúda o transitório. Para ele a "recordação
é uma traição à Natureza", já que ela
muda constantemente. Ele ordena aos, pássaros em vôo que lhe
ensinem a arte de passar sem deixar rastro. A busca da individualidade,
de verdades absolutas — o modelo platônico tão peremptório
na poesia ocidental — é meramente "uma doença das nossas
idéias". Suas reflexões sobre a morte e a posteridade são
dotadas de um orgulho agridoce pois ele foi "gentil como o sol e a água"
e, por fim, veio-lhe o "sono como a qualquer criança".
Absolutamente diverso é Ricardo Reis:
rato de biblioteca, entendido em mitologia
antiga, perito em formas métricas elaboradas e estilo mandarim.
De certo modo, uma
versão mais austera de Swinburne e Gautier, de ouvidos atentos
e imitando "O ritmo
antigo que há em pés descalços,/ Esse ritmo
das ninfas repetido". Um esteta "fin de
siècle" que prefere "rosas à pátria" e vê
em Cristo não "mais que um deus a mais no
eterno". Todavia um poeta lírico capaz desta rara mordacidade
epigramática que
conhecemos também de Walter Savage Landor (talvez o verdadeiro
modelo de Reis):
"Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele,
Preservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes".
Campos é o retórico loquaz,
o bardo à maneira clássica. É capaz porém de
ridicularizar-se com ousada satisfação. Sua "Ode Triunfal"
pode ser equiparada a "A
Ponte", de Hart Crane, como um dos textos-chave das paisagens industriais
da
modernidade. "Hé-lá as ruas, hé-lá as
praças, hé-lá-hó la foule!" Como o ranzinza
e
fantasmagórico Pessoa deve ter refugido da robusta democracia
de Campos! Como Reis, o alusivo helenista vitoriano, deve ter-se esquivado!
"Ah, e agente ordinária e suja,
que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e
amo-o!
Masturbam homens de aspecto
decente nos vãos da escada."
"Tabacaria" consta entre os mais prestigiados
poemas da língua. Não é cinismo,
mas antes uma espécie de revigorante desalento que ordena
à pequena garota "comer
chocolates", pois "que não há mais metafísica
no mundo senão chocolates", após o que o poeta deita o papel
laminado "para o chão, como tenho deitado a vida". E já que
"toda gente sabe como as grandes constipações/ Alteram todo
o sistema do universo/
Zangam-nos contra a vida,/ E fazem espirrar até à
metafísica", o poeta receita um único remédio: "Preciso
de verdade e da aspirina". Hazlitt fala com reverência de uma
sensibilidade capaz de imaginar e dar articulação
a um lago e a uma Cordélia. A simples amplitude de vozes e temperamentos
alternados de Pessoa dificilmente é menos admirável.
Essa homenagem centenária elegantemente
ilustrada oferece passagens
representativas da prosa de Pessoa acrescidas de críticas,
perfis e documentos. Omitido porém foi o leviatânico drama
filosófico "Fausto". Pessoa começou a trabalhar nesta suma
em 1908 e — em analogia a Goethe — continuou a elaborá-lo até
1933. Há críticos, notadamente na França, que o tomam
por uma obra-chave, um arquipélago ainda a ser descoberto.
Os editores incluíram duas imaginárias
entrevistas póstumas, mas o supra-sumo
nessa veia parece que lhes passou despercebido: "O Ano da Morte
de Ricardo Reis", de José Saramago, traduzido para o inglês
em 1991 por Giovanni Pontiero, está entre os melhores romances da
recente literatura européia. o livro fala do regresso de Ricardo
Reis de seu exílio no Brasil, de Eros e fascismo em Lisboa e do
encontro entre Reis e seu genitor morto. Nada mais perceptivo foi escrito
sobre Pessoa e suas sombras contrastantes. Nas palavras de Fernando Pessoa:
"Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Eles foram e não foram".
(in Folha de São Paulo,
Caderno Mais!)
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