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Jacques Salah


 


Tradição e revolução estética



17 de Setembro de 2005

 

 

Se vivo estivesse, Adonias Filho completaria, no próximo mês de novembro, 90 anos de idade. Fechando um círculo que parece ter sido a característica essencial dos seus melhores romances (Servos da Morte: 1946; Memórias de Lázaro: 1952; Corpo Vivo: 1962) e de suas novelas (Léguas da Promissão: 1968), embora tivesse permanecido por longo tempo no Rio de Janeiro, ele nasce em Itajuípe em 1915 e morre em Itajuípe em 1990.

Não se trata do retorno do filho pródigo, muito pelo contrário; Adonias Filho jamais deixou a sua terra natal, o “sul da Bahia Chão de Cacau”, terra que haveria de se tornar sua fonte permanente de inspiração e sua personagem predileta, como ela o foi para o gigante Jorge Amado e o sensível e solidário Euclides Neto, e ainda o é para Hélio Pólvora, dono de uma pena privilegiada que está por merecer um estudo estilístico digno de sua produção.

Paralelamente à sua missão oficial à frente de instituições nacionais como o Instituto Nacional do Livro, a Biblioteca Nacional, a Agência Nacional ou a Associação Brasileira de Imprensa, ele teve uma notável participação em jornais (Diário de Notícias, A Manhã, Jornal de Letras), onde deixou a marca de uma crítica literária lúcida e perspicaz; aliás, pode-se medir o grau de penetração de suas análises e sua visão sintética na parte reservada ao “Regionalismo na Ficção” de A Literatura no Brasil em que, a pedido de Afrânio Coutinho, ele apresentou o “Ciclo Baiano”.

Escritor e crítico: os grandes talentos costumam conjugar essas duas atividades em aparência inconciliáveis; mas de muito sabemos que uma não pode ir sem a outra, que elas nascem e permanecem numa relação gemelar ininterrupta. Às duas, Adonias acrescenta uma terceira, a de tradutor de obras de Virgínia Woolf, de Faulkner e de Graham Greene; não será em vão, e seu próprio estilo, assim como sua concepção da narrativa, se ressentirão profundamente desta benéfica influência, colocando-o em lugar de destaque na revolução da moderna ficção brasileira.

Trata-se efetivamente, ao nosso modo de ver, de uma autêntica revolução realizada por Adonias Filho, revolução cujas características procuramos levantar em artigo publicado pela Fundação Gulbenkian em Lisboa e Paris, em 1992 (“Adonias Filho: as brenhas do Camacã ou o Paraíso Reencontrado”), mas submetido alguns anos antes à aprovação e aquiescência do romancista. De fato, é muito comum encontrar julgamentos lapidares afirmando que o estilo de Adonias é seco e áspero, que a linguagem de seus romances se reduz ao esqueleto da expressão verbal, sem que haja ao menos, por parte dos críticos, um esboço de comprovação além de tais afirmações impressionistas. Alfredo Bosi, por ser o “conciso” Alfredo Bosi, não podia escapar a esse modismo ao declarar: “O telúrico, o bárbaro, o primordial como determinantes prévios são os conteúdos que transpõe a prosa elíptica”; a “prosa elíptica”, exemplo maior de “concisão”, não está muito afastado do “tudo se dissolve no pitoresco, no saboroso, no gorduroso, no apimentado do regional” com o qual o crítico paulista se referia a Jorge Amado.

INCISIVO E DESPOJADO – É mais do que evidente que o estilo de Adonias sustenta com sua aridez o conflito fundamental dotado de uma frieza metálica; a economia verbal e sentimental é amparada por uma estrutura caracterizada por cortes tipicamente cinematográficos onde a justaposição visual é mais importante que a sucessão temporal. Eis um exemplo tirado de Corpo Vivo: “É de palha a aspereza dos cabelos quando secam com o pó da terra. As paredes os isolam do mundo, a porta fechada, o fogo mostrando um ao outro o homem e a mulher”.

Não se pode negar que a secura do estilo em que predomina o uso do gerúndio e onde os verbos são raramente empregados, evoca eficazmente a atmosfera trágica. Existe uma total harmonia entre a seca brutalidade do enredo e dos personagens, o cenário desértico e selvagem em que se movem e o estilo incisivo e despojado do romancista. Nada se opõe mais ao barroco exuberante e pletórico do que esta arte da medida e da estrita necessidade, arte tipicamente clássica. Vejamos outros exemplos tirados de Léguas da Promissão: “A cinza ainda quente sobre a terra nua quando chegou correndo”. “Tarde enxuta, sol queimando, o domingo naquele verão do diabo. Os cacaueiros de Itajuípe, raízes na terra dura, já tinham as folhas amarelas e os galhos pendidos.(...) Árvores cansadas do céu sem nuvens. O território crestado, calor de braseiro, estorricado o capim”.

No conjunto densamente trágico de sua obra, em que os elementos míticos e simbólicos impregnam o tecido narrativo, os temas adonisianos têm uma presença obsessiva. Dentre eles, deve-se salientar uma certa concepção do espaço, da caverna, do “ninho”, e a força reiteradamente afirmada do sangue, da terra, da chuva e da voz humana. A fim de exemplificar, citemos tão-somente o sangue que está em toda parte na obra de Adonias e que se torna uma das principais personagens, a substância primordial. Inicialmente, nota-se seu valor nutritivo, o fato de que seja, com a chuva, o primeiro alimento da terra: “a terra com sêde chupando o sangue” (Corpo Vivo), “sangue de gente virando adubo da terra” (Léguas da Promissão).

Uma novela inteira de Léguas da Promissão, “O túmulo das Aves”, deve a intensidade de sua mensagem poética e dramática ao fato de que o adubo orgânico, o esterco, é carne e sangue. O cacau, numa visão cíclica onde o sangue se torna seu próprio alimento, tem uma nítida necessidade de sangue para nascer e se desenvolver: “Parece que o cacau precisa do sangue da gente para nascer” (Corpo Vivo), “Ele e Alípio adubavam a terra com os próprios corpos”, “O chão ficou igual, o mato o cobriria, o corpo seria adubo” (Léguas da Promissão). É porque o velho Gonçalo Cândido tem que ser enterrado no vale do Jiqui, onde se juntam as aves para morrerem, que a sua morte, sendo um sacrifício consciente, adquire uma profunda ressonância religiosa.

BANHO DE SANGUE – O vale do Jiqui é considerado uma terra santa. Todavia, ao tema benéfico do sangue/semente opõe-se o tema maléfico do sangue/semente ruim: “o sangue de Rosália, onde quer que esteja, alimentará nas raízes e nas pedras o seu ódio eterno contra os homens e a vida” (Memórias de Lázaro). Ao lado do sangue em movimento, que simboliza a vida humana, sua força e sua liberdade, há o sangue imóvel da morte, o sangue seco e empretecido. A imobilidade do sangue é a paralisia definitiva da consciência, é a morte: “(Rosália) caíra a cabeça, os cabelos sobre a face, a consciência imobilizando-se com os órgãos e o sangue” (Memórias de Lázaro).

Muito além da retórica circunstancial, Adonias Filho empenha todo o seu ser nestes temas que revelam as reações de sua sensibilidade diante da matéria. Todavia, é preciso introduzir certas nuanças que dizem respeito, por exemplo, ao sangue em movimento do qual dissemos que ele é um tema benéfico por ser sinônimo e prova da vida. Mas o sangue gotejando e escorrendo, ou o sangue quente que espirra dos personagens mortalmente feridos, é, por sua vez, maléfico; seu movimento não ritma mais interiormente o entusiasmo do ser que sabe que está vivo, mas conduz, pelo seu derramamento exterior, à náusea. Por outro lado, o banho de sangue, realidade e símbolo, afeta com o seu valor lustral ou sacrificial o conjunto da narrativa adonisiana.

Se não se considerasse esse ponto de vista, seria difícil por exemplo perceber as verdadeiras implicações das palavras do narrador mostrando o novo rumo existencial de Cajango em Corpo Vivo: “Cajango saiu do sangue dos pais e dos irmãos para a maloca de Inuri”. O leitor sabe que “o sangue empretecido dos pais e dos irmãos estava em seus cabelos, em suas mãos, em suas roupas” e que Cajango saiu dali enlouquecido, animado por um único desejo, o de vingar-se. O que houve em verdade foi, com a transferência espacial, uma transformação ontológica; com o sacrifício e o banho lustral nasce um novo ser cuja nova morada, a maloca de Inuri, deve ser colocada ao mesmo nível da caverna de Jerônimo em Memórias de Lázaro ou do conceito adonisiano do ninho.

A exigüidade do presente espaço não nos permite desenvolver outros temas e características essenciais da narrativa de Adonias Filho; no entanto, ficaríamos lisonjeados se pudéssemos despertar no leitor o desejo de identificá-los por si próprio a partir de uma leitura consciente e penetrante, sem perder de vista que ao lado da sua temática, que o liga às mais antigas produções literárias e o coloca numa linha tradicional, há uma técnica e uma estética que fazem dele um autêntico revolucionário.

 

Jacques Salah é cônsul da França na Bahia e professor da Ufba
 


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05/11/2007