Concretismo
"Desnazificação" e reconstrução
(in Caderno Mais! - Folha
de São Paulo, 08.12.96)
O desafio para a crítica é máximo
quando se trata de falar de uma poesia cuja essência está em
concentrar a tal ponto sua matéria verbal que, no caso limite, uma
única palavra ocupando a superfície virgem de uma página inteira
ser-lhe-ia suficiente. Ainda assim, há uma vertente pela qual a
poesia concreta talvez se deixe apreender pela crítica de maneira
vívida e sintética, de modo a mostrar objetivamente como essa poesia
ainda hoje, há 40 anos de seu nascimento, permanece um fenômeno
vivo, diretamente perceptível, sem necessidade de intermediários
sociais, culturais ou históricos.
Essa vertente é, em uma palavra, a da
responsabilidade. (...)
Historicamente, a poesia concreta
nasce como denominação e como movimento na República Federal da
Alemanha, mais precisamente em Ulm, na Escola Superior de Estética
Industrial (a Hochschule für Gestaltung), em novembro de 1955, dez
anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em plena fase dita de
reconstrução. Ela nasce do encontro de um poeta suíço-boliviano,
Eugen Gomringer (cuja primeira coletânea, "konstellationen
constelations constelaciones", fora publicada em 1953, em Berna, e
cujo primeiro manifesto teórico aparece na "Neue Zürcher Zeitung" de
1º de agosto de 1954), com um membro do grupo "Noigandres" (criado
em 1952 em São Paulo), o poeta brasileiro Décio Pignatari, que então
viajava pela Europa a fim de estabelecer contato com artistas,
poetas e músicos envolvidos em pesquisas experimentais.
Esse encontro assenta os fundamentos
de um movimento que nascerá oficialmente em 1956, estendendo-se
rapidamente pelo mundo (para grande espanto de seus iniciadores) e
funcionando como divisor de águas.
Esse ato de fundação é em si mesmo
portador de sentido histórico. Primeiramente por ter lugar na
Alemanha, por obra de dois estrangeiros, e numa cidade castigada
pela guerra, em lenta reconstrução; os futuros poetas concretos
alemães rapidamente sentem-se atraídos pelo movimento e logo se
associam àquele esforço de reconstrução empreendido por dois
estrangeiros; como dirá Helmut Heienbüttel, viram nele uma
"liberação", uma possibilidade de "fazer o que queríamos fazer".
Claus Bremer, por sua vez, não hesitará em compreender seu trabalho
de poeta concreto como uma "desnazificação poética".
Em segundo lugar, o movimento nasce
numa escola que não era absolutamente neutra. Desde sua concepção e
fundação por Inge Aicher-Scholl (irmã dos resistentes antinazistas
da Rosa Branca, executados em 1943) até sua instalação definitiva,
projetada pelo arquiteto e artista concreto suíço Max Bill, a escola
é um símbolo de integridade moral e engajamento construtivo na
Alemanha do pós-guerra. Ela se apresenta claramente como uma escola
superior de educação democrática num país que, afinal de contas,
jamais o foi.
Sua intenção é a de ser um ponto de
junção entre passado e presente, entre um passado reprimido
arbitrariamente pela história, quando do episódio
nacional-socialista e um presente que porta ainda os estigmas reais
dessa história, um presente que urge construir segundo uma moral
irrepreensível. (...)
Uma vez que o solipsismo literário não
constitui mais a norma inescapável, o poeta concreto deve encontrar
uma forma responsável, que o será justamente por sua utilidade para
a comunidade humana e por sua integração no mundo contemporâneo.
Para tanto, o poeta concreto toma por modelo a modernidade e o
progresso que se manifestam nas ciências e nas técnicas industriais
contemporâneas. Ele se convence de que só dessa maneira poderá
encontrar a linguagem poética adequada à sua época. Segundo uma
fórmula de Gomringer, trata-se de "procurar e encontrar a poesia da
era da revolução industrial atual" (...).
Recusando-se a reverter, no plano da
expressão poética, à ditadura do "eu", o poeta pode visar a (mais
uma vez segundo uma fórmula de Gomringer) "fazer uma poesia que
possa ser pensada universalmente, destinada a ser empregada por todo
o mundo". A um culto desabrido e auto-suficiente do "eu" deve-se
opor um engajamento moral a serviço da coletividade. Uma poesia
feita para todos, funcional, utilizável, uma "poesia comunitária
universal" (Gomringer) — eis aí o que a poesia concreta tem a
oferecer como penhor de engajamento responsável na modernidade.
O poeta não pode mais ser aquele
indivíduo solitário, que do alto de sua torre de marfim proclama ao
mundo suas desesperadoras verdades universais -verdades que, afinal
de contas, não dizem respeito senão a ele mesmo e a um punhado de
fiéis ou eleitos obstinados na tarefa de decifrar a mensagem
criptografada do mestre. (...)
O poeta concreto, por sua vez, deve
propor à sociedade uma poesia que simultaneamente dê conta da
evolução do tempo presente e seja verdadeiramente funcional, isso é,
útil para seus contemporâneos. Longe de se imaginar numa torre de
marfim, ele se imagina como que na torre de comando de um aeroporto,
de onde pode não somente observar o mundo contemporâneo como também
ser responsável por seu bom funcionamento. Aí, longe de estar só,
ele está cercado por toda uma equipe de indivíduos autônomos e
entretanto solidários, trabalhando juntos na construção da sociedade
hodierna. (...)
Em 1956, Augusto de Campos definia a
poesia concreta da seguinte maneira: "A poesia concreta começa por
assumir uma responsabilidade total face à língua: aceitando o
pressuposto do idioma histórico como nó indispensável da
comunicação, ela se recusa a absorver as palavras como simples
veículos indiferentes, sem vida, sem personalidade, sem história".
Esta citação permite compreender claramente o que se deve entender
por responsabilidade da poesia concreta diante da linguagem. O poeta
concreto não cria uma língua nova a partir do nada. Ele se serve da
língua tal como lhe é dada. Seu objetivo não é o de criar uma língua
artificial, sem contexto ou referência à história, à vivência da
língua.
Seu objetivo é o de instaurar um novo
olhar sobre todas as línguas, uma espécie de olhar crítico
permanente que permita captar a quintessência da linguagem. Se
criasse uma nova língua, ele não poderia assumir nenhuma
responsabilidade perante a sua língua e a sua história. Ora, é
precisamente isso que urge fazer. (...)
O objetivo final é o de encontrar um
instrumento poético graças ao qual a linguagem possa mostrar-se como
o que é, sem artifícios, bruta, nua, aberta, mas igualmente em toda
a sua integralidade verbal — em suma, um instrumento por meio do
qual a linguagem possa mostrar-se concretamente, aberta a uma
interrogação sem termo aprioristicamente dado. (...)
O poeta concretista distancia a
linguagem, torna-a objeto, um objeto a ser observado, ele a exibe no
espaço visual da página. Numa palavra, ele a visualiza. Essa
visualização da linguagem é uma maneira de fazer eco às diferentes
tendências de visualização em curso no mundo contemporâneo. Mas a
visualização da linguagem é também um modo privilegiado de
democratizar a poesia, de torná-la acessível a todos.
Finalmente, a visualização transporta
a linguagem para uma outra dimensão, a da reflexividade permanente,
na qual a linguagem acaba por interrogar a si mesma. Tornada objeto
de mediação, a linguagem basta-se a si mesma e não tem necessidade
de qualquer referência fora de si mesma. Ela se apresenta liberta de
qualquer contexto externo a si mesma. Ela é seu próprio contexto.
Esse "minimalismo verbal do poema como objeto" (fórmula de Décio
Pignatari) institui uma autêntica ruptura com o sistema linguístico
e poético tradicional. (...)
A poesia concreta desfuncionaliza a
linguagem. Por quê? Para funcionalizar a poesia, para tornar a
poesia verdadeiramente funcional. Quem deve se encarregar dessa
funcionalização? Quem deve fazer funcionar a poesia? O leitor,
evidentemente, com todos os riscos e perigos, mas em inteira
liberdade.
A poesia concreta tem função
heurística. Ela serve de instrumento de conhecimento para o
indivíduo que a enfrenta com todas as suas faculdades de percepção.
Pois o que está em jogo na poesia concreta é justamente a percepção.
Como vemos o que vemos? Como entendemos o que entendemos? Como
entendemos o que vemos? Como vemos o que entendemos? São estas as
questões que confrontam a poesia concreta. O verdadeiro sujeito
dessa poesia é o leitor, o homem que vê a si mesmo na obra, o homem
que se esforça por descobrir aquilo que o constitui mais
intrinsecamente: sua consciência. Abrindo-se para a obra, ele se
abre a si mesmo. Conferir sentido à obra implica conferir sentido a
si mesmo.
Se a poesia concreta não pode
responder por seu leitor, não sabendo de antemão o que ele fará da
obra, esse leitor, por sua vez, pode responder por ela. Ele pode,
com inteira liberdade, engajar-se na responsabilidade diante dessa
linguagem-objeto que lhe é proposta e da qual pode dispor conforme
seu arbítrio. Na poesia concreta, o autoritarismo e o dirigismo
definitivamente não têm lugar. Nesse sentido, a poesia concreta é
uma poesia em que as responsabilidades são partilhadas. A poesia
concreta não é simplesmente uma poesia engajada, ela é uma poesia
engajante.
Philippe Buschinger é
germanista, autor "A Poesia Concreta nos Países de Língua Alemã —
Elementos de uma Definição", tese de doutorado na Sorbonne,
publicada na Alemanha este ano pela Verlag Hans-Dieter Heinz.
O texto acima é uma versão resumida de um ensaio maior publicado na
revista "Semiosis", nº 81/82.
Tradução de Samuel Titan Jr.
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