Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Henriqueta Lisboa


 

Divertimento


O esperto esquilo
ganha um coco.
Tem olhos intranqüilos
de louco.
Os dentes finos
mostra. E em pouco
os dentes finca
na polpa.
Assim, com perfeito estilo,
sob estridentes
dentes,
o coco, em segundos, fica
todo oco.


Publicado: O menino poeta
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Henriqueta Lisboa


 

Do supérfluo


Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?


Publicado: Pousada do Ser (1982)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Henriqueta Lisboa


 

Drama de Bárbara Heliodora


"Bárbara bela
do norte estrela
que o meu destino
sabes guiar."


Quem é esse que assim canta
como quem está chorando?
Suas faces encovaram,
seus olhos se amorteceram,
sobre seus cabelos negros
cai uma chuva de cinza.
Ah! e havia tanta brasa
em torno de seus cabelos,
tanto sol na sua ilharga,
tanto ouro nas suas minas,
tanto potro galopando
nas suas terras sem fim.


Grão de poeira quando o vento
a madrugada castiga:
Já não é mais Alvarenga
quem foi Alvarenga um dia.


Do galho tomba uma fruta
verde sobre o lago fundo.
A árvore guardava a seiva
toda nessa fruta verde.
A mão trêmula do poeta
mal sabe aquilo que escreve:


"Tu entre os braços
ternos abraços
da filha amada
podes gozar."


A essas horas, na distância,
vai pela tarde dorida
sob a chuva, entre salpicos
de lama, um caixão mortuário
sem enfeites nem bordados,
senão os que a lama asperge
no pano que cobre as tábuas.


Quando a alvura da açucena
se refugiava nas moitas,
Maria Ifigênia encontra
sua gruta para sempre.


É deveras a Princesa
do Brasil, essa menina
de madeixas escorridas,
de lábios esmaecidos,
de túnica mal vestida?


Essa, a mesma por quem vinham
da Corte os melhores mestres
de dança e língua estrangeira?
A de damascos e auréolas
a quem brotavam nos dedos
tíbios ramos de coral?


Linda, lendária Princesa,
por quem chora já sem lágrimas
pobre mulher desvairada
de olhos que olham mas não vêem.


Chora Bárbara Heliodora
Guilhermina da Silveira.
E em suas artérias corre
o sangue de Amador Bueno!
Chora, porém já sem lágrimas.


É de mármore seu rosto.
Seu busto cai sobre os joelhos:
flores que de trepadeiras
pendem murchas para o solo.


Talvez já nem saiba como
– para donaire da estirpe –
na ponta dos pés erguida
em hora periclitante
ousou admoestar o esposo:
"Antes a miséria, a fome,
a morte, do que a traição!"


Valem muralhas de pedra
para represa dos rios,
certas palavras eternas
que decidem do destino.


Publicado: Madrinha Lua (1952)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Henriqueta Lisboa


 

Em sobressalto


As notícias me sobressaltam. Dia a dia
cada vez mais terríveis.
Brotam da terra pelos poros
entram pela janela em silvos ásperos
fazem pilha no chão em letras tortas
caem das nuvens em mortalhas.
E já são outras realidades apostas
ao retoque dos memorandos
às interpretações da ribalta
ao sortilégio da casa dos contos
ao ruminar dos bois — fuga e refúgio.
Em confronto são dúbias
precipitam-se acotovelam-se
em contramarcha se repelem.
Na deturpação do humano
anunciam com alvoroço
através de pinças de fogo
em cartazes de gelo
— o suicídio da multidão em nome de Deus
— o império do vício em nome da Arte
— o sequestro do juiz em prol da Justiça
— o arremesso de touros em via pública
para a alegria dos que se salvam.
 


Recuso-me a acreditar nas notícias
mas elas se impõem de cátedra
com implacável desfaçatez
talvez para convencer-nos
de que somos todos culpados.
Agem assim como tóxicos
impunemente sorvidos
nas delongas do tédio.
A busca de notícias é um mórbido
caminhar para a cruz
Sem embargo as procuro com empenho
na expectativa tantas vezes vã
de que à noite se mudem
na reparação no contraveneno
das notícias colhidas pela manhã.


Publicado: Pousada do Ser (1982)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Henriqueta Lisboa


 

Horizonte


Alma em suspiro
pelo encontro
do que fica
sempre mais longe


Publicado: Reverberações (1976)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Henriqueta Lisboa


 

Infância


E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

 

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

 

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termomêtro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

 

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

 

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

 

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado!


Publicado: Prisioneiro da Noite (1941)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)