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Heraldo Amaral

 

Sent: Monday, April 07, 2003 10:46 AM
Subject: Um cronômetro para piscinas

Caríssimo Soares,

Sim, você me é caro pelo que a beleza da tua obra me causa - e eu teimo em imaginar tal beleza aparentada contigo, a quem, em verdade, não conheço!

Te digo com muita objetividade - já que não há site ou página para você saber de mim: sou meio médico, meio monstro, ou seja, funcionário público - engenheiro sanitarista concursado pela Prefeitura de Divinópolis (MG) - e artista - escritor bissexto, compositor e músico. Componho canções com alguma assiduidade - esse ofício termina por me fazer também algum poeta -, estou preparando um CD e terminei há pouco a revisão de meu primeiro conto, que estou te enviando anexo. Creio que uma obra de neófito mereça quase sempre algum tipo de crítica, do tipo "vá em frente, você leva jeito" ou "desista enquanto isso ainda está entre amigos". Fique à vontade. Louvo Machado de Assis quando afirma de nada valer sobre o quê escreve um escritor, mas como escreve - estética é tudo.

Amo o Ceará, onde estive há dois anos conhecendo Fortaleza e Jericoacoara (passei por tua cidade natal, colada em Fortaleza, não é mesmo?) - seria a Via Catuana a estrada que liga uma a outra? Lembro-me de carnaubais e cajuais sem fim ao longo desse trajeto. Tenho um grande amigo músico que é professor da Escola de Música da UFC. Chama-se Márcio Resende - um saxofonista/flautista genial. Perdi o seu paradeiro, e ando atrás do telefone da UFC para um novo contato - tenho planos de gravar em Fortaleza.

Belíssima a estória do pai do comerciante! Contada com um estilo fascinante, ofereceu-me enorme prazer. Prefiro-a, por enquanto, aos poemas - igualmente lindos, de fôlego criativo descomunal - precisamente por saber o quanto tenho ainda que explorá-los, ao passo que a estória já se consumou de pronto, singrando de uma margem a outra no lago brumoso e tranqüilo das minhas veleidades matinais desta 2ª feira modorrenta. Grato por fazê-la melhor!

Um abraço,

Heraldo.

 

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A RETRATISTA

 

“Um... dois... três... Estas crônicas são expiatórias, por isso as inicio confessando-me. O que em mim germinou como sentimento criativo e imaginoso sempre me colocou diante de cismas e encruzilhadas, e me fez antever tropeços, fracassos, desânimo. Ora, jamais prezei viver assim sopitado e aflito, à sorte dos episódios intensos, imprevisíveis e inomináveis! Tentei enfrentar o desassossego e a nulidade de meu espírito, mas quão mais poderosos foram meu torpor e meu medo de perseverar, e como, inseguro, não me atrevi a ir adiante! Mas onde é que estavam meus espelhos, que não me enxerguei? Pois bem, a quem não se vê só resta enganar-se a respeito de si próprio, e aí soçobrei ao primeiro porvir, pois pensei compreender o que não compreendia. Cri que amealharia com rastelo tesouros à flor do chão –– mas estão incrustados em galerias escuras e lúgubres, nas profundezas ocultas da alma. Assim, sem mais conjeturar –– mesmo porque foram conjeturas justamente a me precipitar no negrume do abismo de humanidade a que me mostrei incapaz de tatear, luminar e galgar ––, contentei-me em viver às escuras, por longo tempo, em plena luz do sol. E assim teria sido até o fim dos tempos, não fosse a indiferença do destino trazer-me o que afinal me trouxe.

“Estas crônicas narram a minha existência, ou a minha história –– quando já se sabe desta o fim, teme-se pelo fim daquela. E que ninguém, depois de  conhecê-la, jamais creia poder se furtar a passar por esta vida sem se dobrar aos furores demoníacos do desconhecido.”

 

1

 O “Lord Jim”, de Conrad, foi o primeiro livro que me dei. Lembro-me de como eu amava a sua capa muito branca e dura, ostentando no centro de uma elipse de contornos imprecisos a gravura da nau de velas enfunadas que parecia singrar pela alvura diáfana de um céu! A beleza e a formosura dos livros foram o meu fascínio de infância, a razão primeira e única do amor que a eles devotei. Seduziam-me a sobriedade das brochuras, a exuberância das ilustrações e das capas, as lombadas cunhadas em ouro ou prata, combinando-se entre si nas estantes, a sonoridade dramática dos nomes de escritores e obras –– atrativos sumamente harmonizados no meu “Lord Jim”. A aprovação de meus pais ao que acreditavam ser um precoce gosto por literatura, manifestado de modos tão naturais, me enternecia e mimava. Na verdade, tinham-me em alta conta por tais inclinações, esforçavam-se por munir-me de livros, levavam-me a livrarias e bibliotecas, e isso parecia, afinal, redimi-los das rudezas do berço inculto. Àquele tempo, ocupava-me com rituais domésticos e escolares, a fugacidade dos prazeres e pavores da meninice, e em cumprir tarefas para ser bom filho e granjear reconhecimento e estima –– assim, fui tangido desde pequeno a viver entre adulações e chantagens, conquistando com truques lúdicos a ternura dos mais afins, e ia me enleando aos confortos e benesses daqueles tolos ardis.

Era verdade que amava os livros e cultuava seus encantos estéticos, mas lê-los –– muito embora eu o tentasse com ímpeto e me saísse bem pelas primeiras páginas  –– quase sempre me trazia problemas. Quanto mais me movia a ânsia para a leitura, mais dela me demovia a modorra –– os livros eram como soníferos! Lia por dever de ofício. Isso significava semanas a fio cochilando sobre as leituras obrigatórias da escola, cobradas nos exames de Português; a dificuldade de entregar-me a elas mostrou-se afinal intransponível para minha natureza angustiosa, sempre a sovelar-me com antevisões exasperadas, dispersando-me, pondo-me em fuga, abrigando-me junto às veleidades do ócio. Não faltasse, então, o exemplo e o conselho de um letrado, e talvez me submetesse ao treino obstinado que os livros exigem de qualquer neófito que padeça das preguiças do intelecto e do espírito. Temi pelo fim da fama de filho filósofo, cismando que minha pantomima não convenceria por muito tempo. Admirar e colecionar livros, sem que me prestasse a lê-los, comentá-los, recomendá-los, soava-me um logro por demais descabido. Não supunha que minhas artes enchiam olhos de quem na vida pouco ou nada lera, e em cujos espíritos os livros talvez não suscitassem mais que curiosidades e pareceres frívolos, como sua importância para os homens de gênio ou as principais obras de algum escritor popular –– não mais que alegorias carregadas de apelos doutos, mimos para o adorno do espírito ou o prestígio da pose. Sentiam-se satisfeitos ao ver-me lendo –– fingia-o, quase sempre, rodeado de livros ––, e isso bastava. De todo modo, acobertei tacitamente minha bibliofilia manca à guisa de prosseguir gozando algum afeto familiar. Não que aquela vida de agrados valesse algo diante do amor por meus preciosos livros –– creio mesmo que não me custaria morrer por eles ––, mas como saber, ali, quais impalpáveis medos ou langores de caráter a vinham tornando imprescindível para mim?

Deu-se o mesmo com a música. Assoviava marchinhas carnavalescas desde lá pelos meus três anos –– a predileta era o “Alá-lá-ô”, que eu também cantava dentro do lotação, menino de colo, vexando minha mãe. Meu pai levava-me aos Concertos para a Juventude no Teatro Fênix, e não escondia o orgulho que lhe causava o meu entusiasmo durante a cena imponente e luminosa de uma orquestra em tutti, atroando num pique delirante, rumo ao uníssono do gran finale. Orientou-me mais tarde para o violão clássico, e eu já ansiava por me tornar músico talhado ao cabo de meia dúzia de aulas. A incapacidade de fazer-me instantaneamente um virtuoso, não obstante o ouvido absoluto e os dons musicais um tanto mais sinceros e aflorados que os literários, levou-me logo ao desdém e à pachorra, mas o pequeno repertório que executava já fazia de mim uma talentosa promessa aos ouvidos da família. Prossegui sustentado por elogios dos parentes e suas perfumarias de salão, e é verdade que galguei algum progresso. Quando compus as primeiras canções, ao tempo em que enfim desvelava-se, em meio à insensatez da adolescência, o desejo de perseverar no estudo e na profissão da música, fui alertado sobre as luas de penúria e promiscuidade que governam as marés da vida de artista: aquilo não era trabalho para mim, já prometido à universidade, mas mera dileção. Passei, tempos depois, a colecionar partituras, exibidas como ícones de mão nos cinemas e bares por onde eu perambulava, e com as quais adentrava as salas de concerto, para seguir –– mais perdia-me –– pelas pautas a execução das peças.

Estudei publicidade e tornei-me crítico de arte. O ofício proporcionou-me razoável prazer. Fui bajulado por artistas, produtores, senhores da mídia, da indústria cultural e da política. Canonizei muitos ídolos –– e a quase todos pulverizei com um sucessor. Peguei-me enfim ao comando, nada me escapava ao controle, e com isso desfrutava poder, segurança e sossego. Terminei por converter-me eu mesmo à crença em meus próprios embustes, e um bem-aventurado colecionador de mediocridades, máscaras, invólucros e aparências medrou na profissão dessa fé. Amigada aos pendores para o discurso fluente e aos referendos de uma racionalidade imbatível, minha obsessão pela superficialidade fez de mim um homem respeitado pela maestria artística, amplidão cultural e erudição inconteste. Detectar, num ou noutro amigo, lanho que fosse de desabono para com meus atributos artísticos e intelectuais engendrava entre nós um afastamento prudente, um trato frívolo.

Com o tempo, a maturidade foi-me salvaguardando das paixões, fazendo-me intolerante, em medida cada vez maior, para com as excitações do espírito. Acometiam-me de um frêmito sufocante e anóxico, logo insuportável. O destino de tais acessos invariavelmente surgia, por um lampejo enigmático e súbito, na forma de uma fétida lixeira: eu mesmo a sustinha, enquanto destampava sua imensa boca e balbuciava, patético, sob o buliçoso vozeio interior, confissões e sentenças que condenavam meus próprios delírios ao degredo pelos confins do esquecimento,  de  onde –– eu supunha –– jamais retornariam.

Tampava a lixeira.

 

2

 

Contava trinta anos quando me deparei com uma bem acabada edição inglesa do “Lord Jim”, enquanto garimpava prateleiras num sebo de livros na Saara à procura de partituras para violão de Villa-Lobos editadas na França nos anos quarenta. A seu lado, aberto, obtuso, um velho álbum de retratos exibia fotografias de paisagens marítimas e costeiras. Contemplei as imagens com certa demora indecisa, de que o imprevisível costuma fazer-me refém, e debrucei-me, enfim, sobre o álbum –– tratar-se-ia talvez de algum documentário sobre as viagens do marinheiro-escritor. Fotografias antigas, sem dúvida obtidas pelo emprego de técnicas arcaicas. Encontravam-se surradas e carcomidas, e luziam saturadas de nitrato de prata. Eram muitas e grandes –– pude ver enquanto manuseava o compêndio com o embaraço que o seu peso me impunha –– e jaziam sós, dispostas uma a uma sobre páginas de papelão verde-escuro e rígido, separadas por folhas opacas de papel de seda perolado. Umas mostravam marinas oceânicas ornadas de carnaubais e dunas, outras exibiam um casario tosco de vila –– do mar avistado miúdo no sopé das serras emparedadas e longínquas, ou ladeando as ruelas de areias e cercas, ou quando se lhe revelavam os interiores de umbros e claros, cozinhas enfumaçadas, portas e esteiras mal dependuradas no adobe ou no pau-a-pique, alpendres entremeados de redes e cães modorrentos, quintais ralos e vastos onde as cabras debruçavam-se sobre comedouros sombreados por cajueiros e algarobeiras. Infindas e lamacentas nesgas de manguezais e estuários apartavam a terra do mar, e ainda se viam flagrantes –– fortuitos? –– de fé e festas, quermesses, funções, enterros, fanfarras. Adiante, grandes clãs expunham troncos arquétipos e marcas de consangüinidade endêmica; e havia rostos solitários de incontáveis idades e humores. Os últimos retratos mostravam novamente agrupamentos familiares, e não percebi de imediato que se tratava de registros de velórios. Alternavam-se as poses, a partir daí, sempre pareadas e respectivas: as primeiras, nas páginas esquerdas, exibiam os defuntos ladeados pela família –– pendidos por entes, mal arranjados em cadeiras, ou quase de pé dentro dos caixões aprumados ––; à direita destas, as segundas estampavam os seus rostos em tamanho quase natural. Alguma aquarela colorizava parte da coleção, redefinindo contornos fugidios de paisagem, acentuando a expressividade dos semblantes, criando adornos inexistentes –– botões, broches, brincos, laços, gravatas, camafeus –– ou vivificando naturezas-mortas esmaecidas em cestos, gamelas, bules, penicos. Havia uma inscrição quase invisível no rodapé da contra-capa ensebada do álbum. Um nome, um lugar, uma data:

“ALVA, TURIAÇU, 1931”

 

Desejei me livrar sem demora daquelas estampas, impelido aparentemente por algum desalinho interior. Corri uma vez mais os olhos pelo álbum com dissimulada displicência. Uma espécie de prurido me fez parecer sensato despender algum esforço para coçar-me. Levei incontinenti as mãos à altura do pescoço, uma após outra, buscando alívio para o que desencaminhava minha manhã e subvertia os meus metódicos intentos musicológicos. Imaginava sentir ferroadas miúdas, decerto as mesmas pontadas de desconforto que precediam a configuração mental da grande lixeira e me eram já estupidamente habituais. Logo, porém, sentimentos estranhos desalojaram-me do costume, insurgindo-se no cárcere da alma para me embevecer e amedrontar. O velho álbum era já para mim um conjunto aterrador de imagens, e suscitava-me desolação e morte a contemplação daqueles retratos. Ao mesmo tempo, uma beleza de encanto feérico os embalsamava, mantinha-os vívidos e resguardados de todo intemperismo. Tanta eternidade evocada por imagens do que talvez nem mais existisse! –– como a estrela já explodida e morta, mas cujo brilho, viajando anos-luz pelo cosmos, a faz cintilar nas noites do futuro. Envolto, num espanto fantasmático, pela sensação de que minha mente projetava miragens, julguei ver lugares e gentes despregando-se como fátuas quimeras, as almas todas do povo, de pedras, seres e águas, desencarnando-se e lá se indo não sei aonde, alhures, ao mesmo nada de onde vieram. Almas que alguém havia capturado naqueles retratos impressionantes –– e eu as libertava, eu profanava tumbas do tempo enquanto esquadrinhava as imagens e ansiava por pacificar meu espírito. Como se me avizinhasse o peso dos anos, a juventude divisada da velhice –– não imaginara acareação tão prematura ––, um mundo de tempos e espaços perdidos, o perceber as coisas, o aqui e o agora, quando já não são mais que o ali e o então –– o verbo da mocidade não mais ouvido ou murmurado, nem antes, talvez nunca nem nunca mais o enlevo telúrico da vida alvorecida pelo sol do amor, o amor viçoso e sonso dos moços; ali, diante daqueles retratos, como a velar e carinhar, com o coração inconformado e doído, a feição serena de um rosto morto, o que via fazia-me sofrer e ansiar ante a finitude de tudo. Experimentava uma brutalidade sem paralelo. Quando vida e morte se fizessem conhecer aparentadas, irmãs de sangue, siamesas –– talvez no padecimento dos rituais de passagem, ou quando os filhos se vão prematuros do mundo –– quem sabe fosse dado a alguém reconhecer tal fúria.

O ar invernal da manhã evolava-se pelos aromas monásticos da loja, recendia a papel velho. O cheiro acre do bolor imiscuiu-se na poeira suspensa, subiu-me primeiro pelas narinas, senti-o depois nos sinos, e fez-me chorar. A impressão urticante daquele choro anódino e fisiológico aumentou meu desassossego. As lágrimas embotaram a visão sob os óculos e embaçaram ainda mais a aura das imagens, mas me emprestaram um terno e sincero desamparo, que terminou por me confortar. Assim, entreguei-me à sensação morna de sobreviver ao pânico. Senti a tepidez de um degelo. Afastava-me de mim, perdia-me. Cingia-me já um prazer liquefeito, imenso e surdo como o fundo de um lago, e a idéia de recusar-me a configurar na mente a visão da lixeira boquiaberta ocorria-me em átimos freqüentes, tanto mais eu debandava de minha sensatez sitiada, abandonando-a à mercê de hordas de pulsões coléricas e confusas. Vi-me irremediavelmente desgarrado, e de modo tão inexorável e real que não mais me causava horror, mas alívio de purgação; talvez –– era difícil nomear sentimentos tão insubmissos –– como quando, deitados sob marquises, os pivetes sem casa encontram o sono.

 

 

3

 

 

Os mangues do Turiaçu não mais existiam. Dos que por lá habitaram pouco ou nada se assuntava de seu paradeiro, nada se contava sobre se alguém os valia, se ainda viviam, e o certo era que, mais dia, menos dia, quase todos se houvessem banido de lá desde a tragédia, desde o desastre: fora-se o pescado, o caranguejo, o sustento –– a vida se esvaíra dos mangues como a seiva exsudada de uma árvore que se foi ressequindo. A realidade sobre o mundo da retratista, trazida à tona por recentes pesquisas, era tão evidente quanto inaceitável. Minha inclinação para rejeitar o óbvio e fidedigno levou-me, portanto, à decisão de empreender meu intento. De sandice de velho, glosada comumente pelos mais chegados com estudado sarcasmo, a viagem ao Turiaçu –– um ponto no litoral do Maranhão –– logo era um projeto inadiável para mim. O desejo de posar para Alva, de ver-me num de seus retratos e por seus olhos talvez enxergar-me e saber-me, antes acalentado como um devaneio de senilidade, agora ardia-me como febre de fome. Nada comentei sobre os propósitos que me lançavam àquela lonjura; de certo modo também nada segredava, pois esse anseio era misterioso e indecifrável para mim. Com o tempo, perceberam-me outro, transtornado, débil e deprimido. Tinham-me enfim por insano, decrépito –– onde já se vira, septuagenário pacato e cordato dar asas a tamanhos arroubos, lançar-se em viagem tão longa com destino ao inóspito! E a vista? E a artrite?

Tentaram em vão demover-me da empreitada com os mais sombrios prognósticos. A vida apequenara-se. Parecia não mais estar ali –– ali onde morava, trabalhava e passeava, nem mesmo nos itinerários e ambientes mais corriqueiros de minha existência, em mim mesmo. Minha visão definhava com o glaucoma –– eu não tardaria a ficar cego. Tomou-me a convicção delirante de que Alva não deixara o seu lugar.

Corriam os primeiros dezembros nortistas quando finalmente aportei no Turiaçu, num rebento de aurora que, nem bem surgiu, expirou asfixiado pelo mormaço. Pelos mangues o dia jazeu natimorto e por fim elevou-se branco de névoas e claridade, ascendeu num fulgor baço e lancinante, como a luz cândida que emanava das dunas, as mesmas  retratadas  por  Alva –– diante do meu assombro (eu as divisava do barco, ainda ao longe, justapondo sobre elas o velho álbum, que mantinha aberto à altura da vista), erguiam-se como portais de um templo. A vila parecia também ser quase a mesma! Desvaneceu-se ali o medo de que nada pudesse estar onde estivera no tempo dos retratos. A exaustão fremia-me o corpo. De São Luiz trazia de muitas fontes uma só notícia: nada, ninguém habitava mais o Turiaçu e suas águas mortas. A custo de propina convenci um arrais a levar-me à baía do estuário –– lá haveria o pequeno cais –– e tratei o retorno para São Luiz dentro de três dias. Minha equipagem resumia-se a uma mochila com alguma roupa, comida e água, e uma pequena canastra com lanterna, papel, caneta e gravador. Ao pescoço pendurei uma câmera. Antes de partir, arvorara-me a desenhar um croqui de mapa com locações referenciais: casas da vila, o cais e o velho trapiche, o rio que despenca das serras e adoça o estuário, o manguezal, as dunas errantes. Assinalara também o local onde supunha ser a casa de Alva –– à medida que minha chegada foi desmistificando a paisagem, tornou-se evidente a coerência das abstrações que minha imaginação construíra na contemplação dos retratos. A aproximação pelo mar, a cabotagem, as manobras no cais, a terra firme –– e eis o reino que Alva, a retratista do Turiaçu, perenizara num réquiem imagético, antes de tudo virar nada.

Ainda assim, um outro mundo... Visadas longínquas e pausadas em todas as direções possíveis, enquanto me dirigia à colina no costado da vila em busca da casa da retratista, não me mostraram viva alma. O rumorejo do motor do barco dissipou-se lentamente, até emudecer-se pelo vazio da enseada.

Lá estava ela –– a choça de Alva, ainda de pé sob o dia branco, encarapitada na grimpa do morro. A subida da encosta fatigou-me. O vento fustigava meu rosto e me fazia curvar. Uma solidão imensa e fria derramava-se como chuva, enregelava-me. Adentrei o casebre e o percorri por inteiro. Ninguém. Era domingo. Não percebi desapossar-se de mim a idéia de que aquele dia mal existira. Acocorei-me ao pé do cercado que a partir da portinhola da cozinha demarcava para os fundos um quintal arenoso, onde roupas esfiapadas ainda flanavam no vaivém dos varais, e esperei pelo viço da noite, pelo frescor das lamas e dos perfumes salobros. Então sonhei Alva, desde quando prestara atenção ao mundo, ainda esquálida e desgrenhada, costumando dali abandonar-se, a espraiar sobre as tardes o olhar contrito do semblante, quando a quietude adensava-se e as primeiras jangadas zarpadas do pontal já cabotavam no ofício noturno da pesca. Não gozaria somente sabores e carícias do vento vespertino, a percorrer-lhe o ser como painas esgarçadas pela pele, por toda a alma. Mais e mais exploraria o mistério das horas dúbias do crepúsculo. Pontuaria o zênite no céu, deslindaria o interminável oceano. Aprenderia sobre luz e sombras –– e sombras de sombras, e cores de cores –– miríades cambiantes de tons ela descobriria pelo ouro das águas ou na aspereza monolítica das serras distantes. Desvendaria, no exercício da contemplação, os segredos dos ângulos e suas ilusões ardilosas, a perspectiva, a fuga e o enquadramento, a altivez e a fundura do mundo e de si.

O velho álbum voltou-me mais uma vez às mãos. Reencontrava nos retratos a paisagem que do alto eu contemplava. Tudo parecia ocupar seu devido lugar. Eu me senti parte daquela conjunção de mundos, como se me fosse tão perfeitamente lógico estar ali, tanto quanto o era para os seixos, as dunas ou as águas. Relendo o nome garranchado na contra-capa puída, conjeturei pela primeira vez se o “M” mal escrito e apagado se passaria por um “V”, reparando ali o engano que, de tão caprichoso e por tão longo tempo, me fizera desconhecer o verdadeiro nome da retratista. Alma. Fazia sentido. Havia ainda farrapos esgarçados de luz pela vastidão umbrosa da tarde. Fiz então meus primeiros retratos.

 

 

4

 

“Foi-se a visão –– vislumbro apenas enormes manchas sombrosas; o corpo entrevou-se deitado, e cansa-me endireitar a postura da carcaça para narrar ao gravador. Consumi as derradeiras forças da vista e dos membros no esforço de escrever estas crônicas, que a inquietude da alma e a proximidade da cegueira me obrigaram a contar. Passo os dias a ouvir zunidos –– não sei se cigarras nas carnaubeiras, ou o silêncio que o vento traz dos mangues distantes –– que me fazem espichar o pescoço para o mar, acurar a audição irrequieta e buscar à larga um sinal qualquer. Nada vejo. Repito o ritual um sem-número de vezes: o sonido chia por toda a cabeça e então me dou conta de que uma perturbação vibrante me toma por inteiro. Coisas de velho. Lembra-me o apito surdo dos barcos distantes, no mar, pontilhando o horizonte do cais, uns chegando, outros partindo. Nada vejo.”

“Não retornei para o encontro com o arrais, e imagino que meu desaparecimento não demore a ser noticiado às autoridades. Talvez venham me resgatar. Não sei ao certo há quanto tempo estou no Turiaçu retratando seus dias alvos. O tempo tem hoje para mim a sua própria dimensão, que é a das horas que correm por correr, destituídas de qualquer sentido, sem serventia, desfiguradas, cujo valor não vai além do seu peso exato e genuíno, o tempo do tempo –– como caminhar, caminhar e nunca chegar.”

“Os retratos e as crônicas que aqui nasceram são tudo o que lego de minha existência, pois no seu fazer eu me reconheço, embora jamais volte a ler, a ver... De qualquer modo, o verdadeiro conhecer-se a tudo descorporifica; descobrimo-nos seres de rostos oníricos, criados à imagem de um sonho vão. Ao fim da vida, ainda me encontro cego e perdido. Queda-se enfim o misterioso véu, de mim mesmo contemplo a sombra da face –– nunca o meu verdadeiro nome, porém, eu saberei.”

“A retratista tem me visitado. Diz-me ser velha e mameluca, como eu a fantasiei nesses anos todos. Sinto sua presença, posso roçar-lhe as rugas e ouvir os sussurros de sua respiração, como se a tivesse bem perto.

“O zunidos pairam sobre minha cabeça. Cansam-me, causam-me estertores tremendos. Existe o momento de parar... A quem encontrar esta gravação rogo providenciar a transcrição do seu conteúdo, bem como a revelação dos retratos que aqui fiz. A sua reunião aos rabiscos que acompanham a fita no interior da canastra é também necessária. E que a estas crônicas se dê algum formato, e que sejam publicadas, pois aspiro a que sobrevivam à minha morte, malgrado os homens e –– mais tardios e justos –– os tempos venham condenar ao ostracismo e à inexistência a sua substância factual. O que gravei, esteja entre aspas se eu já estiver morto.”

 

 

FIM

 

Divinópolis, janeiro de 2002.

 

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