Izacyl Guimarães Ferreira
Fronteiras da poesia
Alguns anos atrás,
ouvi diplomata brasileiro, responsável pelo setor
cultural de uma embaixada, pronunciar esta frase: “a
melhor poesia que se faz no Brasil, hoje, é a da
nossa música popular”.
Fosse opinião sem o
peso de seu cargo, a afirmação passaria em branco,
no vazio. Mas estava a emitir em público uma visão
quase “oficial”, e equivocada. Anos 80 e algo, quase
90. E uma simples consulta ao que se escrevia na
época revelaria não só o engano conceitual como o
desconhecimento da nossa produção poética de meio
século.
O equívoco já era
moeda corrente naqueles anos, graças às boas letras
de uma nova geração que aparecera nos anos 50 a 70,
ao poder da mídia, a certo distanciamento da melhor
poesia que se fazia quieta e era abafada pelo
estardalhaço orquestrado nas salas de aula e nos
suplementos literários por aquelas “vanguardas”,
que apadrinharam os letristas, criando-se a
vertente chamada “poesia musical”. (O interessante é
ver que os bons letristas fizeram carreira enquanto
os poetas e teóricos “de ponta” mudaram de estética
ou a viram definhar por inconsistência, por
inconseqüência.)
Sei que piso terreno
minado ao discordar dessa visão superficial e eivada
de confusão entre entretenimento- por melhor que ele
seja - e cultura, mas proponho uma simples
distinção, ao dizer que poesia é o que se faz e se
lê ou se ouve sem outro amparo que o do texto, é o
que se faz através do verso. Escrita e leitura feita
para dentro, em silêncio, ouvido sonoro que pode ser
dito. Ou naquele “barulho ao sopro da leitura”, na
feliz expressão de Ferreira Gullar.
O resto está na
fronteira, no que vulgarmente se considera e se diz
que é “poético” – seja uma crônica em prosa, boa e
mais que boa excelente prosa, como a dos textos de
Luis Fernando Veríssimo, Rubem Braga, Fernando
Sabino e outros deste porte. Ou muitos dos numerosos
trechos de Guimarães Rosa, Clarice Lispector ou
qualquer grande nome de ficcionista, em português ou
outra língua.
Um quadro, uma ária de
ópera, até um crepúsculo será “poético”.
Todas estas
manifestações culturais ou naturais emocionam, mas
não são poesia. Bandeira dizia que há poesia em
tudo, mas sabia o que dizia e essa “poesia em tudo”
era o que venho dizendo: aquele universal “poético”
que atribuímos ao que nos emociona. Coisas e
manifestações que estão na fronteira de uma arte
específica.
Estão na fronteira
como aquelas vanguardas já arquivadas, modas que
passaram, ou certas variações adjetivadas – “poesia
visual”, “cinética”, etc. Na fronteira as muitas e
muitas vezes belas letras de música, de Noel Rosa a
Tom Jobim, Chico Buarque e Caetano Veloso, de
Orestes Barbosa até nosso Vinícius de Moares. Ou Bob
Dylan, esparso Lennon ou McCartney.
Como em certa boa
música, a ocupar o espaço entre a popular e a de
concerto, já nos dizia o excelente Radamés Gnatalli,
tais textos ocupam as amplas fronteiras dos gêneros
que se aproximam, ora pela forma, ora pela intenção
do autor. Ele, Radamés, que mudou o som da música
popular com seus arranjos, fez também, e muita,
música de concerto. Belíssima. E forjou esse
conceito de fronteira.
Em que estariam os
extraordinários Gerswin, Nazaré, Pixinguinha,
Gismonti, Piazzola. (Os quais, diga-se de passo,
transitam bastante pelas fronteiras dos gêneros.)
No território em
frente, Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Ravel,
Bartok, Villa-Lobos.
Voltando a textos, não
esqueçamos o teatro em versos de tantas épocas,
inclusive a nossa: outro gênero, o dramático,
composto para um palco, a voz dos atores, a platéia.
Pensemos ainda nos inspirados cantadores de feira,
nos desafios, na riqueza dessa poesia popular que
tem raízes seculares. Outro gênero. Como a oração, a
reza. Ou as cantigas de roda.
É de gênero que se
trata. Por mais que os tempos mudem e mesclem
limites, e haja há anos poema em prosa, conto
lírico, crônica em verso, letra de samba, rock e
rap, romance verdade, sem precisarmos normatizar
academicamente a criação disto ou daquilo, acredito
que alguma distinção parece ser bem-vinda e
necessária.
Na música popular,
como na ópera, o essencial é a música, ou se
quisermos, letra e música se procuram ou vêm juntas.
São palavras que pertencem à história da música, não
à história da literatura.
Em poesia, a música é
bem outra, é a da própria palavra, seu ritmo, seu
contexto. Prescinde da dicção em geral ou quase
sempre retórica dos declamadores. Prescinde também
do usual acompanhamento de violão ou piano dos
saraus e tertúlias. Podem até ser enriquecedoras
experiências, tais leituras. Mas a poesia, per se,
dispensa tudo isto. É palavra lida ou dita em
silêncio, sozinha, puro texto, essencialmente,
diferencialmente.
São gêneros distintos,
a letra e o verso, a canção e a poesia . Aquela, por
mais bela e escrita com as medidas típicas da
poesia, é parte de algo a completar-se. Poderá, se
desconhecemos ou esquecemos esse algo, a música,
valer como poema. Texto na fronteira da poesia, que
pode ser e é cruzada sem qualquer constrangimento.
Entretanto, são distintos seus terrenos, nos lados
dessa tortuosa linha divisória.
Sem nenhum
desmerecimento a macular qualquer desses gêneros a
que me referi, tudo o que proponho é que não os
confundamos sob a expressão “poesia”. Entremos, se
preciso, reitero, na linguagem popular e usemos
“poético” para qualificar isso ou aquilo. Mas
reservemos “poesia” para o que ela é – texto
escrito, em versos, independentes de qualquer
suporte ou acompanhamento, qualquer adjetivo,
indefeso ali no papel.
Lembrarão alguns que
no começo dos começos a poesia era cantada, era a
hora dos rapsodos. Era a hora da oratura e do
analfabetismo, das culturas ágrafas. Primórdios
estupendos, mas que o avançar dos recursos culturais
veio transformando ao longo dos séculos.
Considerada a
linguagem das linguagens por mais de um estudioso de
literatura, a ponto mesmo de distinguir-se poeta de
escritor, até mesmo poesia de literatura, à poesia
estaria reservada uma área de criação, invenção,
nomeação, fora do alcance da fala diária e da prosa
– esse dizer que se apoiaria na razão. O que se
propõe para a poesia é essa “reserva” que sequer é
de mercado ou privilégio.
A natureza do verso,
com suas regras, se é tradicional ou moderno, branco
ou rimado etc, será consideração à parte. Assim a
definição universal, unânime, do que seja poesia,
ilha que o leitor habitual reconhece e vê cercada de
um oceano de palavras definidoras entre marés de
verbetes aproximativos, variáveis estéticas. Quando
não dessa confusão básica que mistura artes, como se
a única medida fosse a criatividade dos autores.
Será talvez pela
dificuldade de precisar, cientificamente e sem erro
sua essência, que confundem poesia com o que se lhe
assemelha.
E nem de longe se
trata de separar o popular do “erudito” ou o que os
adeptos da igualdade chamam de cultura “oficial”.
Muito mais: cabe não esquecer que há versos
populares, de canção ou de feira, muito melhores que
os publicados em livros de “poetas” literatos.
Reitero: é de gênero
que se trata. Por mais mesclados que eles se mostrem
hoje, nas letras como nas artes, é preciso
diferenciar as expressões, separar as formas.
Em poesia, no
princípio era, é, está o verso. Seguido de outro, em
direção ao poema, texto a capela.
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