Miguel Carneiro
Miguel Carneiro na peleja dos caminhos
abxz – Em fevereiro deste ano
perdemos um amigo, os jovens (principalmente os alunos do CRIA) um
mestre e a literatura um poeta singular. Como você via Zeca de
Magalhães e de que forma o vê hoje?
Miguel Carneiro – Meu compadre Narciso era um ser antagônico,
chegado a um embate e confrontações. Gostava de ser “gauche”,
embora, de índole, fosse “carlista”. Jamais recuou ou abaixou as
calças para as putinhas que hoje dominam na mídia a literatura que
se pratica nessa província de todos os santos e inevitáveis
demônios. Lembro, muito bem, de nosso primeiro encontro, nas tardes
ensolaradas do verão de 1983, eu levado pelas mãos do poeta Ronaldo
Braga, das terras de Cruz das Almas, porto de Luciano Fraga, Nélson
de Magalhães Filho, poetas no sentido da palavra. Eu estava
ensaiando “O Homem e o Cavalo”, uma peça de Oswald de Andrade, que é
uma cópia barata de “Mistério Bufo” de Maiakovisk, e Narciso se
engajou no projeto para fazer a personagem do poeta. Ensaiávamos no
TCA. A peça não rolou, mas a amizade com Narciso se estabeleceu. Daí
para cá, sempre estive ao seu lado, e ele ao meu. Por confiança,
deu-me seu filho mais novo, Raoni Magalhães para que eu batizasse.
Narciso é ave rara, de penugem nobre, de vôo belo... Os que foram
para a cerimônia de cremação lá no Jardim da Saudade, muitos dali,
enquanto Narciso viveu, sacanearam o tempo todo com o nosso bardo
das Laranjeiras, limando, torcendo a cara, engavetando os seus
projetos. Na Bahia, Narciso mostrou que a poesia “dèjà vu”, sem uma
ênfase na quebra de paradigmas e no social, sem estar antenada com o
mundo, bolora, cria mofo e se exaure. E Narciso tinha algo de
diferencial em relação à fauna literária proviciana. Narciso tinha
farinha no saco. E a coisa mais abominável para mim é lidar, no dia
a dia, com poeta “ingnorante” e disso a Bahia está plena.
abxz – Você é chegado a embates e por isso tem alguns
desafetos no meio literário...
MC – O poeta paulista José Paulo Paes, em seu poema
“Poética”, traduz a minha peleja nessa seara de homens sem ética,
pois só sei viver sem estar atado a peias. Ele diz: “Não sei
palavras dúbias. Meu sermão/ chama ao lobo verdugo e ao cordeiro
irmão. / Com duas mãos fraternas, cumplicio / A ilha prometida à
proa do navio. / A posse é-me aventura sem sentido. / Só compreendo
o pão se dividido. / Não brinco de juiz, não me disfarço em réu. /
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu.”
Sempre se soube que no meio literário baiano viceja a “mauvaise
herbe”, que não inova nada, não contribuiu com algo novo, é o mesmo
ramerrão de versos plagiados. Ser poeta todo mundo quer ser, mas
poucos são. E contista é uma coisa meio difícil, você não pode
enganar. Ou é ou não é. Na poesia, com a semana de 22, todo mundo
virou poeta e a merda se alastrou. É tanta porcaria que se publica
na Bahia que eu tenho é vergonha. Eno Teodoro Wanke, poeta
paranaense, disse certa feita que “é fácil distinguir entre o
verdadeiro e o falso poema. O falso permanece escrito ou impresso na
página. O verdadeiro salta, palpitante de vida e de alma, e fica
para sempre inscrito em nós, morando na gente, lembrado na memória,
sentido no coração.”
abxz – Você já contou seus mortos?
Miguel Carneiro – Essa história é gozação do poeta baiano
Henrique Wagner que num poema “Miguel Carneiro, Meio-Dia”, me
homenageia. A verdade é que sou um homem marcado por tragédias que
me deixaram para que eu andasse por essas avenidas dessa cidade que
nomeiam de “Jesus”, com a cabeça baixa e ombros arqueados. Sou de
peleja, de caminhos tiranos e sofrer não escolhe o lugar. Carrego,
sim, almas de vaqueiros desconhecidos que com a espora e a chibata
construíram cidades. O livro de Deus tem páginas infinitas e quando
Ele, do alto, o abre, chama o seu escolhido. E como disse o
encantado de Codisburgo; “Viver é um negócio perigoso”.
abxz - Como eles emergem em seu labor literário?
MC – Eu sempre vivi de lembranças. O poeta Antonio Carlos de
Britto, Cacaso, disse num verso telegráfico: “Minha pátria é minha
infância,/ por isso vivo no exílio”. Quem escreve não é o homem,
caminhando para barbas grisalhas e cabelos brancos, estou com
duzentos anos no lombo, mas minha criança que testemunhou tantos
esquifes no passado os traz do limbo. Minha literatura é feita para
dar voz à gente que eu vi e vejo, para a geração de minha filha
Laura, àqueles que morreram em covas rasas, e que batem na minha
porta em busca de um pão, que catam latinhas de cervejas para
sobreviver, e que passaram e passam por essa vida sem deixar
riquezas. Escrevo a história daqueles que tiveram caráter, bondade e
lirismo.
abxz – Escrevemos cada vez mais para um público cada vez
menos(1)?
MC – A questão aí não é culpa dos escritores, mas do poder
público. Há uma taxa de analfabetismo alarmante em nosso Estado.
Aliado a isso, os autores baianos sequer são indicados nas escolas,
quer de segundo grau ou nas universidades. Nós fazemos nossa parte,
escrevemos, testemunhamos o tempo que nos é permitido na face da
terra. Cabe ao poder público incentivar, publicar, distribuir e
fazer com que os autores baianos sejam conhecidos. Nas
universidades, no campo das Letras, estudar um autor baiano torna-se
heresia. Só se faz mestrado ou doutorado sobre morto. É uma burrice
sem limites.
abxz – Você não acha que ao publicar livros de pouco ou
nenhum valor literário, conseqüentemente sem interesse maior algum,
com o dinheiro público, o Estado, através do Selo Letras da Bahia,
não está desvirtuando sua real função apenas para ficar na boa com
um meio tão importante para a sociedade?
MC - O problema da Coleção Selo Letras da Bahia é que, no
governo Paulo Souto, havia gente como membro da comissão julgadora
que não tinha nada a ver com a área literária. Eram estranhos no
ninho. Tinha um que era filho de um influente jornalista baiano, já
falecido, foi convidado para membro e ganhava o jeton. De literatura
ele não entende nada. Outra coisa é que a comissão parecia um jogo
de cumpadre. Só aprovava os livros se o sujeito fosse da curriola.
Como eu briguei com um medíocre que fazia parte da comissão,
resultado: dois livros que coloquei lá, foram rejeitados. Não havia
um critério de qualidade, havia, sim, o jogo que é moda no meio
literário baiano. Outra coisa é que se sua obra for menor, mas você
ostenta um sobrenome de relevo, sua porcaria é aprovada em
detrimento de inúmeras obras de autores baianos que lá voltam com
aqueles pareceres vazios, sem nexo. Teve um amigo aqui na Bahia que
aplicou um golpe nessa comissão do Selo Bahia. O poeta Zeca de
Magalhães zanzava pela Academia de Letras e lá, através de Cunha, se
aproximou do Prof. Waldir de Freitas Oliveira e disse ao mesmo que
determinada obra que estava para ele analisar era de um poeta,
parente de um famoso senador baiano do passado. A obra era de um
iniciante, sem a menor qualidade. O professor, para homenagear a
família do Senador, aprovou a porcaria do livrinho de poesia.
Resultado, o cara tinha o sobrenome de um senador, mas jamais fora
seu parente, pois tinha nascido num interior, numa cidadezinha
perdida nos cafundós do Amazonas, nem ele sequer sabia da existência
desse senador baiano. Zeca de Magalhães tinha essa faceta, de ser
generoso, e entregar o próprio coração mesmo que a obra não
prestasse. Agora eu só espero que no novo governo o critério e os
membros sejam realmente imparciais e sérios. Obra de chapisco faz o
leitor se afastar e pega mal para a Coleção, para o próprio Estado.
Espero, e reitero novamente a minha preocupação, que esse governo
atual não caia no mesmo rema-rema da gestão anterior. Nesse jogo
escuso de protecionismo.
abxz – Houve um projeto de dissertação de mestrado sobre a
sua obra, rejeitado pela UEFS (Universidade Estadual de Feira de
Santana), não foi?
MC – É, rolou essa história. Em outubro de 2003, a professora
Edinage Silva, que é formada pelo próprio Departamento de Letras e
Artes, apresentou um anteprojeto “O texto de Miguel Carneiro: um
mediador entre o real e o imaginário”, mas foi rejeitado por parte
da banca. Na UEFS, só se estuda Jorge Amado, José de Alencar,
Machado de Assis, SÓ MORTO, é uma vergonha o que fazem com o
dinheiro público.
abxz – No entanto, escritores de diferentes matizes, escolas
e gerações, mas principalmente os jovens, têm dedicado poemas a
você, além de mostrarem bastante respeito pela sua obra...
MC – Generosidade dos amigos, só isso. Não sou flor que se
cheire. Talvez para me acalentar, não me deixar tão enraivado com
essa gente lustrada, de verniz, feito a barata de Kafka.
abxz - Em que campo da literatura você se sente mais
confortável?
MC – Literatura é o pão que o “dianho” um dia amassou com o
pé. Nada em literatura é prazeroso quando se leva ela a sério. João
Cabral, cego no fim da vida, num apartamento no Rio, entre tiroteios
e balas perdidas, com uma nevralgia crônica, cunhou essa pérola, na
década de 70, numa entrevista ao Suplemento Literário do Diário de
Noticias,:”quando não posso me renovar, eu me calo”.
abxz – Então qual a função que a literatura exerce na sua
vida, uma vez que a sua face moderna é mesmo angustiante?
MC- Só me sinto humano porque escrevo. Isso é uma constatação
minha, não um julgamento. Só encontro a minha missão como parte do
rebanho de Jesus Cristo quando o povo emerge em minha obra e sai do
limbo para ganhar voz. Literatura é o que me faz viver. Não a faço
por deleite ou almejar fama. Faço como compromisso social e
vislumbrando um mundo mais fraterno, mais justo, mais farto, mais
irmão. Sou um homem angustiado, pois meu irmão do lado ainda passa
fome, num país continental, farto e cheio de riquezas naturais.
Sinto-me constrangido quando minha obra não toca o coração do meu
irmão, seja ele brasileiro, francês, alemão ou americano. Pois em
todos esses idiomas tenho trabalhos publicados e traduzidos.
abxz – Como vê a critica literária hoje?
MC – Alguém já disse antes que: “todo crítico literário é um
escritor frustrado”. E quando ele ou ela entra na trupe de
perseguição, ou de silenciar pelo que o outro escreve, ou fica em
cima do muro, ou em silêncio, é que no fundo gostaria de levar
aquele poeta, ou aquele escritor para a cama. Porém, eu os vislumbro
como peça da engrenagem do sistema neoliberal a que este, ou aquele
sujeito ou ator social é serviçal. Mas nem sempre peneiram. Essa
gente está viciada no jogo do “cumpadismo”, do toma lá da cá,
permitem que isso cresça, invada e viceje no pasto medíocre da
literatura baiana, porque é uma forma de controle e manipulação. Na
essência, somos todos um covil de chacais, rindo da desgraça alheia,
enchendo a cara de graça nos coquetéis que os chapas brancas
promovem e a gente vai, depois da cabeça zonza, dormir com boca
fedendo após comer a amante. Até agora nada mudou, continua o mesmo
ramerrão no quartel de Abrantes.
abxz – E os jovens escritores baianos? Há nomes que merecem
mais atenção?
MC - Há uma coisa perigosa que Ceça, (Maria da Conceição
Paranhos), minha poeta maior, me disse em certa feita: “um fato é a
vida literária o outro é a literatura em si”. Quem fica? Os jovens
precisam tomar cuidado, pois essa coisa desenfreada, feito Roberto
Carlos, o cantor, de lançar todo ano um disco é semelhante a essa
gente que todo ano quer lançar um livro na praça. Não trazem nada de
novo. Eu me sinto envergonhado quando chego na LDM ou na Berinjela,
ou nas livrarias EDUFBA e folheio um novo livro dessa gente.
Aí na terra de Jorge Araujo, Adylson Machado, Agenor Gasparetto,
terra de Fernando Ramos, de Altamirando Camacam, de Adelmo Oliveira,
Maria Eleonora Cajahyba, Geraldo Maia, há gente produzindo coisas
legais que eu sei. Mas em linhas gerais eu posso citar na prosa:
Alex Leila, Maria do Carmo Salomão João Filho, Pablo Reis; na
poesia: Henrique Wagner, João de Moraes Filho, Ronaldo Braga, Aline
Costa, Carine Araújo, Nélson Magalhães Filho, Luciano Fraga, Maria
Isabel Sampaio Lima, você próprio, Gustavo Felicíssimo, Fabricia
Miranda, Bernardo Linhares, Wladimir Saldanha, Mauro Mendes, Bel
Mascelani, Raimundo Bernardes...
abxz – Eu gostaria que, para terminar, você falasse um pouco
sobre a sua obra, o CD com poemas que está para ser lançado, bem
como o novo livro de contos que deve sair em breve também...
MC – Eu vou transformar uma novela que fiz o ano passado em
um romance. Isso em junho, quando voltar da Itália. Vou para Gênova,
para o Festival Internacional da Poesia, pois ganhei no ano passado
uma passagem de ida e volta para me apresentar nesse Festival com um
poema chamado a Lenda Nagô dos Afoxés, que já foi publicado neste
abxz.
O cd são dez faixas com poemas que os amigos recitam e três poemas
que viraram música através de meus parceiros João Bá, Amenom
Mascelani, Tomé Barreto e que o público grapiúna poderá conhecer em
breve. |