in Jornal da
Tarde,
05.06.1999
A lógica não explica por que nenhum dos dois poetas – observadores entusiastas das vanguardas e expoentes das letras em seus países - deixou uma única notícia, uma única crítica a respeito da poesia do outro. No entanto, há no mínimo uma convergência temática entre os espíritos modernistas dos dois poetas Entre as manifestações ocorridas no Brasil, durante o centenário de Federico García Lorca, em 1998, é preciso relevar a publicação de dois livros, Federico García Lorca - La Palabra del Amor y de la Muerte e La Poesía de Federico García Lorca, da autoria do professor Julio García Morejón, que já em 1969 prefaciara uma antologia lorqueana, além de ter orientado cursos, feito conferências e publicado um sem número de artigos sobre o autor de Romancero Gitano - uma paixão de raízes antigas pela obra do poeta de Granada, a-par de uma pesquisa acurada que o levou a Fuentevaqueros, a Madri e a outros lugares da Espanha e do Mundo. Em relação ao "amor" e à "morte", o ensaísta e ex-professor da Universidade de São Paulo aborda, sucessivamente, os temas da infância e adolescência do poeta, na histórica cidade de Granada, e a seguir a chegada a Madri, as primeiras experiências teatrais, os livros e as peças que foi apresentando, as viagens, os amigos, os êxitos... E, no fim, os documentos e o cenário do fuzilamento de um dos maiores poetas do século 20, em Viznar, perto do lugar onde Lorca viu a luz do mundo, no seio de uma família "religiosa, católica, sem ser de política nenhuma, porque não o eram, muito amigos em fazer obras de caridade" - no dizer de uma vizinha dos pais do poeta. Em todos os capítulos do seu trabalho, o professor Morejón, hoje voltado para o Centro Universitário Ibero-Americano, em São Paulo, justifica os motivos do seu compreensível interesse pela obra de Lorca, às vezes deturpada pelos críticos, espanhóis e de outros países, malgrado a oposição do biógrafo Ian Gibson, que se consagrou tão inteiramente aos estudos lorquianos que se naturalizou espanhol. E nada de importante escapa à pesquisa de Morejón, que presta informações pormenorizadas não só em torno da vida e obra do seu "herói", mas igualmente de praticamente todos os seus livros e peças teatrais, ilustrando o texto com fotografias que ele próprio colheu "in loco", em Fuentevaqueros, nos subúrbios de Granada, e em outros lugares onde viveu ou por onde passou o poeta, na Espanha e nos Estados Unidos, em Cuba e na Argentina, só ou em conversas com seus parentes e amigos de tertúlia. E, por falar de amigos, Federico foi elo de ligação entre artistas famosos - e também deles com jovens desconhecidos. Na verdade, o difícil é apontar o que importa para o conhecimento da obra de Federico García Lorca e que porventura não esteja enunciado e comentado neste volume doravante fundamental para a consulta dos especialistas. Nem mesmo foi omitida a presença de Lorca no Brasil, por onde passou rapidamente em março (ou abril) de 1940, no regresso de Buenos Aires à Espanha. O professor Morejón consagra um capítulo inteiro à presença cultural do poeta e dramaturgo no Brasil, abrindo-o com a reprodução de uma escultura de Flávio de Carvalho e ilustrando-o com algumas incontáveis referências da imprensa brasileira, assim como os textos de Carlos Drummond de Andrade (que já em 1937 escrevera sobre a morte de F. G. Lorca), bem como Edgar Cavalheiro, Otto Maria Carpeaux, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Sérgio Milliet e outros. Diversas das peças lorquianas têm sido representadas no Brasil e Cecília traduziu Yerma e Bodas de Sangue, escrevendo a autora do Romanceiro da Inconfidência que o autor de Bodas "tinha conseguido constituir uma tragédia de amores truncados, reunindo todos os seus talentos: o de poeta, o de autor dramático; o de conhecedor da alma rural espanhola, em sua concentrada paixão; o gitano das palavras e das imagens, e o de clássico à maneira grega - tudo isso equilibrado com tanta maestria que a peça resulta harmoniosa, nesse conjunto de contraditórios dons." O elogio não é vitupério quando aplicado com virtude e mérito, como fez Cecília Meireles, e como o fizeram outros escritores e críticos teatrais brasileiros a respeito do teatro de Lorca, sem dúvida um dos momentos mais altos da obra do granadino, que honrou também de forma singular a poesia espanhola da primeira metade deste século. Enfim, se "a palavra do amor
e da morte" exige uma leitura cuidada, nem por isso é menos merecedora
de atenção a introdução e a antologia intituladas
La Poesía de Federico García Lorca, que supomos tratar-se
de uma versão ampliada da coletânea editada primeiramente
em 1969. Inclui agora textos (em espanhol) de Libro de Poemas, Poema del
Canto Jondo, Primeras Canciones, Canciones, Romancero Gitano, Poeta em
Nueva York, Llanto por Ignacio Sanches Mejías, Seis Poemas Gallegos
(para Rosalía Castro), Diván del Tamarit, Poemas Sueltos
e Cantares Populares. Em suma, o essencial em verso, graças ao qual
o leitor comum poderá aceder rapidamente ao coração
poético de Lorca.
E ao mencionar a "Ode ao Santíssimo Sacramento", García Morejón recorda que Federico veio "de uma acomodada família de católicos praticantes da província de Granada". A menção é oportuna, visto proporcionar outras aproximações e até algumas advertências: "Lorca não fez nunca da religião um meditatio mortis ou da meditatio mortis uma religião... (...) A religião, para Federico, por conseguinte, pelo menos a que se reflete em suas obras, é algo muito mais superficial. É pura liturgia. É forma, como se pode verificar em alguns poemas do Romancero Gitano. Aliás, esta ode não deve ser entendida, como insinuaram alguns críticos, como "a morte solene do catolicismo espanhol". Vai mais longe e mais fundo. O mesmo pode afirmar-se em relação às posições políticas de Federico García Lorca, que tão exploradas têm sido: das inúmeras entrevistas que concedeu, notadamente nos últimos meses de vida, deduziram apressadamente certos jornalistas e até amigos um "idearium", ainda que na realidade o poeta se houvesse dado conta de que tinha "uma missão social a cumprir". Em benefício dos humildes, o que evidentemente não o excluía de atitudes inequivocamente políticas, como a assumida, juntamente com Alberti, Cernuda e Altolaguirre, em prol da liberdade de Luís Carlos Prestes. Morejón sublinha que em Lorca se misturavam apaixonadamente a arte e a política, mas ele não era político, conforme reconhecem todos os biógrafos e os seus amigos: "Se houvesse sido político não nos teria deixado essas obras eternas da fantasia e da arte. A política é a pior conselheira da arte. O que afoga e sufoca os povos é a política." E prossegue o investigador-ensaísta: "Uma coisa é receber com entusiasmo um determinado regime, no qual se confia, como ocorreu com ele face à República, e outra é participar dos ideais mais sãos dos melhores homens do regime." No entanto, Federico nunca foi político: "Nem na sua vida, nem na sua obra, García Lorca jamais deu provas de participação ou de compromisso político. (...) Ele mesmo insistiu em diferentes oportunidades que não era político." Quando estourou a guerra civil, pondera Julio García Morejón, se tivesse permanecido em Madrid, é muito provável que sobreviveria, apenas por causa de suas ligações com o dirigente republicano Fernando de los Ríos. Dificilmente seria procurado na capital espanhola pela odiosa personagem que o prendeu em Viznar: "A responsabilidade deste assassinato, como assinalaram os mais escrupulosos biógrafos, não cabe a nenhum partido, nem de direita, nem de esquerda. Federico foi vítima da grande hecatombe. Todos têm a culpa. (...) O crime de Viznar é, como todos os crimes, repetimos, fruto da estupidez humana." E completa o professor Morejón: "Federico García Lorca foi uma dessas vítimas de um país em discórdia consigo mesmo, que buscou por um caminho equivocado a afirmação de sua identidade." É também essa a opinião do biógrafo Ian Gibson, que após identificar a participação de Lorca em várias manifestações políticas (incluindo o "comício de solidariedade com os antifascistas do Brasil" e o "Manifesto pela liberdade de Prestes e contra a repressão em Porto Rico", diz textualmente: "Sabe-se que, para aqueles que venceram a contenda, o fuzilamento do poeta foi um imprevisto que viria acarretar sérios transtornos na condução da política nacionalista. O próprio general Francisco Franco ficou irritado quando tomou conhecimento da notícia, e tentou justificar a tragédia afirmando que a mesma se processou em circunstâncias caóticas", etc. Enfim, Gibson, que não absolve os assassinos nem o regime que matou o poeta, sustenta que a exploração ideológica do fuzilamento transformou o escritor "em um paladino dos ideais republicanos da Espanha, em um estandarte da democracia, em um autêntico mártir político do liberalismo". O conhecido biógrafo acentua que o poeta jamais admitiu "transformar-se em líder de qualquer movimento". Conclui García Morejón: "Na madrugada de 19 de agosto de 1936 gerou-se o símbolo, criou-se o mito Federico García Lorca, isso que ele jamais desejou ser. E este sentido mítico que as intenções políticas do momento imprimiram à sua personalidade e à sua obra contribuíram para que se deslocassem do terreno artístico ou literário para o terreno extra-literário os verdadeiros valores deste escritor." O espírito popular e autenticamente espanhol da poesia e do teatro de Federico García Lorca é constantemente ilustrado nos dois livros de Julio García Morejón, sem prejuízo da absorção das novas correntes estéticas do escritor espanhol, que não hesitou recorrer ao surrealismo em vários dos seus livros. É o que se diz, por exemplo, de Poeta em Nova York, mas o professor Morejón faz a reserva: "Se existe um certo surrealismo nesses poemas é muito mais de forma que de fundo e até este seria bastante discutível." Na outra face da península,
o contraponto de Lorca é Fernando Pessoa.
Talvez este desencontro seja explicável pela secular desconfiança dos portugueses perante os castelhanos, pois não esquecem os primeiros a opressão filipina de 1580 a 1640. Declarar que no campo cultural uns e outros têm vivido de costas voltadas é repetir o óbvio, apesar de rápidas incursões no diálogo eventual. Desconhecimento ocasionnal? Parece que sim, embora as aproximações literárias, ainda que evidentes, apareçam agora claras. Até 30 de novembro de 1935, Federico García Lorca já havia publicado diversos livros de poesia e feito representar algumas peças de teatro. E não obstante haver publicado apenas Mensagem e vários folhetos poéticos, Fernando Pessoa esteve bem presente nos jornais e revistas da sua época, por meio da divulgação de 152 textos de prosa e 299 de poesia, de acordo com a pesquisa bibliografica de José Blanco. Quer dizer, os poetas da Espanha e de Portugal não se cruzaram, nem pela leitura, nas publicações culturais, ausência tanto mais estranha porque um e outro sempre se interessaram pelos movimentos estéticos que explodiram na Europa, após o início do século 20. Tudo isto é muitíssimo estranho porque as obras de Pessoa e de Lorca foram acesamente discutidas na imprensa. E ainda mais inexplicável se torna este desencontro quando está hoje provado que os dois poetas, tão assíduos na correspondência com outros literatos e artistas, chegaram a manter contatos epistolares com os mesmos escritores. Desconfiança mútua? Tudo sugere que não, se nos limitarmos às informações colhidas nos estudos que pudemos compulsar até este momento. O afastamento é inexplicável ao lembrarmos que Federico García Lorca é o poeta espanhol mais lido em Portugal - e Fernando Pessoa é o único poeta português de larga projeção na Espanha, entre os contemporâneos. E dos diferentes livros e numerosos artigos divulgados em Portugal, merece destaque a antologia poética García Lorca, de 1946, com seleção e tradução de Eugênio de Andrade, um estudo de Andrée Cabré Rocha e um poema de Miguel Torga intitulado significativamente de "Federico García Lorca" (está incorporado nos Poemas Ibéricos torquianos). Pouco tempo após a morte de Lorca, a prefaciadora testemunhava que "o bruxo poeta andaluz vive uma vida de eternidade cada vez mais luminosa no coração de todos aqueles que o conheceram ou o amaram, de todos aqueles que eram seus: os amigos, os devotos, o povo de Espanha e os admiradores do mundo inteiro". O inverso é igualmente
verdadeiro: em Fernando Pessoa/Esboço de uma Bibliografia, José
Blanco enumera 42 livros e artigos relevantes publicados em castelhano
não somente na Espanha mas também na Argentina, México,
Venezuela, com natural proeminência da Espanha, porém incluindo
Tenerife e Gran Ganária. A lista foi impressa em 1993 e, desde então,
alongou-se extraordinariamente, mas é por demais convincente. No
Encontro Internacional do Centenário de Fernando Pessoa (Lisboa,
1990) foram apresentados três oportunas comunicações:
"El paisaje - um estado de alma? Fernando Pessoa y Juan Ramón Jiménez",
da autoria de Pilar Gómex Bedate; "Hubo intervención española
en la vanguardia protuguesa?", de Pablo del Barco; e "El viaje de Fernando
Pessoa", de José-Angel- Cilleruelo.
João Alves das Neves é escritor e professor, publicou Poesias Ocultistas de Fernando Pessoa, Pe. António Vieira, Profeta do Novo Mundo, e preside o Centro de Estudos Fernando Pessoa (São Paulo) |