Ivo Barroso
Um Cyrano sem penacho
Cyrano de Bergerac, Edmond Rostand – Editora Nova Cultural Ltda.
334 pgs. R$9,90
Eis uma edição que teria tudo para ser uma válida homenagem a uma
das obras mais duradouras do teatro universal: o Cyrano de Bergerac,
de Edmond Rostand, cujo centenário transcorreu em 1997 sem que os
nossos editores se lembrassem de reeditar essa obra há muito
esgotada nas livrarias e sebos, e só conhecida das novas gerações
pela sua versão cinematográfica, devida às geniais direção de
Jean-Paul Rappeneau e interpretação de Gerard Depardieu. A obra, ora
lançada pela Nova Cultural Ltda., tem formato elegante (17cm x
12cm), capa (preta) dura com desenho (perfil de Cyrano) talhado a
ouro, está composta em papel reciclado de alta qualidade e, o que a
torna ainda mais atrativa, custa apenas R$ 9,90 nas bancas de
jornal. Há contudo um porém. Grave.
O Cyrano de Bergerac, escrito pelo poeta francês Edmond Rostand, foi
uma das peças de teatro que mais sucesso fizeram em todo o mundo.
Estreando-se em 28 de dezembro de 1897 no teatro da Porte
Saint-Martin, em Paris, com o velho Coquelin no papel título, valeu
a seu autor, poucos dias depois, a medalha da Legião de Honra, que
lhe foi imposta em cena aberta, e, quatro anos mais tarde, a eleição
para a Academia Francesa, aos 33 anos.
Trata-se de uma peça em versos alexandrinos rimados em parelha e
que, pelas onerosas dificuldades de encenação, passou a ser antes
uma obra literária, expressão máxima do romantismo tardio, mais
própria a ser curtida em livro do que vista em cena. Conhecida em
todo o mundo, encontrou no professor pernambucano Carlos Porto
Carreiro seu tradutor impecável para a língua portuguesa, a ponto de
ter José Veríssimo (1857-1916), um crítico que não estava lá para
agradar ninguém, assim se expressado a respeito:
"Para atingir a perfeição conseguida pelo Sr. Porto Carrero na
tradução do Cyrano de Rostand era preciso que o seu amor por esta
obra fosse tal que, identificando-se com ela, lhe sentisse o assunto
quase tanto como o autor o sentira. E deve ter sido assim, senão o
seu trabalho não teria o vigor e a lindeza do original. O talento
poético, as suas capacidades de emérito versejador, e ainda o seu
raro conhecimento das duas línguas, não bastariam sem essa
consubstanciação, para fazer desta tradução a obra-prima que, no seu
gênero, ela é. Nem é excessivo o meu elogio, simples atestação de um
fato que qualquer leitor poderá verificar. Com a escrupulosa
fidelidade, ao pensamento e à expressão do autor, principal
qualidade de toda a tradução, distingue-se mais esta pelo vernáculo
da linguagem, sem o mínimo ressaibo da francesa, e do estilo que
conservam todas as qualidades de brilho, elegância, finura,
gentileza e galanteria que os admiradores de Rostand se comprazem em
lhe achar."
A tradução, por todos os títulos “clássica” e irretocável, saiu
primeiro em fascículos no “Jornal de Pernambuco”, e depois em livro,
sendo a primeira edição provavelmente de 1902. O livreiro J. Ribeiro
dos Santos, lançou uma edição carioca da obra, a propósito da qual
José Veríssimo escreveu as palavras acima. Posteriormente foram
lançadas várias edições pela Editora Pongetti (hoje extinta), sendo
que a oitava (uma das últimas conhecidas) foi dada a lume em 1966.
Houve outras edições, de luxo, fora do comércio.
A grande surpresa que o leitor de agora terá ao abrir o volume de
capa preta da Nova Cultural será sem dúvida o nome do tradutor; lá
está: tradução de Fábio M. Alberti. Mas logo nos primeiros versos
quem quer que tenha lido a tradução de Porto Carreiro (e há ainda
alguns que a sabem quase toda de cor) saberá logo que se trata de
uma cópia, letra a letra, vírgula a vírgula, do texto sofrido há um
século pelo pobre professor pernambucano! Não se trata de um plágio,
com alteração de versos ou adaptações canhestras; trata-se de uma
cópia integral, xerografada, de um texto que tem (ou teve) seu dono
(Porto Carreiro morreu há 70 anos), mas que de modo algum pode ser
atribuída a outrem. As traduções, antigamente, eram “apropriadas”:
os editores lançavam mão de traduções feitas em Portugal, mudavam o
título da obra, mandavam alguém “abrasileirar” o texto e
publicavam-nas com os dizeres: tradução revista por Fulano, sendo
este último quase sempre um figurão das letras que no mais das vezes
nem sequer tinha lido o livro “revisado”. Aqui no entanto a coisa é
bem mais grave: a tradução não é nem nunca foi de Fábio M. Alberti
(?) e sim de Carlos Porto Carreiro, copiada servilmente das edições
Pongetti, e o dizemos servilmente porque até os erros das edições
pongettianas foram conservados nessa nova edição. Por ex. nas “
tiradas” do nariz, quando o tom é de “Gracioso”, há o verso: Aos
delicados pés ceder-lhes um poleiro” que saiu “dedicados” na edição
Pongetti e foi copiado tal e qual na da Nova Cultural. O mesmo com o
verso: “A fumar, e lançais vapores do nariz”, copiado erradamente
nas duas edições como “vapores no nariz”. Mas há também
pseudo-correções que chegam a ser hilárias: onde está na edição de
J. Ribeiro dos Santos: “Essa cara, a que o medo empresta cores
verdes”, saiu na atual: “Esse cara”, atribuindo-se assim uma
expressão de gíria ao culto Cyrano que se manifestava em linguagem
grandiloqüente. Emenda-se um “tintlar” do original para “tilintar”,
talvez em benefício da compreensão do leitor comum, mas com isso se
quebra o ritmo do verso, o elemento de maior importância nesse (sem
dúvida alguma) livro de poesia. O mesmo acontece com a apócope de “abob´ra”(dito
apropriadamente por um lapuz=caipira, roceiro), que se emenda para
“abóbora” em sacrifício da rima (“nariz de sobra”).
Em favor da edição da Nova Cultural diga-se que há uma profusão de
notas, esclarecendo sobre os nomes citados, um trabalho útil sem
dúvida para os leitores menos aculturados, que, se for essa a
intenção, devia estender-se para termos peregrinos ou em desuso
empregados por Carlos Porto Carreiro em sua tradução
determinadamente vernácula.
Se o sr. Fábio M. Alberti é o autor (ou compilador) dessas notas já
é um grande título que mereceria crédito no livro. Mas apossar-se de
tradução alheia é incurso penal.
Continuamos aguardando uma edição do Cyrano de Bergerac que seja
realmente uma homenagem válida à proeza tradutória de Carlos Porto
Carreiro – paradigma da tradução do teatro em versos – agora em seu
ano-centenário.
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