A
RETRATISTA
“Um... dois... três... Estas
crônicas são expiatórias, por isso as inicio
confessando-me. O que em mim germinou como sentimento criativo
e imaginoso sempre me colocou diante de cismas e
encruzilhadas, e me fez antever tropeços, fracassos, desânimo.
Ora, jamais prezei viver assim sopitado e aflito, à sorte dos
episódios intensos, imprevisíveis e inomináveis! Tentei
enfrentar o desassossego e a nulidade de meu espírito, mas quão
mais poderosos foram meu torpor e meu medo de perseverar, e
como, inseguro, não me atrevi a ir adiante! Mas onde é que estavam meus espelhos, que não me
enxerguei? Pois bem, a quem não se vê só resta enganar-se a
respeito de si próprio, e aí soçobrei ao primeiro porvir,
pois pensei compreender o que não compreendia. Cri que
amealharia com rastelo tesouros à flor do chão –– mas
estão incrustados em galerias escuras e lúgubres, nas
profundezas ocultas da alma. Assim, sem mais conjeturar ––
mesmo porque foram conjeturas justamente a me precipitar no
negrume do abismo de humanidade a que me mostrei incapaz de
tatear, luminar e galgar ––, contentei-me em viver às
escuras, por longo tempo, em plena luz do sol. E assim teria
sido até o fim dos tempos, não fosse a
indiferença do destino trazer-me o que afinal me trouxe.”
“Estas crônicas narram a minha existência, ou a minha
história –– quando já se sabe desta o fim, teme-se pelo
fim daquela. E que ninguém, depois de
conhecê-la, jamais creia poder se furtar a passar por
esta vida sem se dobrar aos furores demoníacos do
desconhecido.”
1
O “Lord Jim”, de Conrad, foi
o primeiro livro que me dei. Lembro-me de como
eu amava a sua capa muito branca e dura,
ostentando no centro de uma elipse de
contornos imprecisos a gravura da nau de velas
enfunadas que parecia singrar pela alvura diáfana
de um céu! A beleza e a formosura dos livros
foram o meu fascínio de infância, a razão
primeira e única do amor que a eles devotei.
Seduziam-me a sobriedade das brochuras, a
exuberância das ilustrações e das capas, as
lombadas cunhadas em ouro ou prata,
combinando-se entre si nas estantes, a
sonoridade dramática dos nomes de escritores
e obras –– atrativos sumamente
harmonizados no meu “Lord Jim”. A aprovação
de meus pais ao que acreditavam ser um precoce
gosto por literatura, manifestado de modos tão
naturais, me enternecia e mimava. Na verdade,
tinham-me em alta conta por tais inclinações,
esforçavam-se por munir-me de livros,
levavam-me a livrarias e bibliotecas, e isso
parecia, afinal, redimi-los das rudezas do berço
inculto. Àquele tempo, ocupava-me com rituais
domésticos e escolares, a fugacidade dos
prazeres e pavores da meninice, e em cumprir
tarefas para ser bom filho e granjear
reconhecimento e estima –– assim, fui
tangido desde pequeno a viver entre adulações
e chantagens, conquistando com truques lúdicos
a ternura dos mais afins, e ia me enleando aos
confortos e benesses daqueles tolos ardis.
Era verdade que amava os livros
e cultuava seus encantos estéticos, mas lê-los
–– muito embora eu o tentasse com ímpeto
e me saísse bem pelas primeiras páginas –– quase sempre me trazia problemas. Quanto mais me movia
a ânsia para a leitura, mais dela me demovia
a modorra –– os livros eram como soníferos!
Lia por dever de ofício. Isso significava
semanas a fio cochilando sobre as leituras
obrigatórias da escola, cobradas nos exames
de Português; a dificuldade de entregar-me a
elas mostrou-se afinal intransponível para
minha natureza angustiosa, sempre a sovelar-me
com antevisões exasperadas, dispersando-me,
pondo-me em fuga, abrigando-me junto às
veleidades do ócio. Não faltasse, então, o
exemplo e o conselho de um letrado, e talvez
me submetesse ao treino obstinado que os
livros exigem de qualquer neófito que padeça
das preguiças do intelecto e do espírito.
Temi pelo fim da fama de filho filósofo,
cismando que minha pantomima não convenceria
por muito tempo. Admirar e colecionar livros,
sem que me prestasse a lê-los, comentá-los,
recomendá-los, soava-me um logro por demais
descabido. Não supunha que minhas artes
enchiam olhos de quem na vida pouco ou nada
lera, e em cujos espíritos os livros talvez não
suscitassem mais que curiosidades e pareceres
frívolos, como sua importância para os
homens de gênio ou as principais obras de
algum escritor popular –– não mais que
alegorias carregadas de apelos doutos, mimos
para o adorno do espírito ou o prestígio da
pose. Sentiam-se satisfeitos ao ver-me lendo
–– fingia-o, quase sempre, rodeado de
livros ––, e isso bastava. De todo modo,
acobertei tacitamente minha bibliofilia manca
à guisa de prosseguir gozando algum afeto
familiar. Não que aquela vida de agrados
valesse algo diante do amor por meus preciosos
livros –– creio mesmo que não me custaria
morrer por eles ––, mas como saber, ali,
quais impalpáveis medos ou langores de caráter
a vinham tornando imprescindível para mim?
Deu-se o mesmo com a música.
Assoviava marchinhas carnavalescas desde lá
pelos meus três anos –– a predileta era o
“Alá-lá-ô”, que eu também cantava
dentro do lotação, menino de colo, vexando
minha mãe. Meu pai levava-me aos Concertos
para a Juventude no Teatro Fênix, e não
escondia o orgulho que lhe causava o meu
entusiasmo durante a cena imponente e luminosa
de uma orquestra em tutti, atroando num
pique delirante, rumo ao uníssono do gran
finale. Orientou-me mais tarde para o violão
clássico, e eu já ansiava por me tornar músico
talhado ao cabo de meia dúzia de aulas. A
incapacidade de fazer-me instantaneamente um
virtuoso, não obstante o ouvido absoluto e os
dons musicais um tanto mais sinceros e
aflorados que os literários, levou-me logo ao
desdém e à pachorra, mas o pequeno repertório
que executava já fazia de mim uma talentosa
promessa aos ouvidos da família. Prossegui
sustentado por elogios dos parentes e suas
perfumarias de salão, e é verdade que
galguei algum progresso. Quando compus as
primeiras canções, ao tempo em que enfim
desvelava-se, em meio à insensatez da adolescência,
o desejo de perseverar no estudo e na profissão
da música, fui alertado sobre as luas de penúria
e promiscuidade que governam as marés da vida
de artista: aquilo não era trabalho para mim,
já prometido à universidade, mas mera dileção.
Passei, tempos depois, a colecionar
partituras, exibidas como ícones de mão nos
cinemas e bares por onde eu perambulava, e com
as quais adentrava as salas de concerto, para
seguir –– mais perdia-me –– pelas
pautas a execução das peças.
Estudei publicidade e tornei-me
crítico de arte. O ofício proporcionou-me
razoável prazer. Fui bajulado por artistas,
produtores, senhores da mídia, da indústria
cultural e da política. Canonizei muitos ídolos
–– e a quase todos pulverizei com um
sucessor. Peguei-me enfim ao comando, nada me
escapava ao controle, e com isso desfrutava
poder, segurança e sossego. Terminei por
converter-me eu mesmo à crença em meus próprios
embustes, e um bem-aventurado colecionador de
mediocridades, máscaras, invólucros e aparências
medrou na profissão dessa fé. Amigada aos
pendores para o discurso fluente e aos
referendos de uma racionalidade imbatível,
minha obsessão pela superficialidade fez de
mim um homem respeitado pela maestria artística,
amplidão cultural e erudição inconteste.
Detectar, num ou noutro amigo, lanho que fosse
de desabono para com meus atributos artísticos
e intelectuais engendrava entre nós um
afastamento prudente, um trato frívolo.
Com o tempo, a maturidade foi-me
salvaguardando das paixões, fazendo-me
intolerante, em medida cada vez maior, para
com as excitações do espírito. Acometiam-me
de um frêmito sufocante e anóxico, logo
insuportável. O destino de tais acessos
invariavelmente surgia, por um lampejo enigmático
e súbito, na forma de uma fétida lixeira: eu
mesmo a sustinha, enquanto destampava sua
imensa boca e balbuciava, patético, sob o
buliçoso vozeio interior, confissões e
sentenças que condenavam meus próprios delírios
ao degredo pelos confins do esquecimento, de onde ––
eu supunha –– jamais retornariam.
Tampava a lixeira.
2
Contava trinta anos quando me
deparei com uma bem acabada edição inglesa
do “Lord Jim”, enquanto garimpava
prateleiras num sebo de livros na Saara à
procura de partituras para violão de
Villa-Lobos editadas na França nos anos
quarenta. A seu lado, aberto, obtuso, um velho
álbum de retratos exibia fotografias de
paisagens marítimas e costeiras. Contemplei
as imagens com certa demora indecisa, de que o
imprevisível costuma fazer-me refém, e
debrucei-me, enfim, sobre o álbum ––
tratar-se-ia talvez de algum documentário
sobre as viagens do marinheiro-escritor.
Fotografias antigas, sem dúvida obtidas pelo
emprego de técnicas arcaicas. Encontravam-se
surradas e carcomidas, e luziam saturadas de
nitrato de prata. Eram muitas e grandes ––
pude ver enquanto manuseava o compêndio com o
embaraço que o seu peso me impunha –– e
jaziam sós, dispostas uma a uma sobre páginas
de papelão verde-escuro e rígido, separadas
por folhas opacas de papel de seda perolado.
Umas mostravam marinas oceânicas ornadas de
carnaubais e dunas, outras exibiam um casario
tosco de vila –– do mar avistado miúdo no
sopé das serras emparedadas e longínquas, ou
ladeando as ruelas de areias e cercas, ou
quando se lhe revelavam os interiores de
umbros e claros, cozinhas enfumaçadas, portas
e esteiras mal dependuradas no adobe ou no
pau-a-pique, alpendres entremeados de redes e
cães modorrentos, quintais ralos e vastos
onde as cabras debruçavam-se sobre comedouros
sombreados por cajueiros e algarobeiras.
Infindas e lamacentas nesgas de manguezais e
estuários apartavam a terra do mar, e ainda
se viam flagrantes –– fortuitos? –– de
fé e festas, quermesses, funções, enterros,
fanfarras. Adiante, grandes clãs expunham
troncos arquétipos e marcas de consangüinidade
endêmica; e havia rostos solitários de
incontáveis idades e humores. Os últimos
retratos mostravam novamente agrupamentos
familiares, e não percebi de imediato que se
tratava de registros de velórios.
Alternavam-se as poses, a partir daí, sempre
pareadas e respectivas: as primeiras, nas páginas
esquerdas, exibiam os defuntos ladeados pela
família –– pendidos por entes, mal
arranjados em cadeiras, ou quase de pé dentro
dos caixões aprumados ––; à direita
destas, as segundas estampavam os seus rostos
em tamanho quase natural. Alguma aquarela
colorizava parte da coleção, redefinindo
contornos fugidios de paisagem, acentuando a
expressividade dos semblantes, criando adornos
inexistentes –– botões, broches, brincos,
laços, gravatas, camafeus –– ou
vivificando naturezas-mortas esmaecidas em
cestos, gamelas, bules, penicos. Havia uma
inscrição quase invisível no rodapé da
contra-capa ensebada do álbum. Um nome, um
lugar, uma data:
“ALVA,
TURIAÇU, 1931”
Desejei me livrar sem demora
daquelas estampas, impelido aparentemente por
algum desalinho interior. Corri uma vez mais
os olhos pelo álbum com dissimulada displicência.
Uma espécie de prurido me fez parecer sensato
despender algum esforço para coçar-me. Levei
incontinenti as mãos à altura do pescoço,
uma após outra, buscando alívio para o que
desencaminhava minha manhã e subvertia os
meus metódicos intentos musicológicos.
Imaginava sentir ferroadas miúdas, decerto as
mesmas pontadas de desconforto que precediam a
configuração mental da grande lixeira e me
eram já estupidamente habituais. Logo, porém,
sentimentos estranhos desalojaram-me do
costume, insurgindo-se no cárcere da alma
para me embevecer e amedrontar. O velho álbum
era já para mim um conjunto aterrador de
imagens, e suscitava-me desolação e morte a
contemplação daqueles retratos. Ao mesmo
tempo, uma beleza de encanto feérico os
embalsamava, mantinha-os vívidos e
resguardados de todo intemperismo. Tanta
eternidade evocada por imagens do que talvez
nem mais existisse! –– como a estrela já
explodida e morta, mas cujo brilho, viajando
anos-luz pelo cosmos, a faz cintilar nas
noites do futuro. Envolto, num espanto fantasmático,
pela sensação de que minha mente projetava
miragens, julguei ver lugares e gentes
despregando-se como fátuas quimeras, as almas
todas do povo, de pedras, seres e águas,
desencarnando-se e lá se indo não sei aonde,
alhures, ao mesmo nada de onde vieram. Almas
que alguém havia capturado naqueles retratos
impressionantes –– e eu as libertava, eu
profanava tumbas do tempo enquanto
esquadrinhava as imagens e ansiava por
pacificar meu espírito. Como se me
avizinhasse o peso dos anos, a juventude
divisada da velhice –– não imaginara
acareação tão prematura ––, um mundo de
tempos e espaços perdidos, o perceber as
coisas, o aqui e o agora,
quando já não são mais que o ali e o
então –– o verbo da mocidade não
mais ouvido ou murmurado, nem antes, talvez
nunca nem nunca mais o enlevo telúrico da
vida alvorecida pelo sol do amor, o amor viçoso
e sonso dos moços; ali, diante daqueles
retratos, como a velar e carinhar, com o coração
inconformado e doído, a feição serena de um
rosto morto, o que via fazia-me sofrer e
ansiar ante a finitude de tudo. Experimentava
uma brutalidade sem paralelo. Quando vida e
morte se fizessem conhecer aparentadas, irmãs
de sangue, siamesas –– talvez no
padecimento dos rituais de passagem, ou quando
os filhos se vão prematuros do mundo ––
quem sabe fosse dado a alguém reconhecer tal
fúria.
O ar invernal da manhã
evolava-se pelos aromas monásticos da loja,
recendia a papel velho. O cheiro acre do bolor
imiscuiu-se na poeira suspensa, subiu-me
primeiro pelas narinas, senti-o depois nos
sinos, e fez-me chorar. A impressão urticante
daquele choro anódino e fisiológico aumentou
meu desassossego. As lágrimas embotaram a visão
sob os óculos e embaçaram ainda mais a aura
das imagens, mas me emprestaram um terno e
sincero desamparo, que terminou por me
confortar. Assim, entreguei-me à sensação
morna de sobreviver ao pânico. Senti a
tepidez de um degelo. Afastava-me de mim,
perdia-me. Cingia-me já um prazer liquefeito,
imenso e surdo como o fundo de um lago, e a idéia
de recusar-me a configurar na mente a visão
da lixeira boquiaberta ocorria-me em átimos
freqüentes, tanto mais eu debandava de minha
sensatez sitiada, abandonando-a à mercê de
hordas de pulsões coléricas e confusas.
Vi-me irremediavelmente desgarrado, e de modo
tão inexorável e real que não mais me
causava horror, mas alívio de purgação;
talvez –– era difícil nomear sentimentos
tão insubmissos –– como quando, deitados
sob marquises, os pivetes sem casa encontram o
sono.
3
Os mangues do Turiaçu não mais existiam. Dos que por lá
habitaram pouco ou nada se assuntava de seu
paradeiro, nada se contava sobre se alguém os
valia, se ainda viviam, e o certo era que,
mais dia, menos dia, quase todos se houvessem
banido de lá desde a tragédia, desde o
desastre: fora-se o pescado, o caranguejo, o
sustento –– a
vida se esvaíra dos mangues como a seiva
exsudada de uma árvore que se foi
ressequindo. A realidade sobre o mundo da
retratista, trazida à tona por recentes
pesquisas, era tão evidente quanto inaceitável.
Minha inclinação para rejeitar o óbvio e
fidedigno levou-me, portanto, à decisão de
empreender meu intento. De sandice de velho,
glosada comumente pelos mais chegados com
estudado sarcasmo, a viagem ao Turiaçu –– um ponto
no litoral do Maranhão –– logo era um projeto inadiável para mim. O
desejo de posar para Alva, de ver-me num de
seus retratos e por seus olhos talvez
enxergar-me e saber-me, antes acalentado como
um devaneio de senilidade, agora ardia-me como
febre de fome. Nada comentei sobre os propósitos que me lançavam àquela lonjura; de
certo modo também nada segredava, pois esse
anseio era misterioso e indecifrável para
mim. Com o tempo, perceberam-me outro,
transtornado, débil e deprimido. Tinham-me
enfim por insano, decrépito –– onde já se vira, septuagenário pacato e cordato dar asas
a tamanhos arroubos, lançar-se em viagem tão
longa com destino ao inóspito! E a vista? E a
artrite?
Tentaram em vão demover-me da
empreitada com os mais sombrios prognósticos.
A vida apequenara-se. Parecia não mais estar
ali –– ali onde morava, trabalhava e
passeava, nem mesmo nos itinerários e
ambientes mais corriqueiros de minha existência,
em mim mesmo. Minha visão definhava com o
glaucoma –– eu não tardaria a ficar cego.
Tomou-me a convicção delirante de que Alva não deixara o seu lugar.
Corriam os primeiros dezembros nortistas quando finalmente
aportei no Turiaçu, num rebento de aurora
que, nem bem surgiu, expirou asfixiado pelo
mormaço. Pelos mangues o dia jazeu natimorto
e por fim elevou-se branco de névoas e
claridade, ascendeu num fulgor baço e
lancinante, como a luz cândida que emanava
das dunas, as mesmas
retratadas
por
Alva –– diante do meu assombro (eu as divisava do barco, ainda ao longe,
justapondo sobre elas o velho álbum, que
mantinha aberto à altura da vista),
erguiam-se como portais de um templo. A vila
parecia também ser quase a mesma!
Desvaneceu-se ali o medo de que nada pudesse
estar onde estivera no tempo dos retratos. A exaustão
fremia-me o corpo. De São Luiz trazia de
muitas fontes uma só notícia: nada, ninguém
habitava mais o Turiaçu e suas águas mortas.
A custo de propina convenci um arrais a
levar-me à baía do estuário –– lá haveria o pequeno cais ––
e tratei o retorno para São Luiz dentro de três
dias. Minha equipagem resumia-se a uma mochila
com alguma roupa, comida e água, e uma
pequena canastra com lanterna, papel, caneta e
gravador. Ao pescoço pendurei uma câmera.
Antes de partir, arvorara-me a desenhar um
croqui de mapa com locações referenciais:
casas da vila, o cais e o velho trapiche, o
rio que despenca das serras e adoça o estuário,
o manguezal, as dunas errantes. Assinalara
também o local onde supunha ser a casa de
Alva ––
à medida que minha chegada foi
desmistificando a paisagem, tornou-se evidente
a coerência das abstrações que minha
imaginação construíra na contemplação dos
retratos. A aproximação pelo mar, a
cabotagem, as manobras no cais, a terra firme ––
e eis o reino que Alva,
a retratista do Turiaçu, perenizara num réquiem
imagético, antes de tudo virar nada.
Ainda assim, um outro mundo... Visadas longínquas
e pausadas em todas as direções possíveis,
enquanto me dirigia à colina no costado da
vila em busca da casa da retratista, não me mostraram viva
alma.
O rumorejo do motor do barco dissipou-se
lentamente, até emudecer-se pelo vazio da
enseada.
Lá estava ela ––
a choça de Alva, ainda de pé sob o dia
branco, encarapitada na grimpa do morro. A
subida da encosta fatigou-me. O vento
fustigava meu rosto e me fazia curvar. Uma
solidão imensa e fria derramava-se como
chuva, enregelava-me. Adentrei o casebre e o
percorri por inteiro. Ninguém. Era domingo. Não
percebi desapossar-se de mim a idéia de que
aquele dia mal existira. Acocorei-me ao pé do
cercado que a partir da portinhola da cozinha
demarcava para os fundos um quintal arenoso,
onde roupas esfiapadas ainda flanavam no vaivém
dos varais, e esperei pelo viço da noite,
pelo frescor das lamas e dos perfumes
salobros. Então sonhei Alva, desde quando
prestara atenção ao mundo, ainda esquálida e desgrenhada, costumando dali
abandonar-se, a espraiar sobre as tardes o
olhar contrito do semblante, quando a quietude
adensava-se e as primeiras jangadas zarpadas
do pontal já cabotavam no ofício noturno da
pesca. Não gozaria somente sabores e carícias
do vento vespertino, a percorrer-lhe o ser
como painas esgarçadas pela pele, por toda a
alma. Mais e mais exploraria o mistério das
horas dúbias do crepúsculo. Pontuaria o zênite
no céu, deslindaria o interminável oceano.
Aprenderia sobre luz e sombras –– e sombras de sombras, e cores de cores –– miríades
cambiantes de tons ela descobriria pelo ouro
das águas ou na aspereza monolítica das
serras distantes. Desvendaria, no exercício
da contemplação, os segredos dos ângulos e
suas ilusões ardilosas, a perspectiva, a fuga
e o enquadramento, a altivez e a fundura do
mundo e de si.
O velho álbum voltou-me mais uma vez às mãos.
Reencontrava nos retratos a paisagem que do
alto eu contemplava. Tudo parecia ocupar seu
devido lugar. Eu me senti parte daquela conjunção
de mundos, como se me fosse tão perfeitamente
lógico estar ali, tanto quanto o era para os
seixos, as dunas ou as águas. Relendo o nome
garranchado na contra-capa puída, conjeturei
pela primeira vez se o “M” mal escrito e
apagado se passaria por um “V”, reparando
ali o engano que, de tão caprichoso e por tão
longo tempo, me fizera desconhecer o
verdadeiro nome da retratista. Alma. Fazia
sentido. Havia ainda farrapos esgarçados de
luz pela vastidão umbrosa da tarde. Fiz então
meus primeiros retratos.
4
“Foi-se a visão –– vislumbro apenas enormes
manchas sombrosas; o corpo entrevou-se deitado, e cansa-me
endireitar a postura da carcaça para narrar ao gravador. Consumi as
derradeiras forças da vista e dos membros no esforço de escrever
estas crônicas, que a inquietude da alma e a proximidade da
cegueira me obrigaram a contar. Passo os dias a ouvir
zunidos –– não sei se
cigarras nas carnaubeiras, ou o silêncio que o vento traz dos
mangues distantes –– que me fazem espichar o pescoço para o mar,
acurar a audição irrequieta e buscar à larga um sinal qualquer.
Nada vejo. Repito o ritual um sem-número de vezes: o sonido chia
por toda a cabeça e então me dou conta de que uma perturbação
vibrante me toma por inteiro. Coisas de velho. Lembra-me o apito
surdo dos barcos distantes, no mar, pontilhando o horizonte do cais,
uns chegando, outros partindo. Nada vejo.”
“Não retornei para o encontro com o arrais, e
imagino que meu desaparecimento não demore a ser noticiado às
autoridades. Talvez venham me resgatar. Não sei ao certo há quanto
tempo estou no Turiaçu retratando seus dias alvos. O tempo tem hoje
para mim a sua própria dimensão, que é a das horas que correm por correr, destituídas de qualquer
sentido, sem serventia, desfiguradas, cujo valor não vai além do
seu peso exato e genuíno, o tempo
do tempo –– como caminhar, caminhar e nunca chegar.”
“Os
retratos e as crônicas que aqui nasceram são tudo o que lego de
minha existência, pois no seu fazer eu me reconheço, embora jamais
volte a ler, a ver... De qualquer modo, o verdadeiro conhecer-se a
tudo descorporifica; descobrimo-nos seres de rostos oníricos,
criados à imagem de um sonho vão. Ao fim da vida, ainda me
encontro cego e perdido.
Queda-se enfim o misterioso véu, de mim mesmo contemplo a sombra da
face –– nunca o meu verdadeiro nome, porém, eu saberei.”
“A retratista tem me visitado. Diz-me ser velha e
mameluca, como eu a fantasiei nesses anos todos. Sinto sua presença,
posso roçar-lhe as rugas e ouvir os sussurros de sua respiração,
como se a tivesse bem perto.”
“O
zunidos pairam sobre minha cabeça. Cansam-me, causam-me estertores
tremendos. Existe o momento de parar... A quem encontrar esta gravação
rogo providenciar a transcrição do seu conteúdo, bem como a
revelação dos retratos que aqui fiz. A sua reunião aos rabiscos
que acompanham a fita no interior da canastra é também necessária.
E que a estas crônicas se dê algum formato, e que sejam
publicadas, pois aspiro a que sobrevivam à minha morte, malgrado os
homens e –– mais tardios e justos –– os tempos venham
condenar ao ostracismo e à inexistência a sua substância factual.
O que gravei, esteja entre aspas se eu já estiver morto.”
FIM
Divinópolis, janeiro de
2002.
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