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Henriqueta Lisboa


 

Lábios que não se abrem, lábios


Lábios que não se abrem, lábios
com seu segredo
calado
 


Segredo no ermo da noite
resiste à rosa dos ventos
calado.
 


Flauta sem a vibração
do sopro.
Luar e espelho, frente a frente,
em calada
vigília.
 


Fria espada unida
ao corpo.
 


Resto de lágrimas sobre
lábios
calados.
 


Borboleta da morte
em sorvo
pousada à flor dos lábios
calados
calados.


Publicado: A Face Lívida (1945)

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Henriqueta Lisboa


 

Não a face dos mortos.


Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que não coram
aos açoites
da vida.
Porém a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.

 

Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas
entranha.

 

Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.


Publicado: A Face Lívida (1945)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Henriqueta Lisboa


 

A menina selvagem

 

Para Ângela Maria


 

A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.
 


Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Publicado: Lírica (1958)
 

 

 

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Henriqueta Lisboa


 

Assim é o medo


Assim é o medo:
cinza
Verde.
Olhos de lince.
Voz sem timbre
Torvo e morno
Melindre.
 


Da sombra espreita
à espera de algo
 


que o alente.
Não age: tenta
porém recua
a qualquer bulha.
 


No campo assiste
junto ao títere
à cruz que esparze
vivo gazeio
de nervosismo
com vidro moído
grácil granizo
de pássaros.
 


E que rascante
violino brusco
não arrepia
ao longo o azul
dos meus veludos
se, a noite em meio
cá no fundo
quarto escuro,
a lua arrisca
numa oblíqua
o olhar morteiro.
 


Dentro da jaula
(mundo inapto)
do domador
em fúria à fera
subsinuosa-
mente resvala.
 


Aos frios reptos
do ziguezague
em choque, súbito
relampagueio,
 

 

as duas forças
se opõem dúbias
se atraem foscas
para a luta
pelo avesso:
despiste e fuga
ouro e vermelho
desde a entranha.
 


As duas forças
antagônicas:
qual delas ganha
acaso
ou perde
o medo
frente a
frente ao
medo?


Publicado: Além da Imagem (1963)
 

 

 

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Henriqueta Lisboa


 

Assombro


Século de assombro - este século.
De violência em progresso.
E os outros séculos?
Cada ser ao sentir o peso do mundo
não terá dito: século de assombro?

 

O assombro seca a própria sombra
de tanto secar existência:

 

Sequidão de corações e mentes
Secura de corpo nos ossos
Legião de cegos e de inaptos
Asfixia de túneis e masmorras
Mantos e esgares de hipocrisia
Sevícia para fins de anuência
Acúmulo de monstros e monturos
— Assombro à cunha.

 

Porém acima de qualquer assombro
aquele assombro vindo de antanho
para atravessar o século
de ponto a ponta — flecha escusa — e ser
perene assombro dos mortais
— a morte.


Publicado: Pousada do Ser (1982)
 

 

 

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