Heloisa Buarque de Holanda
Vida literária na web
Idéias, 13.11.1999
Há algo de anacrônico
no temor de que a chegada da internet venha golpear ou mesmo
substituir o livro e, seu efeito colateral, o prazer da leitura
linear tradicional. Anacrônico, mas parece que inevitável. Olhando
para trás, esse script é velho e se reapresenta por ocasião do
anúncio de toda e qualquer inovação tecnológica. Como não usamos
jurisprudência nesses casos e experimentamos o susto e sua
intensidade como se fosse pela primeira vez, essa obstinada
recorrência merece ser considerada não como um problema real mas
como um saudável e provavelmente necessário rito de passagem. Talvez
seja por isso mesmo que, hoje em dia, não haja seminário ou encontro
que se preze no qual o tema não volte com um desconcertante frescor.
Na realidade, nestes
debates, o sabor de déjà vu torna um pouco entediantes tanto os
argumentos dos tecnofóbicos quanto aqueles dos tecnoaficcionados.
Mas deixando fetichismos à parte, a circulação intensa da cultura
hospedada na rede, o advento das edições on-line, dos non-books ou
publicações digitais, de novos hardwares como os e-books e o sucesso
irreversível do comércio eletrônico, ao lado de gêneros literários
que começam a desafiar a "leitura sustentável" como no caso da
novíssima hiperficção, são temas que oferecem uma pauta infinita
para a reflexão dos críticos de cultura e dos profissionais do
livro.
Deixo por hoje de lado
as experiências hipertextuais e as sombrias perspectivas da cultura
do livro, provisoriamente confiante de que o milênio que se aproxima
nos trará a boa surpresa de uma convivência cordial entre a cultura
do papel e a cultura eletrônica e, apenas para abrir o assunto, vou
observar o que se passa no meu território predileto na web, que é o
território da poesia.
No Cadê, a maior
ferramenta de busca do país, em novembro de 1999, estão registrados
702 sites de poesia hospedados na rede. Ainda que a variedade desses
sites seja desorientante, é relativamente possível distinguir-se a
natureza destes sites no ambiente imprevisível da www. Em primeiro
lugar, como seria de se esperar, não é a poesia canônica que se
hospeda preferencialmente neste ambiente. Há exceções como o site de
Carlos Drummond, ou os casos adoráveis de algumas raras homepages
como a de Manuel Bandeira ou Ferreira Gullar, que à moda do que
acontece com os ídolos do showbusiness, são sites feitos e mantidos
por admiradores ou fans. Mas essa não é a norma. Daí, uma primeira e
apressada constatação: a web é de enorme utilidade para poetas que
não têm disponíveis meios de produção e divulgação e cuja pretensão
parece ser apenas "ter um lugar ao sol" como declara literalmente a
homepage do grupo Caox da periferia carioca. Ou é o caso de poetas
que se articulam sem ter muito em comum a não ser o desejo de
estabelecer um canal para a distribuição de seu trabalho. São sites
que reúnem poetas de várias tendências e partes do país, como o Anel
de Poesia, o MPB (Muita Poesia Brasileira), o BLOCO de Leila
Miccolis, ou mesmo o Jornal de Poesia de Soares Feitosa, que além de
colocar 2.000 poetas on-line, oferece no link "Fofocas & Maldades" a
atração extra de cadastar e estimular as mal-humoradas polêmicas
publicadas nos jornais e suplementos, e que, como todos sabemos,
alimentam a sintomatologia mais profunda de nossa veia poética
nativa. É portanto a ampliação do espaço da fala poética e - por que
não? - de suas mazelas e demandas o primeiro ganho da poesia na web.
O interessante é que
enquanto transformações profundas se anunciam nas relações
autor-leitor, na noção de autoria, na questão da propriedade
intelectual, ou mesmo no experimentalismo com os recursos digitais
como é o caso da (bela) poesia em movimento de Carlos Vogt, as
políticas literárias tendem a reproduzir a esfera pública
presencial. A web parece se oferecer como o espaço ideal para a
amplificação das denúncias de desigualdades e afirmação de
identidades contra-hegemônicas como no caso da poesia negra, da
contestação ruidosa dos funkeiros e rappers, dos erótico-engajados,
ou do notável número de sites de poesia lésbica, um vigor que não
encontra, nem de longe, correspondência na cena poética brasileira
off line. O que leva a uma outra apressada constatação: o novo
espaço cibernético, seus links poéticos e sua indução para uma
contínua transmutação de subjetividades que se repete em cada
escolha de loggins, senhas pessoais, homepages ou na multiplicidade
de encenações exibidas diariamente nos palcos dos chats, sinaliza a
liberação iminente de uma explosiva demanda reprimida de energias
identitárias. 2.000 promete!
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