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Heitor Ferraz Mello




Monumentos verbais

Especial para a Folha
(Caderno Mais!, 11.6.2000)




Em "O Partido das Coisas", o francês Francis Ponge utiliza a linguagem da poesia para se apropriar dos objetos naturais


 

Os objetos de Francis Ponge, minuciosamente descritos, ou talvez minuciosamente recriados pelo poeta, começam a circular com mais intensidade pelo Brasil. Dois livros recém-lançados trazem em crítica e tradução a poética desse francês que renegava o rótulo de poeta e que se dizia um "artista em prosa". Trata-se de "O Partido das Coisas", organizado por Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson; e de "Francis Ponge - O Objeto em Jogo", ensaio de Leda Tenório da Motta. Ambos publicados pela editora Iluminuras. "O Partido das Coisas" é um dos primeiros e mais significativos livros de Ponge. Saiu em 1942 e reúne uma série de textos, ou poemas em prosa, escritos entre 1924 e 1939.

Como informa em sua introdução Michel Peterson, professor de literatura francesa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ponge havia pensado em vários títulos para essa coletânea, como "Approbation de la Nature" (Aprovação da Natureza), "Art Poétique" (Arte Poética), "Façons d'Être" (Maneiras de ser) ou "Êtres" (Seres). Sua escolha recaiu exatamente sobre aquilo que seria seu tema por excelência, ou seja, as coisas. Mas isto não significa que os outros títulos já não contivessem também o desejo do escritor, como o de trabalhar em grande parte com temas da natureza circundante. Mas a natureza não entra como reflexo do homem. Pelo menos é isso que ele nos adverte o tempo inteiro: ele procura fazer com que as coisas falem, pois "diriam muito mais do que aquilo que os homens costumam fazê-las significar". É nessa busca que Ponge arrisca toda a sua linguagem, marcada pela descrição minuciosa seja da chuva, de uma ostra, de uma árvore, da água ou de um pedaço de carne. É uma detida lição de coisas, como se observa explicitamente, por exemplo, em "Caracóis": "Mas é aqui que toco num dos pontos principais de sua lição, que, aliás, não lhes é exclusiva, mas que possuem em comum com todos os seres providos de conchas: essa concha, parte de seu ser é ao mesmo tempo obra de arte, monumento. Ela perdura mais tempo que eles. E é este o exemplo que nos dão. Santos, fazem obra de arte de sua vida, obra de arte de seu aperfeiçoamento. Sua própria secreção se produz de modo a se enformar. Nada de exterior a eles, a sua necessidade, a sua precisão, é obra sua. Nada de desproporcional por outro lado a seu ser físico. Nada que não seja necessário, obrigatório".

Poesia infiltrada
 

Por esse trecho, é curioso pensar como esse poeta, que ao mesmo tempo quer aprender com as coisas, também aproveita para tomar partido delas, infiltrando a sua própria visão de mundo, como não poderia deixar de ser, pois quanto mais objetiva e neutra a poesia se pretende, mais ela acaba topando com o próprio poeta que a escreve. Não há nisso nenhum problema, é algo próprio da arte, mesmo que se queira desesperadamente negar. E Ponge, segundo Leda Tenório da Motta, percebia tanto a força quanto o fracasso possível de sua proposta. Esse construtor de monumentos verbais evitava a desmedida, criticava o desmesurado do homem, o que está além de suas possibilidades. E termina seu poema dizendo: "Conhece-te, pois, primeiro a ti mesmo. E aceita-te tal que és. Em consonância com teus vícios. Em proporção com tua medida". Em outro poema, "Anotações para uma Concha", ele desembrulha ainda mais esse mesmo ponto de vista, ironizando o homem pelos "enormes monumentos que não testemunham senão a desproporção grotesca de sua imaginação e de seu corpo". "Não sei bem por que, desejaria que o homem [..." esculpisse coisas em feitio de nichos, de conchas de seu tamanho [...", que o gênio reconhecesse os limites do corpo que o suporta." E, nesse sentido, expõe sua admiração por escritores comedidos, como Malherbe, Horácio e Mallarmé, "porque seu monumento é feito da verdadeira secreção do molusco homem, da coisa mais proporcional e condicionada ao seu corpo, e, contudo, a mais diferente de sua forma que se pode conceber, isto é: Palavra". Diante de um poeta como esse, de uma escritura nem sempre fácil, pontuada de vírgulas por causa de seu próprio caráter descritivo, a sua tradução não é das mais simples. Para essa edição brasileira, os organizadores também convidaram para participar da empreitada outros bons tradutores, como Júlio Castañon Guimarães, Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria.

Opções rebuscadas
 

Apesar de todo esse esforço, os textos não mantêm uma regularidade na qualidade da versão, pois em alguns momentos há opções rebuscadas de palavras que não surgem no original francês, mas que não chegam a prejudicar a leitura (porém alguns deslizes poderiam ter sido evitados, como um "humiliada" que aparece na pág. 161 e que poderia vir a comprometer todo um importante trabalho).

Há uma extensa cronologia no final do volume, mas o leitor sentirá falta de um texto introdutório um pouco mais didático, que localize melhor o poeta, nascido em Montpellier, sul da França, em 1899.

Ponge, que já foi publicado no Brasil (Leda Tenório da Motta traduziu "Métodos", para a Imago, e Haroldo de Campos tem uma bela tradução do poema "A Aranha"), ainda é pouco conhecido por aqui, e o texto de apresentação de Michel Peterson parece cair na cilada da apologia, deixando de lado a objetividade tão cara ao escritor francês.

Os poemas de Ponge também são vistos no livro "Francis Ponge - O Objeto em Jogo", de Leda Tenório da Motta, professora de comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A partir de depoimentos e textos poéticos de Ponge, ela investiga o intrincado significado desses objetos, apesar de sentirmos falta de uma análise detida de alguns de seus poemas, o que facilitaria a compreensão de sua procura e até mesmo o andamento do trabalho. Como Peterson, Tenório da Motta também não segura o seu discurso quando fala do escritor, que é para ela "o mais importante poeta francês, ao menos da segunda metade do século". Ao tomar esse partido, acaba sendo no mínimo indelicada com outros grandes poetas franceses contemporâneos. De qualquer forma, seu estudo é uma interessante introdução a uma poética que hoje já não precisaria ser tão excludente como desejam seus críticos.

 

Leia a réplica da autora Leda Tenório

 

 

 

 

 

14/10/2005