Ivo Barroso
O peixe de Neruda
Neruda pôs um peixe na bandeira
que desfraldava em frente à sua casa.
Talvez quisesse assim, desta maneira,
dizer que um peixe voa sem ter asa.
Dizer que nós podemos transformar
As coisas pela força da vontade:
Que o mar pode ser céu, o céu ser mar,
Dependendo do olhar, da intensidade.
Talvez quisesse nos dizer que a vida
É o exercício de enganar a morte;
Que depende de nós uma saída,
Parar os dados, reverter a sorte.
Que toda coisa é muito mais que a coisa
em si; que um nome pode ser trocado:
tudo consiste em ser a mariposa
que se transforma num milagre alado.
Assim, pensando bem, o que Neruda
buscou simbolizar com o peixe erguido
na flâmula, que agora se transmuda
em onda do mar, tem múltiplo sentido:
Antes do mais, é a pura imagem física
do peixe, o seu desenho, o seu traçado
geométrico, a linha elíptica, a risca,
o contorno preciso e elaborado;
a exatidão de meios, essa técnica
biológica que o torna a parte viva
da água em que ele vive, a chispa elétrica
que intensa o move, orienta, compulsiva.
O peixe de Neruda é mais que um peixe,
é uma bandeira, é mais que uma bandeira,
um conjunto de símbolos, um feixe
de acepções - a mitologia inteira.
É um peixe apostólico, sem dúvida,
a ser multiplicado quando há bodas;
mas é também um peixe só e único,
quando se forem as esperanças todas.
Pois é o peixe de Cristo e do infinito,
esse oito deitado e em si completo,
oracular, sinal na areia escrito,
signo zodiacal, moto perpétuo.
Por isso penso às vezes que Neruda
ao erguer de manhã aquele mastro,
com voz potente e ao mesmo tempo muda,
dizia versos ao seu peixe-astro:
‘Acorda, ó peixe inaugural, ó peixe matutino
Longe de teu reduto aquático, nos ares;
Deixa a esponja, o coral, o caramujo
— Teus amigos agora são as aves.
Deixa o reduto de imersões profundas,
Liberta-te de abraços isobáricos
E paira livre de teu peso em vôo silencioso e estático;
Nada nesse ondulante pavilhão que o vento do mar fustiga.
És agora o peixe em estado virtual, o peixe-pensamento, espadanando
A esbranquiçada metamorfose das escamas.
A ti entrego o destino de uma espécie
Marítima e volátil, a dupla vida
Que intentamos viver sem os recursos
Que ora te empresto da imaginação.
A ti confio o destino de todos estes seres
Que querem ser bem mais do que têm sido.
Mas que lhes falta o anseio de ter asas
Ou temem sempre mergulhar no abismo’.
E tarde, tendo os olhos seus imersos
no pôr-do-sol, descendo o pavilhão,
talvez Neruda lhe dissesse versos
— que o verso de Neruda é uma oração:
‘Volta, ó peixe vesperal, mergulhador do ocaso,
Ao seio original de onde saíste, entre líquenes e anêmonas;
Conta às algas o azul do céu quando os stratus
coroam as colinas,
Agora sabes os segredos dos que pairam acima do horizonte,
Mas dize-lhes também que aventura inaudita
É viver em dois mundos, é saber que estás aqui
Mas que podes pairar além do insuspeitado.
Sonda teu elemento com perícia mas denodo,
Não deixes o recôndito esquecido,
Nele há tesouros que ainda não fulguram
Por lhes faltarem olhos que os vejam.
Vai mais fundo, explora os teus recursos mais íntimos,
A força potencial que jaz nestas escamas
Que tatalaram como virgens rêmiges,
Um dia nas alturas.
Usa teus olhos oblíquos para veres na sombra
O que muitos não vêem em pleno dia,
Sê tu mesmo, sabendo bem que podes
Ser outro, muitos mais, ser legião, miríade
Sem trair o que de mais teu trazes contigo.
Amanhã, serás outro meu amigo.’
E ouvindo o Poeta descobri que havia
Algo de mais recôndito na imagem:
Além de toda essa mitologia,
Há no peixe uma última mensagem.
A de que é a Poesia um peixe-alado
E o Poeta um ser que busca o vir-a-ser.
Vive para dar vida ao Incriado,
Que a missão do Poeta é transcender.
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