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Concretismo


 


Os descompassos das vanguardas

(in Caderno Mais! - Folha de São Paulo, 08.12.96)
 


Artistas celebraram uma poética conforme aos ideais de uma sociedade racional.

Editor de Domingo
 

Em dezembro de 1956, quando se inaugurou em São Paulo a Exposição Nacional de Arte Concreta, que seria repetida no ano seguinte, no Rio, com maior repercussão, o Brasil respirava uma atmosfera moderna.

O país, que já passara pelo vendaval modernista, continuava acertando seus ponteiros com o relógio da história.

Em 56, a face moderna do Brasil de JK era uma realidade. Aqui já haviam pisado Le Corbusier, Frank Lloyd Wright e Marinetti, uma sólida Universidade de São Paulo, com seus ilustres professores europeus, firmava-se como referência acadêmica, os primeiros museus de arte moderna já haviam aberto suas portas, São Paulo realizava suas Bienais e um leque de expoentes modernistas atuava nas diversas áreas da cultura nacional.

Ser moderno, ser de vanguarda, pensar o futuro — não era outro o ânimo dos círculos emergentes de artistas e intelectuais, interessados vivamente nas novidades da Europa e América.

Foi nesse ambiente que criou raízes o construtivismo brasileiro, cujas primeiras manifestações, sugeridas pelo modernismo, já eram visíveis na década de 40 — entre outros, nos trabalhos de Waldemar Cordeiro, nas "Fotoformas" de Geraldo de Barros ou nas abstrações luminosas de Abraham Palatnick.

Em 1952, ainda sob os efeitos da "Unidade Tripartite", célebre escultura do concretista suíço Max Bill, o grande premiado da 1a Bienal paulistana, constituía-se em São Paulo o Grupo Ruptura.

Pouco depois, no Rio, formava-se o Grupo Frente. Waldemar Cordeiro, Casemiro Fejer, Luis Sacillotto, Geraldo de Barros, Ivan Serpa, Aluizio Carvão, Lygia Clark, Hélio Oiticica...

Um considerável agrupamento de artistas mergulhava nas sugestões construtivas que moviam, na Europa, nomes como Georges Vantongerloo (1886-1965), Joseph Albers (1888-1976) ou Piet Mondrian (1872-1944).

Mas não estaríamos num ambiente de vanguarda se entre tantos não surgissem brigas, dissidências e intolerâncias. Artistas que, hoje, um olhar menos beligerante colocaria na mesma parede histórica, acabaram separando-se. A divisão básica — que não deixa, evidentemente, de ter fundamentos teóricos e formais — ocorreu entre o grupo paulista e o carioca.

Em São Paulo, o concretismo encontrou sua versão mais "ortodoxa". Uma arte geométrica, ligada à idéia de projeto e avessa à intervenção casual ou "hedonista" dos humores autorais.

Uma arte "objetiva" para um novo mundo industrial, que mirava o horizonte igualitário de uma sociedade socialista, funcional, sem superfluidades e arroubos de subjetividade. Uma arte, portanto, quase-design, socializável como produtos industriais, que eliminasse a aura religiosa ou aristocrática do objeto único. Esse ficaria reduzido ao projeto-protótipo, matriz da serialização.

Como um automóvel ou uma cadeira: um bom desenho (individual ou coletivo) que sai da prancheta para a reprodução em série e o consumo de massas. O "prêt-à-porter", não a alta costura.

Projeto radical: o revolucionário não estava na simples reutilização de técnicas antigas recheadas com conteúdos "sociais" ou propagandísticos. Era preciso criar formas racionais, "matemáticas", capazes de atender o novo homem e a nova sociedade igualmente racionais.

Tratava-se de mudar o próprio modo de produção da arte, modificar seu estatuto, refazer seu repertório formal, redefinir as posições do produtor e do consumidor e interferir no circuito elitista de comercialização.

Não ao "gênio" artesanal encastelado, que vende quadros únicos por milhares de dólares. Sim ao artista-projetista industrial, cujas obras-projetos serão reproduzidas e encontradas em todos os lares.

Se em boa parte esse programa poderia ser subscrito pelo grupo do Rio, em outra, certamente, não.

O neoconcretismo censurava os excessos matemáticos e racionalistas de seus pares paulistanos. Da mesma forma, em sentido contrário, os concretos de São Paulo viam em artistas do Rio uma crescente concessão a elementos etéreos da subjetividade e da "sensibilidade".

Parece ter razão o poeta Haroldo de Campos quando ressalta que "forte componente da discórdia entre ambas as facções construtivistas estava situada no plano da política artística com matizes reivindicativos de prestígio regional, quando não eram meramente idiossincráticos" ("Construtivismo no Brasil — Concretismo e Neoconcretismo").

Como parece ter tido razão o sábio Alfredo Volpi, cuja participação fundamental no desenho do construtivismo brasileiro deu-se, de forma original, à margem das complicadas discussões sobre a Teoria da Gestalt.

O fato é que, tanto uns quanto outros, paulistas e cariocas, acabaram, de formas diferentes, abrindo mão, ao longo dos anos, do primeiro sarampo vanguardista.

Waldemar Cordeiro, o sanguíneo e polêmico líder paulistano, nada tinha de "racionalista e perigosamente matemático" em seus "Pop-Cretos", realizados em parceria com Augusto de Campos.

Tampouco as pinturas de Geraldo de Barros do início dos anos 60 guardam algum parentesco com a ortodoxia concreta. No Rio, o desdobramento do projeto neoconcreto nas artes acabou revelando-se um pouco menos errático, ao menos nos casos de Lygia Clark e Hélio Oiticica, dupla que, com fina coerência, desbravou novos espaços para a arte contemporânea brasileira — agora com amplo reconhecimento internacional. É fácil ver, hoje, nas discussões dos jovens concretos as cores da ingenuidade política e mesmo estética. Afinal, a nova sociedade que muitos imaginavam não aconteceu — e o fato de que tenha preferido, quando viva, a regressão stalinista às experiências de seus suprematistas talvez já fosse um sinal eloquente de que sua falência seria mesmo inevitável.

Faz parte da história das vanguardas imaginar o novo e imaginar-se como sua única expressão. Que venham a ser apenas parte do futuro, é inevitável — e salutar.

Toda boa arte nascida em litígio com os cânones da "sociedade burguesa" acabou tornando-se patrimônio, objeto de fruição ou reserva de valor dessa mesma sociedade. A arte e os artistas concretos não fugiram, obviamente, à regra. Nascidos num ambiente de problematização do futuro, viram-se na contingência de permanecer atuando numa sociedade que — para dar-lhes o benefício da utopia- acabou seguindo aquém...

Nem por isso, entronizaram-se ou deixaram de dar o que pensar.


(Marcos Augusto Gonçalves é Editor de Domingo, Folha de São Paulo)

 

 

 


 

24/01/2007