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Concretismo


 


A certeza da influência


(in Caderno Mais! - Folha de São Paulo, 08.12.96)
 


Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos avaliam os 40 anos do movimento
 

A Folha de São Paulo realizou entrevistas por escrito com os três principais representantes do concretismo, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Nas respostas — as perguntas foram as mesmas para todos —, eles conceituam o movimento, comentam — e criticam — as avaliações que receberam e analisam a poesia brasileira atual.

Folha — Qual a mais sucinta definição da poesia concreta? O que faz um poema ser concreto e não, por exemplo, expressionista, dadaísta, surrealista etc? Um poema concreto "stricto sensu" é necessariamente visual?

Décio Pignatari — Em 1907, Picasso conclui o quadro sobre aquelas senhoritas da rua Avignon, em Barcelona. Imagine-se — 40 anos depois — alguém perguntando: "M. Picasso, que é cubismo?". Uma das respostas possíveis, dentre as bem-educadas, poderia ser: "Connais pas". Ou então: "Pergunte ao Raynal (Maurice). Ou ao Read (Herbert). Ou (daqui a alguns anos), ao Greenberg (Clement)". Aos interessados de verdade (que não constituem multidão), lembro que há mais de três décadas pode ser encontrado na praça o volume "Teoria da Poesia Concreta" (Brasiliense), devidamente atualizado, de nossa autoria. Quanto à segunda pergunta dentro da pergunta: por que Brasília não é Nova York? Quanto à terceira: a ênfase inicial no visual deveu-se à idéia de assinalar a ruptura com a unidade-padrão tradicional da poesia, o verso. Visual básico: "lettering & layout". Acrescentem-se: voz, som, cor, movimento, materialidade real (objetos, esculturas), materialidade virtual (holografia), elementos não-verbais (icônicos).

Haroldo de Campos — A melhor e mais sintética definição de "poesia concreta" (correspondente à fase "geométrica" ou, como se pode reconhecer a posteriori, "minimalista" do movimento, aquela que traduz na prática as propostas do plano piloto de 58) é a formulada por Octavio Paz em "Transblanco" (Siciliano, págs. 110-111): "Os senhores descobriram —ou inventaram — uma verdadeira topologia poética.

À parte dessa função de exploração e invenção, a poesia concreta é por si mesma uma crítica do pensamento discursivo e, assim, uma crítica de nossa civilização. Essa crítica é exemplar. (...) A negação do discurso pelo discurso é talvez o que define toda a grande poesia do Ocidente, desde Mallarmé até nossos dias. (...) A poesia moderna é a dis-persão do curso: um novo discurso.

A poesia concreta é o fim desse curso e o grande re-curso contra esse fim". Em outros termos, a poesia concreta seria a réplica "verbivocovisual", numa língua alfabética, da poesia ideogrâmica chinesa, re-imaginada e atualizada no horizonte da modernidade. O sinólogo e comparatista Eugene Eoyang (Bloomington, Indiana) pôde por isso escrever: "O chinês é, de todas as línguas modernas, a mais concreta. O que o poeta concreto contemporâneo empenha-se em realizar é precisamente o que muitos poetas da tradição chinesa efetuaram naturalmente por séculos".

Augusto de Campos — Tecnicamente, poesia concreta é a denominação de uma prática poética, cristalizada na década de 50, que tem como características básicas:

a) a abolição do verso;

b) a apresentação "verbivocovisual", ou seja, a organização do texto segundo critérios que enfatizem os valores gráficos e fônicos relacionais das palavras;

c) a eliminação ou rarefação dos laços da sintaxe lógico-discursiva em prol de uma conexão direta entre as palavras, orientada principalmente por associações paronomásticas.

Tal prática concentra e radicaliza propostas anteriores que percorreram difusamente os movimentos de vanguarda do início do século (futurismo e dadaísmo, em especial), retomados nos anos 50 com mais rigor construtivista. Essa é mais ou menos a fisionomia com que nasceu a poesia concreta, tal como praticada pelos brasileiros do grupo Noingandres e por Eugen Gomringer (este, menos interessado na dimensão sonora).

Posteriormente, ela abriu espaço para outras modalidades de poesia visual, que passaram a incluir elementos não-verbais (desenhos, fotos, grafismos). A poesia concreta brasileira, que consubstanciou uma das práticas mais ortodoxas e construtivistas, aventurou-se também por essas sendas (ex: os poemas sem palavras -os "semióticos" de Pignatari ou o meu "olho por olho", experiências dos anos 60), diferentemente do caso de Gomringer, o qual, que eu saiba, se manteve sempre fiel à ortodoxia da fase inicial.

Folha — Haroldo de Campos, em entrevista ao programa "Roda Viva", na TV Cultura de São Paulo, optou por uma definição ampla, segundo a qual toda grande poesia seria concreta. Isso não é muito genérico, tornando o movimento da poesia concreta sinônimo de algo como "movimento da grande poesia em geral"?

Décio — Parafraseando Borges: todo movimento poético inovador cria os seus próprios precursores. A poesia concreta utilizou aportes tecnológicos e radicalizou vetores da arte literária experimental destes últimos cem anos (em 1997 celebra-se o centenário de "O Lance de Dados", de Mallarmé). Em função dessa operação, criou também um crivo seletor das manifestações poéticas do passado. Dessa forma, pode-se falar não de concretismo, mas da concretude de certos lances da produção literária passada ou contemporânea.

Folha — Segundo sua definição restrita, um poema concreto pode ser ruim, ou o rótulo já garante sua qualidade? Um mau poema concreto é necessariamente melhor, mais moderno, mais afinado com a história do que um bom soneto, ambos escritos hoje?

Décio — Qualquer obra específica, mesmo quando derivada de um bom programa ou boa proposta, pode ser ruim. Trata-se do processo de passagem de uma estrutura para uma conjuntura, de um desgaste da "tradução" de uma informação de alto repertório para outra de repertório restrito. O mundo está cheio de medíocres obras simbolistas, cubistas, dodecafônicas, neoplasticistas, concretistas, cinemanovistas, nuvelevaguistas, eletroacústicas, cagistas, surrealistas. Atenção, porém: é preciso estar atento e forte. Há casos de "naifs" de vanguarda, de primitivos avançados, mesmo na área literária, que merecem consideração. A própria poesia concreta pode apresentar um caso desses: trata-se de Ronaldo Azeredo, o Rousseau da poesia concreta (aos leigos: o Henri Rousseau, amigo dos cubistas, não o grande pensador do Iluminismo francês). Aqueles que se classificam acima da mediocridade adoram (re) descobrir esses talentosos marginais.

Prestam, em verdade, importante serviço cultural, mas não derivam as conseqüências necessárias de seu entusiasmo e de suas descobertas. Exemplo: os cineastas brasileiros se recusam a filmar roteiros elaborados por outros. Resultado: o Brasil não tem, nem preza, os roteiristas, em qualquer área. Transponha-se o fenômeno para a MPB: ou o letrista-roteirista se mata (Torquato Neto), ou vira cronista de jornal (Aldir Blanc). Mas o grande Orestes Barbosa é o patrono deles. Outro exemplo: as histórias em quadrinhos não avançam no Brasil porque não há roteiristas. E os cartunistas e quadrinistas estão cada vez piores... Mas são coisas nossas os poetas musicais: Noel, Maísa, Vinicius, Caetano, Chico. Até Jobim fez um prodígio neste país de bacharéis e analfabetos: "Águas de Março". Alguém não se dispõe a contar a história dos nossos compositores puros?

Augusto — Um mau poema (concreto ou não) é um mau poema é um mau poema. Agora, as formas também se esgotam e se convertem em fórmulas. Há procedimentos da poesia concreta que já se exauriram e tendem à repetição. Mas ainda maior é a exaustão de formas e fórmulas do passado, que foram exercitadas ao longo de muitos séculos pelos maiores poetas de todas as línguas. O soneto é uma delas. Quem o quiser praticar, hoje, tem que se medir com Dante, Camões, Shakespeare, Mallarmé, Rimbaud, Hopkins, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos etc. etc. etc.

Não há maior pecado para um poeta do que refazer em linguagem medíocre o que já foi feito melhor por outros. Só o humor e a metalinguagem podem dar vida, hoje, a uma forma já tão recorrida e esquadrinhada. O soneto sob o signo da paródia. É o que eu chamei de "soneterapia"... Ou, quem sabe, algum derradeiro sopro, algum "antique" reciclado em linguagem moderna, como os que contrafez Cummings (um último competentíssimo competidor), desmontando a relojoaria do soneto com os seus deslocamentos sintáticos e as suas atomizações vocabulares.

O soneto tem muito passado e pouco futuro. Por outro lado, é inegável que as estruturas formais propostas, não só pela poesia concreta, mas por toda a prática da poesia da modernidade, têm muito mais sintonia com a ambiguidade espaço-temporal, os ritmos, os conceitos e as provocações da nossa era.

De todo modo, eu nunca preferiria um mau poema concreto a um bom soneto. O difícil é encontrar um soneto escrito, hoje, com a originalidade que se requer de qualquer bom poema.

Folha — A poesia concreta era a única opção historicamente certa ou havia e há outras possibilidades igualmente válidas? Se valer a primeira alternativa, então a poesia brasileira contemporânea seria melhor do que as outras que não optaram por esse caminho? Caso contrário, quais seriam as outras opções que teriam dado certo, inclusive no Brasil?

Décio — "O gênio é um erro do sistema", disse Klee. Mas eu tenho quase pronta uma quase-teoria dos Impulsos Criativos Contextuais (ICC), segundo a qual todo e qualquer indivíduo ou grupo pode otimizar a sua capacidade de competência e desempenho se os tempos, os locais e as circunstâncias forem propícios. É uma espécie de teoria da anunciação-sem-deus: quando algo novo se revela, no espírito ou na técnica, as aves da criatividade voam pelas portas e janelas abertas da gaiola da ignorância e da conformância.

Qual teria sido a outra opção para a bossa nova? Ou para Brasília? Ou para o Sputnik? Ou Pelé e o primeiro título mundial de futebol? Ou o Masp, o MAM, a Bienal, a Vera Cruz, o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia)? Ou a condessa Pereira Carneiro, o "JB", o Mário Faustino? Ou a Cinemateca e o Festival Stroheim? Ou os primeiros sons eletroacústicos trazidos por Koellreuter? Ou a presença de Max Bill, Boulez, Calder? Ou Lúcio Meira e a indústria automotiva?

Augusto — Seria pretensioso dizer que a poesia concreta era a única opção. Nem me cabe, como um dos protagonistas do movimento, fazer eu próprio esse tipo de avaliação ou de julgamento.

É certo, porém, que a poesia concreta não nasceu por geração espontânea ou mera idiossincrasia. Nem foi algo tão isolado. Ao contrário, foi um movimento internacional, translinguístico, que teve ressonância em poetas de muitos países, do Ocidente ao Oriente. A novidade é que os brasileiros estiveram, desde a primeira hora, envolvidos com essa experiência, como fundadores do movimento, que surgiu de uma necessidade histórica — a da retomada, na década de 50, das propostas das primeiras vanguardas.

A renovação da linguagem artística, operada entre o fim do século 19 e o início deste, fora interrompida pela intervenção traumática das duas grandes conflagrações undiais. Após a Segunda Guerra houve em todos os campos artísticos um movimento no sentido de recuperar aquelas propostas que o nazismo e o stalinismo haviam marginalizado como "arte degenerada" e "arte decadente". Em música, se deu a reabilitação da Escola de Viena e da obra pioneira de Ives, Varèse e outros, tendo o minimalismo radical de Webern como ponto de partida. Em artes visuais houve a retomada das propostas radicais da arte não-representativa.

Em poesia cumpria resgatar a revolução iniciada por Mallarmé ("Un Coup de Dés") e ampliada por Pound, Joyce, Stein, Cummings, Apollinaire e os movimentos de vanguarda das primeiras décadas. Tratava-se de prosseguir na desmontagem das estruturas verbais do discurso contratual, insuficiente para abranger o universo da imaginação e da sensibilidade.

Desautomatizar a linguagem (a "revolução surrealista" deixara intactas as estruturas do discurso...) e revivificar as palavras, a partir da sua materialidade elementar, visual e sonora. Sintonizar a prática poética com o nosso tempo, no limiar da era tecnológica. É possível que a própria "excentricidade" da poesia brasileira em relação aos grandes centros universais nos tenha dado uma perspectiva diferenciada e peculiar, pois, na verdade, nos anos 50, os poetas franceses e hispano-americanos continuavam surrealistas, ignorando Mallarmé, e os norte-americanos, os "beat", também tendiam ao surrealismo, sem levar em conta o objetivismo de Pound ou Cummings.

Sem pretender que a poesia concreta tivesse sido o único caminho, não posso recusar a evidência de que demos uma contribuição original, paradoxalmente mais avançada do que a de muitos outros centros importantes, onde a consciência desses novos processos poéticos só se afirmaria no fim dos anos 60 e nem sempre com a vitalidade do movimento brasileiro.

Folha — Que poetas, hoje, de filiação não-concretista o sr. considera dignos de atenção?

Décio — Antes da poesia, a prosa, essa infeliz ugandense da miserabilidade criativa brasileira. 1956: data de lançamento conjunto da poesia concreta e de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, artefatos espaciais, avançados da cultura brasileira, revolução literária na América Latina, abominados até hoje pelos nacionalóides, stalinistas ou não.

Rosa safou-se via consumo da oralidade caipira e do anedótico de um amor gay no sertão do século passado.

Ninguém aprendeu-lhe a lição de fundo (Homero, Euclides, Joyce), excetuados os concretos, direta ou indiretamente trabalhando nas catacumbas da prosa brasileira, para preservar a linha-linguagem que vinha de Machado, Euclides, Oswald, Mário, a saber: a "proesia", das "Galáxias", de Haroldo; "Catatau", a melhor obra de Leminski; "O Mez da Grippe", de Valêncio Xavier, o primeiro romance icônico brasileiro; os meus contos sobre a ocultação do cadáver da estória, de "O Rosto da Memória", que inclui, de quebra, uma violenta peça teatral, "Aquelarre" (— campo do bode, em basco — sabá de bruxas, entre nós, cf. Goya), e "Panteros", um romance que acaba no meio (os três últimos estão a merecer novas edições, devidamente corrigidas).

Os poetas:

a) coetâneos nossos, bem conhecidos, que aceitaram o desafio e abriram raia própria de performance, entre o verso, a poesia concreta e a poesia visual (Afonso Ávila, José Paulo Paes);

b) poetas da geração seguinte, a de Leminski, com versos recortados e decupados

epigramaticamente, às vezes abeirando-se do que seria uma letra para música pop-brasileira (Sebastião Uchoa Leite, Duda Machado, Carlos Ávila, Antônio Risério);

c) adeptos programáticos da "poesia visiva", como Sebastião Nunes;

d) poetas de requintada metalinguagem hipotática, como Nelson Ascher;

e) poetas de volátil discurso logopaico, desenvolvendo o que denomino de "semântica musical" (Carlito Maia, Marco Antônio Saraiva). Mas o levantamento organizado da produção poética dos anos 80-90 está por ser feito.

Haroldo — A "poesia concreta" é o caso-limite da poética da modernidade. Isto não implica uma consideração axiológica (um juízo de valor), mas um critério histórico-literário, de evolução crítica de formas. Há poemas concretos de primeira linha, como também há diluições frouxamente concretas, tanto no Brasil quanto nos vários países para os quais o movimento se exportou.

Por outro lado, há poetas de grande nível artesanal, como nosso saudoso companheiro Mário Faustino, que desenvolveram, contemporaneamente à "fase heróica" do movimento, uma poesia em versos de alta qualidade, só no detalhe afetada pelo repertório de técnicas da poesia concreta (a qual, sem a ela vincular-se, ele prestigiou e promoveu em estudo memorável).

Folha — Na sua opinião o que ocasionou a dissensão neocroncretista? As divergências foram sobretudo ideológicas ou estéticas? Como o sr. avalia hoje a produção poética de Ferreira Gullar?

Décio — Enigma. Hipóteses vagas. Quem sabia algo um pouco mais sólido era Mário Faustino, que morreu pouco depois, sem deixar depoimento, que eu saiba. Mas o José Lino Grunewald, carioca da gema, pó-de-arroz das Laranjeiras, deu-me algumas dicas. Claro, preciso informar que o Zé Lino considera brega e aventureira qualquer pessoa que pinte no Rio em busca de praia ou emprego público ou notoriedade — ou tudo isso junto: maranhenses, baianos, americanos, paulistas, mineiros, paranaenses, gaúchos, gente da zona norte (Saenz Peña). Abria algumas exceções: Fritz Lang, Ênio Silveira e — principalmente — Chaplin (que tem por superior a Eisenstein), Bergman (guru-mor dos seus anos de tenista do Fluminense) e Godard (graças a quem sorri do alto para Julio Bressane), se por ali chegassem.

Nunca me teve em altíssima conta, mas condescendeu em aceitar-me, quando soube que, em 1944, no Amarelinho, eu adolescente, enquanto um crepúsculo parisiense caía sobre a avenida Rio Branco, tomava um solitário chope encantado, porque atrás de mim, em animada mesa, estavam Almirante, Lamartine Babo e Zezé Fonseca. O Zé Lino jamais vai à praia, ponto de honra. Tal como o fazia Nelson Rodrigues, tal como fazia Mário Reis, seus amigos. Em resumo, disse o Zé Lino: "Olhe, Décio, enquanto não acabar esse flaflu entre Rio e São Paulo, a cultura brasileira não prospera".

Folha — Quais as críticas mais pertinentes feitas ao movimento concretista e ao sr. em particular? O sr. reveria alguma posição sustentada taticamente pelo movimento? O sr. não teme que ocorra com o concretismo o mesmo que aconteceu com outras vanguardas, ou seja, tornar-se apenas um marco histórico e ter sua produção poética apenas por isso avaliada?

Décio — As críticas sempre foram impertinentes: alienada, formalista, elitista. Mas os ectoplasmas desses nosferáticos vagabundos do carreirismo tupiniquim desfaziam-se no ar à luz do nascer do sol, ante o corpo da virgem impoluta chamada poesia concreta.

Nada posso fazer para impedir esse lastimável congelamento histórico da fervente e fervorosa revolução que foi e é a poesia concreta. Consola-me saber que, em 2006, talvez possa haver mais uma comemoração. Uma coisa é certa: grandes eventos estão sendo preparados para a comemoração dos cem anos de "Um Lance de Dados", de Mallarmé, no ano próximo. Não é extraordinário que se festeje o centenário de UM poema?

Haroldo — Com raras e notáveis exceções (as críticas de Mário Faustino e Mário Pedrosa, por exemplo; a recepção sensível de Manuel Bandeira), a poesia concreta, em sua "fase heróica" (e mesmo ainda hoje), tem sido enfocada por críticos conservadores, esteticamente reacionários (Wilson Martins e Merquior são exemplos típicos), que a abordaram de maneira preconceituosa e destituída de interesse heurístico.

Mesmo uma pessoa de boa vontade, como Antonio Houaiss, num primeiro momento, deixou-se assaltar de espanto apocalíptico diante do movimento que eclodia. Em seu estudo "Sobre Poesia Concreta", apresentado primeiro como um elenco de dúvidas e objeções, quando da conferência de Décio Pignatari na sede da UNE (Rio de Janeiro, 1957), deixa-se levar por um equívoco de audição. Pretende que Pignatari teria postulado que a poesia concreta visava a "provocar um enxame de significações cerebrais".

O que Pignatari disse, e Houaiss ouviu mal, foi: a poesia concreta não pretende provocar "enxames de sentimentos inarticulados" ("swarms of inarticulate feelings"), expressão de Eliot, usada por Hugh Kenner para distinguir entre a poesia do próprio Eliot (mais palatável para um leitor à busca do onírico e do emotivo) e a de Pound, não "inspirada", que "pediria, antes, atos complexos de discernimento" do que a "imolação" sentimental do leitor ("The Poetry of E.P.", 1951, págs. 18-20).

De fato, Pound era um poeta das "essências e medulas", das "definições precisas", da poesia enquanto resultado da fórmula "dichten = condensare". Dessa linhagem procedia a poesia concreta (basta ler o meu texto-prefácio "pound paideuma" aos "Cantares de E.P.", traduzidos coletivamente por Augusto, Décio e por mim -MEC, 1960).

Dela nos reclamávamos, reivindicando-a. Quanto aos tais "enxames" cerebrinos, até hoje não sei de onde foi extraído e o que quer dizer esse curioso nonsense trazido à baila pelo filólogo...

Os poetas concretos teorizaram a sua prática e com ela aprenderam. À falta de críticos aptos a compreendê-los, tiveram de produzir a metalinguagem necessária ao seu entendimento. Por outro lado, um manifesto é um elenco de pressupostos que a prática ora ratifica, ora retifica, não uma tábua de dogmas... Assim, para nós, no tempo, o "plano-piloto" (síntese do que pensamos e escrevemos a respeito do futuro da poesia de 1950 àquela data — veja-se a "Teoria da Poesia Concreta", 1965) foi-se desdobrando na prática e sendo por ela criticado, num movimento dialético, que nos levou, a cada um de nós, com as diferenças respectivas, às etapas posteriores de nosso trabalho poético, até o dia de hoje. Aprendemos de nós mesmos, não da miséria da crítica...

Mas olhe: o caso da poesia concreta não é o único em nossa literatura contemporânea. A recepção inicial de Guimarães Rosa (cuja obra-ápice, o "Grande Sertão", publica-se no mesmo ano em que foi lançada em São Paulo a poesia concreta, 1956) foi controversa. Conforme pesquisa efetuada em recente estudo — excelente pelo levantamento feito e por sua respectiva avaliação crítica —, no período de 1956 e 1958—60, se o livro de Rosa foi elogiado por críticos e escritores, como Antonio Callado, Paulo Rónai, Afrânio Coutinho, Cavalcanti Proença, Oswaldino Marques, Tristão de Ataíde, Pedro Xisto Euryalo, Canabrava e Antonio Candido, foi também "duramente criticado por Marques Rebelo, Adonias Filho, Ferreira Gullar, Ascendino Leite, Wilson Martins, Nelson Werneck Sodré e Silveira Bueno" (Ana Luiza Martins Costa, "Rosa, Ledor de Homero", Rio, novembro de 1996; texto resumidamente apresentado no congresso da Abralic, em agosto deste ano).

Mas, para escarmento, bastaria lembrar o truculento ataque de Sílvio Romero (para muitos, nosso mais importante crítico e historiador literário do passado) a Machado de Assis, em 1897, no auge da glória do autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) e "Quincas Borba" (1891) — obras, aliás, que o crítico sergipano considerava inumanas, carentes de comunicabilidade e de inteligibilidade, produtos não da maturada mestria de um estilo único, mas efeitos fisiológicos da "gagueira", da "perturbação nos órgãos da palavra", que afetaria seu autor... Em suma, "verdadeiros abortos de uma imaginação sem real força criadora", segundo o obtuso juízo romeriano.

Augusto — Existe, nas áreas mais conservadoras, uma certa tendência para procurar desmoralizar as vanguardas, caracterizá-las como surtos transitórios de renovação e arquivá-las o mais rapidamente possível numa gaveta, com uma rubrica, o que não passa de uma estratégia defensiva para exorcizar a sua presença incômoda e crítica.

Mas as vanguardas, além de sua incidência histórica, nos deram Maiakóvski, Khliebnikov, Apollinaire, Huidobro, Pound, Gertrude Stein, Pessoa, Sá-Carneiro, Schwitters, Cummings, Oswald e Mário de Andrade etc. etc., para só falar de poesia. Não há melhor companhia do que essa.

O que há para temer? Com a poesia concreta não há de ser diferente. Se a nossa produção poética tiver valor, será avaliada, coletiva e individualmente, como a de todos os poetas que abriram caminhos imprevistos para a poesia, participando dos movimentos artísticos de renovação do seu tempo. Se não, não.

Folha — O sr. ainda se considera, em algum aspecto, concretista?

Décio — Somatizei a poesia concreta. Às vezes, livro-me dela.

Haroldo — Não faço poesia concreta, no sentido estrito da expressão, que designa o movimento concretista dos anos 50, há mais de 30 anos. Em 63, principiei a escrever minhas "barroquizantes" "Galáxias". Houve um câmbio de horizonte cultural, uma crise ideológico-cultural, a partir de meados dos anos 60, que, a meu ver, não mais tornou praticável "programar o futuro", demandando uma poesia do presente, da "agoridade": o que eu chamo "poesia pós-utópica". Sobre o assunto, escrevi nesta Folha dois longos ensaios: "Poesia e Modernidade 1 - Da Morte da Arte à Constelação"; "Poesia e Modernidade 2 - O Poema Pós-utópico" ("Folhetim", 7 e 14/10/1984), em diálogo com o livro de Octavio Paz "Los Hijos del Limo". Tratava-se de uma comunicação apresentada antes no México, num simpósio em homenagem aos 70 anos de Paz, promovido pelo Instituto Nacional de Bellas Letras. Remeto o leitor interessado em acompanhar minha argumentação a esse trabalho.

Em síntese, diria que guardei, da poesia concreta stricto sensu, na fase em que me encontro, pós-utópica, desde "A Educação dos Cinco Sentidos" (1985), o rigor, o resíduo crítico da utopia e a vocação para a concreção em sentido generalizado, pelo trabalho sobre a materialidade, o lado "palpável" dos signos, tão bem estudado na poética de Roman Jakobson.

Nesse sentido geral — e a minha longa prática de tradutor criativo de poesia de variadas línguas e literaturas me autoriza a dizê-lo com conhecimento de causa-, só é poeta, em qualquer época e no âmbito de qualquer escola, aquele que se volta para a materialidade sígnica, a "forma significante", na elaboração de seu poema.

Na poesia, não revela — por exemplo — a dor real, a dor que o poeta "deveras sente". Importa sim a "dor ficta", a "dor fingida", vale dizer, formalmente configurada nas palavras do poema. É o que soube ver, melhor do que ninguém, Fernando Pessoa, que também escreveu: "Tudo o que em mim sente está pensando".

Augusto — Não costumo utilizar a expressão "concretista" (que me lembra seita ou partido). Nos tempos heróicos preferia "concreto", que me parecia neutralizar um pouco o inevitável "ismo" que se cola aos movimentos. A minha poesia tem um antes e um depois.

 

 

 


 

24/01/2007