Izacyl Guimarães Ferreira
Vestígios, um livro de Affonso Romano de Sant’Anna
Em 1999 o poeta publicou “Textamentos”. Com x, clara
indicação de sua intenção de legar textos, de madurez, de
antecipação de uma futura conclusão. Agora, em 2005, nos
dá um livro que poderia ser titulado “Textamentos II”.É
uma longa “Consoada” e seu tom reflete o do anterior.
O leitor de Affonso reconhece a mescla de alto lirismo - de
imediata comunicação, com a funda meditação sobre estes
grandes temas que são a morte, o amor, a memória – com
a fala do cronista casual, atento a pequenas coisas, que são
anotações, comentários ora críticos como “National Gallery,
London”, ora irônicos, tal o caso de “O silêncio de Rimbaud”
ou “Necrológio Severino” . Naquele, o crítico de arte que não
perdoa tolices diz: Estou diante da Batalha de São Romano,
de Paolo Uccelo./ E exijo respeito./Não me venham falar/de Marcel
Duchamp. O “Necrológio”diz: O poeta João Cabral de Melo Neto/
áspera pedra nordestina/severíssimo cultor da forma/ateu/abominava
derramamentos líricos e sentimentais./Não obstante isto, era
acadêmico./
Não obstante isto, era diplomata./Não obstante isto, morreu rezando/
e seu corpo/ foi velado no Salão dos Poetas Românticos.
Certa crítica rejeitaria, se não tais versos, outros talvez menos
“poéticos” do livro Vestígios, que não transcreverei. Gregório de
Matos, Alfonso Reyes, Jorge Guillén, Bandeira, Drummond
e outros nos permitem considerar poemas e versos de tal teor
perfeitamente dignos de figurarem em livros como este, em que há inúmeros momentos do melhor Affonso.
E o que chamo de “melhor Affonso” são poemas meditativos
cheios de emoção, revelações e minúcias de observação, junto
ao tom de grande fala tão característico do poeta que vai até
Pasárgada, revisita a Catedral de Colônia, percorre em viagem
física o mundo antigo e dele traz notícia. Consideremos o que
dá título ao livro:
De algumas coisas não se têm mais vestígios:
utensílios
objetos
costumes
e sentimentos
que caíram em desuso.
De algumas coisas não se têm mais vestígios.
Por isto alguns se calam
outros colam os olhos vagos
no horizonte
enquanto alguns como arqueólogos
têm sido vistos
procurando
daquele tempo
ah! daquele tempo
algum vestígio.
Eis o que é esta “Consoada” de Affonso. Memória: pessoal,
íntima, e memória da espécie. Não quer perder nada que o haja
marcado, como homem, viajante, leitor, contemplador de arte,
jornalista, poeta. Quer deixar-nos vestígios de sua rica e bem
vivida vida, entre o apartamento ao som de tiroteios da zona sul do
Rio, a lareira da casa de Friburgo, e o mundo vasto, o
vasto mundo que percorre entre seminários, festivais, férias.
O belo poema Pasárgada termina com estes versos antológicos:
foi preciso
que o menino
no velho despertasse
e que de sucesso
em sucesso
o jovem fracassasse
foi preciso
provar que em Pasárgada
não se chega como conquistador
mas como quem reinando
obedecesse
e partindo
ficasse
e olhando as ruínas
nelas algo edificasse
como se a vitória
pelo avesso celebrasse.
Pasárgada
- o não-lugar
onde a poesia
(ausência plena)
reinasse.
A poesia de viagem encontra em Affonso um autor ímpar,
porque não celebra apenas uma paisagem, um fato, um dia.
Tira do que vê uma lição de tempo e significado, vestígios,
durações. Assim, no poema Alfândega, diz
O que trago
só Marco Polo pode contar.
Por isto temo que me interceptem na alfândega
não tanto pelas flores que nos braços trago
mas pela cor do meu olhar.
Um olhar, confessa adiante, que vê coisas que não são reais.
E busca um menino (pgs.83 e 84) a quem pediria que de volta
o aceitasse: não sou teu pai/sou filho teu.
O leitor reconhecerá o “menino antigo” de Drummond, neste
e nalgum outro poema, tal como Pasárgada alude ao Bandeira
também revisitado no poema Neste aeroporto ensaio, que ecoa os versos do poeta do Castelo: “o aeroporto em frente me dá
lições de partir”.
Porque Textamentos e Vestígios são para Affonso o que a série
“Boitempo” foi para Drummond e os poemas por certo mais
“duros” de “Preparação para a morte” foram para Bandeira:
um repassar de lembranças e uma prestação de contas.
É muito cedo ainda para Affonso despedir-se, mas a morte
é tema que não tem nada a ver com idade, e ele a trata de frente. No poema
Testamento, aqui com s e não com x, ele diz
o que deixa, o que vai deixar (pg.113), com uma quase tristeza/
de quem amando tudo isto/teve que se retirar. Adiante, com ironia,
rima a morte com a indefectível sorte e com esporte, a guerra.
Ou quem e tudo o mais que, sem sua permissão, começam a
envelhecê-lo.
Este é um livro que poderia ter por subtítulo “De senectude”.
Pois também este é um sub-tema perpassando toda a extensa
série de poemas. Partir, envelhecer, morrer. Mas deixando os
vestígios claros e fortes de uma poesia segura de si, que antes
de deixá-los os vai encontrando e pondo-se a contar-nos, que a vida é ritmo discreto/e a poesia é a forma/de roçar as asas/no
infinito.
Já disse alguém e não recordo quem, que toda boa poesia fala
do que diz e do que é a própria poesia – duplo espelho, dupla
imagem. Assim este livro, límpido exemplo da poética direta
de Affonso, seu ofício de trevas claras, que ao calar-se um dia, e
que esteja longe tal dia, deixará, mais que vestígios, estes como
outros, um legado precioso de nosso tempo, de nosso mundo,
de nossa língua.
Leia Affonso Romano de
Sant'Anna
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