José de Alencar
Iracema: uma lenda do Ceará
Reacender a leitura crítica para
apresentar uma obra-prima da Literatura Brasileira é missão muito
instigante, tanto pelos desafios a entrecortarem veredas quase
insondáveis, quanto pelo prazeroso reencontro com a obra por si só.
Iracema: lenda do Ceará, romance
indianista do escritor cearense José Martiniano de Alencar
(1829-1877) integra o elenco das obras raras da Literatura que
possibilita o perscrutar das manifestações do tempo por meio da
inserção dos fatos históricos nele contidos, enquanto se apresentam
as distensões dos atos e vontades dos humanos seres que o Autor, tão
oportunamente, executa em sua ficção.
Árduo o encargo de introduzir uma
obra tão renomada e detentora de tão vasta bibliografia, formar e
firmar opiniões ilesas desta genealogia ensaística.
Não diremos que nosso enfoque,
partindo da observância do romance Iracema: lenda do Ceará, acha-se
imune a todo passado crítico, pois que existe uma memória ancestral
do intelecto à qual não se pode fugir nem se deve obscurecer o
registro, porém tentaremos direcionar o foco da observação, gestado
e afeito à feição do pensar e sentir do tempo contemporâneo.
À luz do terceiro milênio, a obra
Iracema: lenda do Ceará apresenta-se como o nascedouro da estética
romântica brasileira no romance, revestindo-se desde sempre, como a
mais bela louvação aos primórdios da terra, da gente, dos falares e
dos costumes cearenses.
O livro Iracema: lenda do Ceará de
José de Alencar, um ícone do Brasil, está sendo lançado em edição
fac-similada de sua primeira versão datada de 1865.
A obra em questão foi publicada por
Viana & Filhos do Rio de Janeiro, a partir de um exemplar
pertencente à biblioteca particular do Sr. José Mindlin, e resulta
de um esforço conjunto da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
da Biblioteca O Curumim sem Nome, da Oficina do Livro Rubens Borba
de Morais, da Editora Giordanus e do Centro Cultural Oboé.
Antecede o fac-símile dessa versão da
primeira edição, um caderno contendo um parecer do editor Cláudio
Giordano, seguido do estudo ´Iracema: em edição fac-similar´ de
Sânzio de Azevedo e, por fim, o artigo ´Iracema por José de Alencar´
de Machado de Assis, publicado, anteriormente, no Diário do Rio de
Janeiro a 23 de janeiro de 1866.
Acresce e dá riqueza à réplica da mais
antiga edição do romance alencarino, o soneto ´Iracema Guardiã: uma
escultura de Zenon Barreto´ de Virgílio Maia, poeta cearense de
longo percurso e o grande articulador responsável pela publicação da
obra referida.
Registre-se o soneto:
´Este arco retesado são as dunas
da praia cearense à noite clara,
o horizonte do mar, vela enfunada
e o seio nu da tabajara nua;
maresia e marés, vento, assobios,
mil afagos do tempo da esperança;
inúbias e marulho, uma lembrança
inconha dos primeiros balbucios.
Olhando o nosso chão, ela nos mira;
despojada, perdoa e nos consola;
em gesto de humildade, é lua cheia.
Telúrica guerreira, irmã querida,
companheira e mulher, ave e sereia,
é anagrama da terra que abençoa.´
O mesmo caderno antecessor, da
reprodução fotomecânica mencionada, acha-se enriquecido pelas
ilustrações da artista Côca Torquato alusivas, como convém, ao
universo da índia tabajara e ao aspecto indianista da obra de José
de Alencar.
Quando o Romantismo irrompeu no Brasil
na década de 30 do século dezenove, ele apresentava um nacionalismo
exacerbado pela Independência do país em 1822.
A produção literária romântica
brasileira, ainda que se orientando pelos mesmos postulados
estéticos da escola romântica européia, adquiriu contornos
extremamente próprios e renovadores, tendo a eles se adicionado o
projeto de construção de uma identidade nacional.
A busca de uma nova forma de expressão
lingüística, os temas ligados à exuberância da natureza tropical, as
questões político-sociais, o indianismo e o nacionalismo foram os
traços marcantes dessa geração literária no Brasil.
Alencar, ao denominar seu romance
indianista Iracema: lenda do Ceará, estava não só propondo o resgate
da lenda - o universo idílico e impreciso da memória coletiva onde o
ato da escrita ficcional pode ocorrer e inovar sem pejo de afrontar
a veracidade histórica mas também procurava extrair do cerne deste
gênero, a lenda, a intenção de alcançar a credibilidade factual.
A partir do romance-lenda e da
invenção alencarina da palavra Iracema, um universo de
possibilidades despontaram, mesmo que o autor tenha dirigido o seu
intento embrionário ao vocábulo, apontando nas notas à primeira
edição:
Iracema - em guarany significa lábios
de mel - de ira/mel e tembe/lábios. Tembe na composição altera-se em
ceme.
Contudo, em 1929, o historiador de
Literatura Afrânio Peixoto levantou a hipótese, na revista de número
89 da Academia Brasileira de Letras, de que a palavra IRACEMA
pudesse ser anagrama de América. A suposição passou a ser do agrado
tanto de estudiosos quanto leigos, a ponto de hoje ser
prioritariamente referida e quase ser relegada ao esquecimento a
proposta de seu criador.
Nosso contemporâneo Chico Buarque de
Holanda, em uma homenagem crítica aos brasileiros malparados mundo
afora globalizado, menciona na música ´Iracema voou´ de 1998, uma
certa Iracema do Ceará, emigrante de seu anagrama América:
´Iracema voou/ para a América/ leva
roupa de lã/ e anda lépida/ vê um filme de quando em vez/ não domina
o idioma inglês/ lava chão numa casa de chá./ Tem saído ao luar/ com
um mímico/ ambiciona estudar/ canto lírico/ não dá mole pra polícia/
se puder, vai ficando por lá/ tem saudade do Ceará/ mas não muita/
uns dias, afoita/ me liga a cobrar;/ - É Iracema da América.´
Para que não se perca o registro, uma
vez que dele nos aproximamos, outro autor de música popular
brasileira, Adoniran Barbosa, já havia composto o samba paulistano
´Iracema´ com uma breve participação junto aos ´Demônios da Garoa´,
mas o enfoque acha-se por todo modo dissociado do tema nosso.
Mantenha-se, todavia, o registro do
uso disseminado do nome Iracema em terras tupiniquins.
Ainda para que se meça a atualidade
desse romance alencarino, existem no site de busca Google Brasil da
Internet, numa pesquisa com demora de 0,16 segundos, um total de
7.080 resultados de ´Iracema - José de Alencar´ encontrados.
O Romantismo indianista alencarino, em
especial o do romance Iracema, mostrou, pelo relato da lenda, a
autonomia cultural brasileira, fortemente marcada por uma
civilização indígena anterior.
Por meio de uma narrativa fulgurante,
o escritor propiciou o nascedouro de uma grande inovação, uma
escrita de feição renovada pelo contato da língua portuguesa com as
tradições, os ritos e os falares das nações indígenas, a fauna e a
flora nativas, a terra de areias nuas, as serras que azulam no
horizonte, as suaves brisas do entardecer e o mar bravio do nordeste
brasileiro.
´Iracema é, em verdade, um grito da
terra. Apelo da terra, nas suas exigências ecológicas, querendo
completar-se com o homem fator-geográfico´, expressão de Raimundo
Girão em Botânica Cearense na Obra de Alencar e Caminhos de Iracema.
O fato renovador gerado pelos aspectos
lingüísticos alencarinos foi além da introdução de um bom número de
palavras da Língua Geral Tupi-Guarani ou do registro da terra de
matas, serranias, vales agrestes e praias selvagens.
Alencar conseguiu transpor e dar
sustentação à aparente inocência da expressão oral indígena para a
língua portuguesa.
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