Curioso é
que o egoísmo de uma dor sem fim não lhe fez perder o amor
ao pai. Da mãe, entretanto, pouco fala, apenas três
vezes, isso mesmo sem revelar um mínimo de afeto. A projeção
da imagem materna esvaneceu-se por certo como símbolo da mais freqüente
e sublimada veneração. Talvez visse nela uma criatura
transtornada pela “mania mística”, como referiu vagamente em As
Cismas do Destino. Ao pai, que parece se deixou levar por pressão
da família, ama-o até mesmo na atômica desordem, quando
a morte o olhar lhe vidra. Ao vê-lo morto, expressa a sua mágoa
numa comovente unção, em que a piedade do sentimento se sublima
na tessitura da composição.
Madrugada
de treze de janeiro,
Rezo,
sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai
nessa hora junto a mim morria
Sem um
gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem
lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando
acordei, cuidei que ele dormia
E disse
à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o!”
deixa-o, Mãe, dormir primeiro.
E saí
para ver a Natureza!
Em tudo
o mesmo abismo de beleza,
Nem uma
névoa no estrelado véu...
Mas pareceu-me,
entre as estrelas flóreas,
Como Elias,
num carro azul de glórias,
Ver a
alma de meu Pai subindo ao Céu.
De nada valia
para um espírito inquietante como o seu uma filosofia que arma o
seu sistema à margem da vida, sem resolver a verdade interior.
A satisfação que buscava nos conhecimentos filosóficos
só lhe faz aumentar a sede de infinito. Toda a crença
monística em que procura consolo não lhe explica à
satisfação o fenômeno da vida. A morte é
o fim de tudo, mas para os que crêem há ainda uma esperança,
não para ele, que não admite a vida espiritual. E porque
a visão da morte não o deixa em sossêgo, luta por fugir
dela, como perseguido pela sinistra ceifeira. Em - As Cismas do Destino
- brada:
Morte,
ponto final da última cena,
Forma
difusa da matéria imbele,
Minha
filosofia te repele,
Meu raciocínio
enorme te condena!
E num horror
quase pânico exclama, em Alucinação à Beira
Mar: “Um medo de morrer meus pés esfriava”. E ainda,
em A Ilha de Cipango:
Tenho
alucinações de toda a sorte...
Impressionado
sem cessar com a morte
E sentindo
o que um lázaro não sente,
Em negras
nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas
adagas
Atravessando
os ares bruscamente.
Essa visão
shakespeariana das espadas cruzando o espaço tanto pode ser a perseguição
da morte como o trágico fim da sua amada, em cujas entranhas um
feto magro estendialhe as mãos rudimentares. Aqui, como em
toda a obra, as palavras também servem para ocultar o pensamento.
Nestas condições,
desesperado por não encontrar solução no raciocínio
frio e racionalista, é natural que se mostre rebelado contra a natureza.
Já que não crê em Deus, alguém há de
responder pelos sucessos infelizes do seu destino. Procura assim
desoprimir o coração, desabafando-se nestes termos contra
a natureza:
Tu não
és minha mãe, velha nefasta!
Com o
teu chicote frio de madrasta
Tu me
açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua
causa apodreci nas cruzes,
Em que
pregas os filhos que produzes
Durante
os desgraçados nove meses!
Presumivelmente,
devia ter na época, quando recebeu os 22 açoites da natureza,
22 anos de idade. E porque não se acalmava? Faltava-lhe
fé, não cria em Deus, embora ansiasse por encontrá-lo.
O sentimento profundo de dor e de descrença afastava-o da realidade.
Vivia um mundo à parte, cheio de imperfeições, habitado
por monstros humanos. Nada o consolava nesse estado de espírito,
pois estava certo que nem Deus compreendia os seus soluços.
O remédio que então buscava para as suas mágoas era
o pior dos excitantes. Ao invés de ajustá-lo à
realidade, levava-o a recolher-se em si mesmo, ardendo em indagações
subjectivas, que só faziam aumentar a sua ânsia de infinito.
Acha Flósculo
da Nóbrega, ilustre membro da Academia Paraibana de Letras, que
Augusto era um cerebral, escravo do raciocínio frio, tanto que nos
conflitos entre a inteligência e o sentimento tomava o partido do
intelectualismo. Não me parece tenha razão o ilustre
intelectual paraibano. Fosse como ele diz, teria Augusto encontrado
satisfação na filosofia, não viveria atormentado com
os mitos que o afastavam da realidade, não se deixaria possuir pelo
demônio da dúvida. Era, ao contrário, um espiritualista
em eterna briga com o racionalismo. Suas percepções
sensoriais estão sempre em conflito com as atividades especulativas
do espírito. Surgem daí as freqüentes inflexões
mentais e os distúrbios emocionais de fundo neurótico.
Na luta em
que Augusto se debate, torturado no sentimento do desamparo, volta-se vez
por outra contra a sociedade. As suas relações com
a sociedade parecem rompidas. Não que tenha recebido ofensas
dela, mas porque se sente um desajustado, um homem excluído do mundo.
De um modo geral, via na sociedade a representação da humanidade
sofredora, mas no particular, o que ele via realmente era o ambiente do
engenho Pau D’Arco, que só repugnância lhe causava.
Ao contemplar esse ambiente, toda a mágoa do seu espírito
vem à tona.
Os seus melhores
versos, os de maior densidade emocional, foram produzidos no Pau D’Arco.
Era ali que ele sentia bulir na alma o drama de sua existência. Tomado
de tensão nervosa pela repugnância que lhe causava o ambiente,
entrava em crise espiritual. A inspiração despertava
com a dor. Punha-se então a passear, noite a dentro, ao redor
da capela do engenho, como um sonâmbulo, andar bamboleante, passos
largos, o cérebro em fogo, conforme ouvi de Alcides Carneiro que
ouvira dos seus íntimos.
Em reforço
desse argumento temos uma prova no próprio Eu. Depois que o poeta
deixou a Paraíba, em 1912, sua musa empalideceu à falta de
ambiente. O que produziu no sul do País, além de pouco,
destoa em força emocional do que produzira em sua terra natal, excetuado
da segunda parte do Eu e Outras Poesias o grande soneto O Lamento das Coisas,
que não se sabe se foi escrito na Paraíba ou no sul.
Já
é tempo de desfazer um equivoco que de tão repetido vai criando
raízes. O mundo que o fazia sofrer não era de certo
o da sociedade paraibana, que o acolhia com carinho. Desta, nunca
recebeu hostilidades. No fundo, podia ter alguma razão para
queixar-se da sociedade, de vez que ninguém o compreendia.
Mas ninguém tinha culpa de ser ele um incompreendido. Nem
ele próprio se conhecia, conforme declarou nesta honesta confissão,
em Poema Negro:
A passagem
dos séculos me assombra.
Para onde
irá correndo minha sombra
Nesse
cavalo de eletricidade?!
Caminho,
e a mim pergunto, na vertigem:
Quem sou?
Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me
um sonho a realidade.
Em agravo
da tortura moral que não cessa de persegui-lo, tinha-se na conta
de um doente, condenado a expectorar os pulmões dilacerados.
Não importa que tenha morrido de pneumonia. Um tuberculoso pode
sucumbir a outro evento que lhe antecipe o fim. Há, contudo,
no caso, um cuidado muito discreto da família em negar a tuberculose,
que o próprio poeta confessava. Essa real ou imaginária
doença, aliada à descrença, fez dele um misantropo.
Em As Cismas do Destino, confessa-se minado pela tuberculose.
Na ascensão
barométrica da calma,
Eu bem
sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma
população doente do peito
Tossia
sem remédio na minha alma!
E o cuspo
que essa hereditária tosse
Golfava,
à guisa de ácido resíduo,
Não
era o cuspo só de um indivíduo
Minado
pela tísica precoce.
Mais adiante, em Os Doentes, depois de exclamar que sua angústia
feroz não tinha nome, entra a descrever a cidade dos lázaros,
imaginária cidade à margem do Paraíba, na qual os
doentes consagravam a sua última fonética a uma recitação
de misereres. Era ali, “na urbe natal do Desconsolo”, como
ele chamava, que os enfermos se reuniam pela camaradagem da moléstia.
De início, atormenta-se com a idéia de que, sob os seus pés,
na terra onde pisava, havia “um fígado doente que sangrava e
uma garganta de órfã que gemia”. Depois disso, numa emoção
que comove, passa a chorar a sua dor e a alheia.
Lá
para o fim do poema, como se já tivesse perdido o alento de viver,
deixa escapar este triste lamento:
O inventário
do que eu já tinha sido
Espantava.
Restavam só de Augusto
A forma
de um mamífero vetusto
E a cerebralidade
de um vencido!
Mais tarde,
num desalento ainda maior, assim principia o soneto Apóstrofe à
Carne: “Quando eu pego nas carnes do meu rosto/’ Pressinto o fim da
orgânica batalha”.
A tragédia
espiritual de Augusto começou desde que extinguiu seu sonho de amor
sobre a Ilha de Cipango. Perdido o amor, perdeu também a crença.
Foi a partir dai que entrou a sentir o vazio de sua alma, jamais preenchido
pelo cientificismo materialista. Mas ninguém pode furtar-se
às impressões da infância. Não há,
pois, que admirar chore um dia a crença perdida, a imagem dos sonhos
remotos que ele quebrara com o furor de um iconoclasta. Já
cansado do ceticismo, eis que escuta, como um arrependido, os acordes saudosos
do coração. Parece que desperta para a vida. Esse retorno
do pensamento aos dias tranqüilos do passado, levado pela lembrança
terna de um mundo cheio de encantos e maravilhas, onde os anjos cantavam,
em serenata, hosanas ao Senhor, a arremetida que deu depois contra esses
tesouros do coração, despedaçando as imagens dos próprios
sonhos, tudo isso ele pincelou num quadro que é uma jóia
de rara beleza, o soneto Vandalismo, que pode figurar sem favor entre os
melhores da língua.
Meu coração
tem catedrais imensas,
Templos
de priscas e longínquas datas,
Onde um
nume de amor, em serenatas,
Canta
a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva
fúlgida e nas colunatas
Vertem
lustrais irradiações intensas,
Cintilações
de lâmpadas suspensas
E as ametistas
e os florões e as pratas.
Como os
velhos Templários medievais
Entrei
um dia nessas catedrais
E nesses
templos claros e risonhos...
E erguendo
os gládios e brandindo as hastas,
No desespero
dos iconoclastas,
Quebrei
a imagem dos meus próprios sonhos!
Caminha para
cinqüenta anos que Augusto dos Anjos morreu. Sua obra, já
na 27ª edição, continua despertando o mesmo interesse
dos primeiros tempos. Nesse decurso, muitas opiniões foram
veiculadas, tanto sobre a obra como sobre a personalidade do autor.
Não é, pois, de admirar que ao lado de conceitos da mais
justa penetração girem outros que espantam pela desconformidade.
No final de contas, cada leitor tem o direito de sentir o autor a seu modo.
O que a uns desperta atenção e convida mesmo a uma meditação
mais séria, a outros poderá parecer insípido ou fastidioso.
Enfim, ler, gostar e não gostar é coisa que se não
discute, mas dar opinião atabalhoada a respeito daquilo que não
chegou a ser entendido muda de figura.
Para só
mencionar os intelectuais paraibanos que se pronunciaram sobre Augusto
dos Anjos, destaco Órris Soares, José Américo de Almeida,
Raul Machado, Santos Neto, Álvaro de Carvalho, Flóscolo da
Nóbrega, João Lélis e De Castro e Silva, este último,
apenas como autor de um livro apologético, que não é
biografia e não chega a ser estudo. Dos outros, há
sempre o que referir, posto que, quase todos, tenham bordejado na superfície
do abismo em. que se afundava a alma do poeta.
João
Lélis, por exemplo, num discurso de recepção a Flóscolo
da Nóbrega, na Academia Paraibana de Letras, chegou a dizer que
Augusto não era poeta. Negou-lhe peremptoriamente as qualidades
de poeta, reconhecendo nele apenas o mérito de artista do verso.
Assim é que, ao aludir com desdenhoso apreço aos motivos
abjetos que abundam no Eu e Outras Poesias, disse que Augusto agarrava
a musa e saía com ela a passear pelos recônditos da diluição
biológica.
Ao contrário
da incontinente afirmativa, a musa é que tomava o poeta de assalto
nos momentos de suas lucubrações. Sabe-se como compunha.
Não era espremendo o cérebro como muitos que se apagam antes
de morrer. A arte, para ele, era apenas o meio de formular soluções,
em gemidos de dor, quando a aflição interior explodia em
chamas devoradoras. Jamais foi o leit-motiv de sua produção
intelectual. Bilac pode ter sido um lapidário da forma, Augusto
foi um torturado da idéia a serviço de um estro estrepitoso.
Os que o conheceram de perto descrevem-no de andar banzeiro, olhar perdido
no espaço, lábios crispados, a passear a esmo, enquanto forjava
mentalmente a composição. Só depois de elaborada
é que ia para o papel.
Órris
Soares, seu colega de turma e companheiro de estudos desde a fase preparatória,
surpreendeu-o num desses partos sem dor e tão absorto divagava o
poeta, de um a outro canto da sala, que só deu pela presença
do amigo depois de concluído o trabalho mental. Foi então
que recitou de inopino, num timbre especial de voz, o que acabava de compor.
Os versos
espoucavam no momento da inspiração, mas quem os lê
e os medita tem a impressão de que foram cavoucados na rocha.
Escrevia numa linguagem difícil porque era esse o seu estilo, a
sua personalidade psicológica. No entanto, essa linguagem,
à primeira vista incompatível com a poesia, entrava disciplinada
em seus versos, como em compasso de música. A virtuosidade
ganha valor na opulência da expressão verbal, o que era, na
época, certa preocupação inclusive dos simbolistas.
Cavalcanti Proença, em excelente estudo sobre o artesanato na poesia
de Augusto dos Anjos, disse que uma das suas forças, a densidade,
reside justamente no têrmo técnico. Seus versos, com
efeito, impressionam pelo poder da dialética, associado à
vibração sonora. Neles, o sentimento parece ter outra dimensão.
Essa incompreensão
a respeito de Augusto, essa repulsa idiossincrásica que compromete
o crítico antes de atingir o alvo, tem as suas raízes no
caráter polêmico da crítica passadista, sobretudo da
crítica provinciana, cujos adeptos se apraziam em demolir toda vez
que a obra visada não estava naconformidade do seu gosto.
Muitas vezes, nem o gosto se levava em conta quando prevalecia a prevenção
pessoal ou quando se pretendia alcançar fama com a marreta da demolição.
Álvaro
de Carvalho escreveu dois estudos sobre Augusto dos Anjos, um em 1920,
o outro 25 anos depois, em 1945. Em ambos, o ilustre escritor paraibano
opõe embargos ao poeta, já por sua tendência malsã
de ver as coisas pelo lado abjeto, já pelo cientificismo que tem
por incompatível com a linguagem poética. Por tudo
isso, afirma e reafirma que o Eu ficou como planta exótica, insulado
em sua própria grandeza, à margem das correntes estéticas
do pensamento literário.
Essa crítica, que pretende ser de interpretação
psicológica, tem a prejudicá-la a idiossincrasia literária
que afasta cada vez mais o retratista do retratado. Anoja-se o crítico
diante de cadáveres, vermes, túmulos, escarros, sangue de
vísceras dilaceradas, duendes, figuras espectrais e outras visões
sinistras. Repugna-lhe o fartum que diz emanar do Eu e Outras Poesias,
por ver em tais composições a podridão enroupada em
jargão científico ou jargão clínico, segundo
a classificação que adota de Agripino Grieco.
Não
importa que Augusto tenha ficado sem seguidores, que não tenha fecundado
a poesia nacional, como lamenta o crítico. Em ter ficado sozinho,
claro que avulta ainda mais o seu mérito. Poe e Rimbaud, lá
fora; Euclides da Cunha, entre nós, este na prosa, também
ficaram sem seguidores. Nem por isso, ninguém lhes nega a
grandeza de gigantes. Se há fartum de diluição
biológica na poesia de Augusto, reconheça-se que essa poesia
é humana, por isso mesmo poética.
Absurdo é
querer sujeitar a literatura aos padrões em voga. O autor
é o que é e não o que o crítico quer que ele:
seja. Não pode o critico ser ortodoxo. Admita-se que a musa
de Augusto tenha algo de doentio. Mas é preciso notar que essa musa,
mesmo doentia, não lhe tira o vigor da expressão verbal.
Note-se mais que a esse vigor casa-se uma virtude de efeitos encantatórios,
o que forma em seu conjunto a harmonia orgânica de toda a obra poética
do consagrado artista paraibano. Até mesmo quando desce ao
abominável das podridões tumulares cintila em fulgurações
de gênio. O anojamento de Álvaro de Carvalho, como se
vê, é mais uma aversão de olfato alérgico.
O próprio
Augusto tinha a consciência de que ia ficar sozinho e que era o poeta
do hediondo. Foi exatamente com esse título — Poeta do Hediondo
— que ele, num dos seus últimos sonetos, deu resposta por antecipação
aos reparos dos seus futuros críticos.
Eu sou
aquele que ficou sozinho
Cantando
sobre os ossos do caminho
A poesia
de tudo quanto é morto.
Ou então,
como se definiu neste quarteto de Minha Finalidade:
Pré-determinação
imprescrítível
Oriunda
da infra-astral Substância calma
Plasmou,
aparelhou, talhou minha alma
Para cantar
de preferência o Horrível!
Tenho por
desnecessário dizer que uma interpretação psicológica
de Augusto, de sentido mais profundo, está em tempo de ser feita.
Sua obra está aí mesmo a desafiar a argúcia dos mais
entendidos.
Da vasta
literatura que já se produziu sobre Augusto dos Anjos, elogios ou
restrições, nem tudo pode ter cabimento. Há,
com efeito, juízos despropositados de quem roça pelo assunto
sem penetrar o recôndito da dor possessiva que tanto sublimava o
poeta. Eis porque, neste ensaio de exegese literária, tenho
por objetivo abrir aos estudiosos uma clareira que os conduza ao fundo
da obra, na interpretação de um drama emocional, que apenas
transparece em linguagem evasiva.
Por suas
excentricidades e afinidades outras de ordem espiritual, Augusto tem sido
comparado aos mais altos padrões da corrente estética do
pensamento. Com Baudelaire, pela bizarria do estro e pelo gosto malsão
de impregnar a poesia com o almíscar das coisas abjetas, numa revolta
do espírito que vai aos extremos da blasfêmia. Com Verlaine,
pela tristeza indefinível da alma, no duelo da carne, manifestada
em poemas impressionistas de aguda sensação. Com Mallarmé,
pelas crises espirituais porque ambos passaram, na impotência de
estabelecer relação entre o mundo visível e o invisível,
a fim de atingir, através da sensação, a idéia
pura das coisas. Com Leopardi, pelo sentido da dor universal, a filosofia
da dor, que cultivava em sua sensibilidade enfermiça. Com
Antero do Quental, pela tortura do espírito e pela constância
do tema da morte, desejada por um, temida pelo outro.
Só
com Rimbaud, em termos de comparação, nunca nenhum dos seus
críticos traçou o paralelo. O único que mencionou
Rimbaud, isso mesmo de passagem, num artigo publicado em 1914, um mês
após a morte de Augusto, foi José Américo de Almeida.
Curioso é que fez a citação ‘unicamente para dizer
que nenhuma parecença encontrara entre com emprego de termos técnicos,
posto que as coisas que tinha a dizer exigiam, por sua natureza, palavras
raras e eruditas. Segundo Delahaye, citado por Augusto Meyer, havia acentuada
tendência do poeta, desde a sua fase inicial, para a neologia e o
vocábulo raro. Até nas aliterações e
metáforas, Augusto lembra Rimbaud, em quem se acumulam, em tropos
ousados, as mesmas figuras de linguagem, de mistura com alucinações,
crematismos, sensações simples e cenestesias, os mesmos descuidos
de metro e rima, as mesmas despreocupações do rebuscado pour
épater le bourgeois. Vez por outra, ambos procuram traduzir
a sensação das coisas inanimadas, usando símbolos
e valores que convergem para o fim colimado.
Nos transportes
espirituais os dois correm parelha. O triste espetáculo do
seu século leva Rimbaud a um passado remoto, quando a cristandade
parecia pura sobre a terra. Encontra-se, visionário, na terra
santa, na postura de um campônio rústico, assentado sobre
cacos de pote e urtigas, ao pé de um muro carcomido pelo tempo.
A mesma coisa ocorre com Augusto. Súbito, encontra-se em Roma, numa
sexta-feira santa, e é com veneração religiosa que
vê os soldados do Vaticano, em grupos prosternados, guardando o corpo
do Divino Mestre. Dentro da Igreja de São Pedro o silêncio
só é quebrado pelo vento que entoa cânticos de morte.
De lá de fora, vem o barulho das matracas. Ouvindo isso, um
grande medo toma conta do poeta, que dialoga com os elementos imponderáveis.
“Na Eternidade, os ventos gemedores estão dizendo que Jesus é
morto! Não! Jesus não morreu! Vive na Serra da Borborema,
no ar de minha terra...” Então desperta como de um pesadelo e com
os olhos ainda ensanguentados da vigília sente a tristeza de ver
mais uma vez como a sua vida é tão vazia.
Não
fica apenas aí o confronto. Também no amor os dois se assemelham.
Augusto tem as suas razões para desdenhar o amor, como quem deriva
o pensamento para o lado oposto da imagem triste que o assedia. Honesto
em tudo, de uma honestidade quase bravia, só nesse ponto dissimula
o pensamento. Veja-se como se pronuncia a respeito do assunto:
Falas
de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor
na Humanidade é uma mentira.
É.
E é por isso que na minha lira
De amores
fúteis poucas vezes falo.
Em outros
lances de sua obra manifesta o mesmo desdém, como se fosse uma convicção
firmada e firmada com ênfase, como neste exemplo:
Sobre
histórias de amor o interrogar-me
É
vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não
sou capaz de amar mulher alguma,
Nem há
mulher talvez capaz de amar-me.
Ou
então como nesta outra amostra:
Parece
muito doce aquela cana.
Descasco-a,
provo-a, chupo-a. .. ilusão treda!
O amor,
poeta, é como a cana azeda,
A toda
boca que o não prova engana.
Também
Rimbaud modulou o seu canto no mesmo tom: “Je n’aime pas les femmes:
l’amour est à réinventer...”. Teria acontecido com ele
alguma coisa? Ao que se sabe, teve motivos de sobra para tratar o
amor com aquele desdenhoso apreço. Motivos escabrosos, é
verdade, mas que o levaram ao resultado conhecido. No tempo de jovem,
segundo é fama, andou conspurcado de sensações súcubas,
tendo culminado com aquele célebre tiro que recebeu de Verlaine,
na Bélgica. Depois desse fato, largou-se para a África,
onde se casou com uma nativa da Abissínia.
Augusto
e Rimbaud negam sistematicamente o amor, embora tenham se casado e tido
filhos. As repetidas negativas ocultam de certo uma dolorosa frustração.
Em cada um deles, por causas várias, sente-se que há um complexo
de culpa, que é talvez o drama mais crucial de suas consciências.
Há,
contudo, uma diferença de fundo entre os dois poetas. É que
Rimbaud era portador de uma mensagem que acabou por cumprir, enquanto Augusto
não chegou a cumprir a sua. Rimbaud, depois de errar longos anos
pela África e pelo Oriente Médio, em busca do paraíso
terrestre, acabou por admitir a presença de uma realidade espiritual,
que era o seu anseio máximo. Quando viu que tudo quanto imaginava
como solução para restabelecer o paraíso não
passava de divagação delirante, converteu-se à realidade
e mandou ao diabo o ar do inferno que o sufocava. Começou
então a ver e a sentir milhões de criaturas encantadoras,
um suave concerto espiritual na natureza, homens de bem cheios de nobres
intenções, o bem e o mal caminhando juntos. Era a vida
que lhe chegava e que fugia de Augusto.
Rimbaud
encontrou-se a si mesmo depois que descobriu o caminho da virtude — le
sentier de l’honner — que tanto procurava. Augusto sentia-se
puro, vítima de injustiças humanas, e por isso mesmo não
achava conformidade para a sua dor. Ao invés de aceitá-la
como resultante de seu egocentrismo, exacerbava-a. Ninguém
sofre mais do que ele, a julgar pelos seus lamentos. A violência
do veneno que ingeriu muito cedo nas fontes materialistas fá-lo
morrer de sede, como Tântalo, à beira da água.
Não percebe sequer que toda a sua angústia é nascida
de suas entranhas, filha legítima de sua alma. E como não
pode reformar o mundo, revolta-se contra o mundo, contra a sociedade, contra
a sua grei, numa reação inócua, martelada em versos
magníficos e candentes.
Todo
vácuo que se abre na vida interior é prejudicial ao comportamento
do indivíduo. Ou será preenchido ou compromete a dinâmica
das forças morais. Augusto vai irredento até o fim,
sem preencher esse vácuo, isto é, sem procurar levantar o
véu das aspirações profundas de sua alma. Jamais
desceu ao fundo de si mesmo, e se o fez alguma vez foi guiado pela dialética
do monismo, quando a monera já manifestava os primeiros sintomas
de diluição. Mesmo assim, entre a voz do sentimento
e a da razão, perdia-se no estado de dúvida. Dominado
pela idéia de um mundo sem objetivo, deixava-se ficar no interior
da concha. Ele mesmo se esvaziava no mundo vazio que se criou, do qual
se considerava prisioneiro. A vida, o amor, a criação,
os mistérios da natureza, tudo quanto desperta a alma, tudo quanto
eleva os sentidos, luz, cor, som, perfume, beleza, nada disso seria capaz
de provocar-lhe uma sensação nova de vida. Torturava-se por
ver somente o lado negativo das coisas. Mallarmé também
passou pelas mesmas crises, mas depois que abandonou a luta espiritual
afundou no suicídio, da mesma forma como sucumbira Antero do Quental.
Rimbaud salvou-se porque se encontrou a si mesmo.
Uma
análise mais demorada encontraria maiores pontos de contacto entre
Augusto e Rimbaud. Nas coincidências de temas ou mesmo de paralelismo
de imagens não se veja, porém, imitação. Tais
similitudes valeriam,. quando muito, como fontes de inspiração,
mas nem isso acredito tenha havido. Augusto revela-se mais lido em
Põe e em Shakespeare, autores que exerceram forte influência
em sua formação intelectual. Também Rimbaud
bebeu na mesma taça de Põe, como Camões na de Petrarca
e de Vergílio. Não raras vezes, o que recebe influências
supera o modelo de inspiração. Uma mesma idéia
artística pode ser tratada com sabor de originalidade por mais de
um autor, segundo o conhecido conceito bergsoniano do intuitivismo.
Neste passo, se fossemos no rasto dos poetas mais notáveis em busca
de fontes de inspiração ou influências literárias,
chegaríamos por certo ao pai Homero que, segundo apregoam os fundibulários
da crítica, teria apenas disciplinado em poemas imortais os cânticos
populares da época.
É
sabido que nenhum escritor adquire a força do seu gênio senão
depois de renovar-se interiormente. Há muitas espécies de
conversões em literatura, como muito bem já disse Augusto
Meyer a propósito de Machado de Assis. Machado de Assis só
entrou na posse de si mesmo depois que se converteu à descrença,
isto é, depois que perdeu a ilusão dos homens, conforme confissão
feita a Mário de Alencar.
A
conversão de Augusto foi às avessas e porque não se
desconverteu estabeleceu-se o conflito do eu com o indivíduo. Um
problema sempre gera outro. Esse divórcio do eu com o indivíduo
acabou por abranger a própria sociedade. Foi a partir daí,
dessa conversão ao materialismo, que se agravou o drama latente
de sua alma inquieta. Por curioso paradoxo, quanto mais afunda no
racionalismo mais vacila na dúvida. Possuído do demônio
da dúvida, sua vida se transforma num verdadeiro inferno.
Rimbaud também criou para si uma estação no inferno
- Une Saison en Enfer - espécie de autobiografia moral, onde não
faltavam o ranger de dentes, silvos de labaredas e suspiros de empestados.
Enredado
em idéias preconcebidas, sentia-se Augusto na impossibilidade de
admitir a realidade da vida, aceitar as imperfeições do mundo,
olhar menos para as suas dores e um pouco mais para as alheias. Não
fosse a trama filosófica do individualismo racionalista, teria certamente
encontrado a realidade espiritual que nasce da fé e se alimenta
na caridade. Só é possível possuir a fé quando
se está convencido da verdade. A conquista da fé importa
na conquista do próprio eu. Mas no mundo fechado em que se
enclausurava não era possível ver lá fora as almas
piedosas e aflitas que tão necessitadas como ele pediam socorro.
No
meio em que viveu era querido e admirado. Se emigrou para o sul do
país foi porque a Paraíba do seu tempo nada tinha de melhor
para dar-lhe senão uma cátedra no Liceu Paraibano.
E como não lhe bastasse pela exigüidade dos proventos, supria-se
do mais no magistério particular, lecionando a quatro gatos pingados
todas as matérias do curso de humanidades. No sul do país
continuou a mesma luta heróica pela subsistência, alcançando
a grande esforço um lugar de diretor de Grupo Escolar, nas Alterosas.
Toda
a obra poética de Augusto é um grito de dor arrancado do
fundo da alma. Para uma alma sequiosa de infinito como a sua não
há que estranhar uma ou outra expressão de revolta, em meio
a tantas emoções extravasadas. Alguns críticos,
afetando melindres de devotos, viram nisso o pecado da blasfêmia.
Convém,
todavia, que se veja na blasfêmia, quando não proferida por
modo vulgar e chulo, um pedido de socorro. É o que há, na
realidade, nas apóstrofes do poeta contra o cristianismo.
Isso mostra que ele, tal como Rimbaud, se manifesta ainda escravo do batismo.
Se o Cristo não vem em seu auxílio, a reação
que lhe ocorre é a de menosprezo ao cristianismo, sem advertir-se
de que jamais dera um passo ao encontro do Mestre.
Embora
não caiba nos limites deste trabalho uma digressão sobre
a contradição reinante no mundo da crença, há
que distinguir entre blasfêmia contra o cristianismo e blasfêmia
contra o Cristo. O cristianismo se apresenta como a doutrina de Cristo,
mas os que o seguem desconhecem, via de regra, a essência dos Evangelhos.
Na prática, uns batem nos peitos diante do altar e querem logo a
recompensa do sacrifício feito, outros andam com a Bíblia
debaixo do braço e o coração carregado de impiedade.
Todos nós, com raríssimas exceções, descuramos
o nosso destino espiritual pelo gozo do momento que passa, certos de que
no futuro sobrará tempo para essas coisas.
Se
há Deus, se não há Deus, é questão que
não deve ser formulada, porquanto Deus é princípio
e é fim, é objeto de amor e de crença e não
de investigação científica. Vale mencionar,
a propósito, um episódio que me foi contado por um amigo
do Ceará. Num dos muitos grêmios literários que
proliferam na terra de Iracema, levantou-se a questão de saber se
Deus existe ou não existe. Os oradores, em torrentes de eloqüência,
se sucediam na tribuna, uns afirmando, outros negando. Ao cabo do
bombardeio oratório, como ninguém ainda se entendesse, resolveu
o presidente submeter a questão a votos. Apurada a eleição
e com base no resultado, proclamou que Deus não existe.
Ora,
decretar a inexistência de Deus por decisão tomada nas urnas
ou no bozó, é, a meu ver, heresia maior que a do poeta quando,
no desespero de tantos sofrimentos, atormentado por visões escatológicas,
explodiu em As Cismas do Destino, depois de carpir amargamente diante de
um mundo que se mostrava indiferente às suas mágoas:
Escarrar
de um abismo noutro abismo,
Mandando
ao céu o fumo de um cigarro,
Há
mais filosofia neste escarro
Do que
em toda a moral do cristianismo!
Graciosa
é a afirmação de que Augusto tenha tido a obsessão
do sacrilégio. Só muito raramente soltava uma blasfêmia.
Por outro lado, não se pode dizer fosse ele um materialista ético.
De inflexões mentais sua obra anda cheia. E como era sincero
e honesto, virtudes que cultivava com extremado zelo, nunca teve escrúpulos
de manifestar as dúvidas que lhe abalavam a consciência.
Por mais de uma vez chegou a falar em alma divina, coisa que não
cabe na boca de um ateu. De outras vezes, dá à alma
a denominação de sombra, esse sombrio personagem do drama
panteístico das trevas, encarnado nele e manifestado nesta passagem:
Para onde
irá correndo minha sombra
Nesse
cavalo de eletricidade?
Já
em Monólogos de uma Sombra, começa o poema “Sou uma Sombra.”
E onde mais expressivo se mostra é neste admirável soneto
- Debaixo do Tamarindo.
No tempo
de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma
vela fúnebre de cera,
Chorei
bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos
trabalhos!
Hoje,
esta árvore de amplos agasalhos
Guarda,
como uma caixa derradeira,
O passado
da flora brasileira
E a paleontologia
dos Carvalhos!
Quando
pararem todos os relógios
De minha
vida, e a voz dos necrológios
Gritar
nos noticiários que eu morri,
Voltando
à pátria da homogeneidade,
Abraçada
com a própria Eternidade,
A minha
sombra há de ficar aqui!
Por
sombra, os filósofos iônios, desde Tales de Mileto, entendiam
a alma. A denominação, como se vê, vem de muito
longe, através dos séculos. Camões fala na sombra
de Aquiles quando exigia, por mãos de seu filho Pirro, o sacrifício
da linda moça Polixena. Mas o que Augusto chama a sua sombra
não é ainda a alma, como entidade eterna, conjunto das faculdades
intelectuais e morais do homem, tal como a entendiam os filósofos
iônios, desde o declínio das crenças mitológicas.
É a substância primeva, à semelhança da mônada
de Leibnitz ou da monera de Haeckel, virtualidade espiritual, mito cosmogônico
que liga entre si o espírito e a matéria, larva do caos telúrico,
que procede do éter cósmico, da substância de todas
as substâncias. Até Deus, para ele, era uma mônada,
como está dito em Sonhos de um Monista:
A verdade
espantosa do protilo
Me aterrava,
mas dentro da alma aflita
Via Deus
- essa mônada esquisita -
Coordenando
e animando tudo aquilo!
Em
Ultima Visio revela-se um metafísico teológico.
Quem o ler nesse soneto dirá que já está reconciliado
com Deus. Fala como um crente da cegueira da criatura humana, que não
quer ver a glória de Deus resplandescendo em tudo, até mesmo
num grão de areia. Quando essa cegueira for resgatada e arrancar
o homem da inciência, acrescenta, então a presença
do Eterno afastará a escuridão do caminho e aproximará
a criatura do Criador. Assim fala e assim termina a composição:
A Verdade
virá das pedras mortas
E o homem
compreenderá todas as portas
Que ainda
tem de abrir para o infinito!
Vã
ilusão será pensar que já está reconciliado
com Deus. Daí por diante, isto é, nas composições
que vão até o fim do livro, o metafísico cede lugar
ao inveterado monista, perdendo-se novamente no enleio cósmico,
ansiado por compreender o princípio anêmico dos seres, sua
intimidade numenal, de onde decorrem todas as moléculas que se esvaem
na transubstanciação da natureza. Choram ainda dentro dele,
em soluços quase humanos, as formas microscópicas do mundo.
Assim vai, em briga com o dualismo, vacilante na ciência fria, assaltado
de alucinações, até que morre numa cidade das Alterosas,
em Leopoldina, aos 30 anos de idade, a 12 de novembro de 1914. *
+++++++++++++++++
Este
trabalho, tal como se apresenta, foi objeto de uma palestra proferida em
maio de 1960, na Federação das Academias de Letras do Brasil.
Mais poderia dizer agora, mas com o que ai está me contento. Que
outros, mais dotados de inteligência e espírito de penetração,
completem os estudos aqui esboçados ou deles discordem por modo
a dar uma interpretação mais aceitável às mensagens
de angústia, que eram uma constante na alma torturada do poeta paraibano.
(do livro As Razões da Angústia
de Augusto dos Anjos,
ed. Gráfica Ouvidor, RJ, 1962)
|