Joaquim Cardozo
Rembrandt
Rembrandt, filho do moleiro Rijn, nasceu em Leyde, em
1606. Completa-se, assim, este ano (1956), o sétimo cinquentenário
de seu nascimento. Pode-se dizer ainda que esta data registra o
terceiro centenário do apogeu da atividade artística do pintor,
pois, como é de aceitação geral, com a execução, no ano de 1656, da
“Bênção de Jacob”, o artista teria alcançado o domínio absoluto de
sua arte.
No momento em que, na Holanda, para comemorar esse
duplo acontecimento, os museus de Amsterdam, de Roterdam, de Leyde,
estão promovendo grandes exposições de suas obras, não é demais
repetir, diante das reproduções de suas pinturas e águas-fortes,
agora apresentadas no Museu Nacional de Belas Artes, as
extraordinárias virtudes desse pintor unanimemente considerado como
um dos maiores da humanidade.
A pintura de Rembrandt é o drama puro e simples do
nascimento e da morte. Dos espaços de sombra dos seus quadros surgem
as figuras – incertas e imprecisas - , caminham para uma região
iluminada, aos poucos se organizam em formas seguras e exatas, para
logo se dissolverem, destruídas de novo pelo impacto violento da
luz, como os seres vivos que assomam da escuridão do desconhecido,
se expandem por certo tempo em pleno fulgor da existência, e depois
desaparecem, queimados pela luz da consciência, desfeitos pelo ardor
da própria vida. Há gravuras de Rembrandt em que esse ciclo é
exatamente representado como o traço de uma linha que atinge, em
sentidos opostos, dois infinitos que se confundem, em que a luz é
revelada numa graduação crescente e alcança a mais intensa vibração,
como se resultasse de uma queda vertiginosa de altos níveis de
energia; essa luz que ora desce dos céus como um raio, ora penetra
por uma janela como um jorro, uma chuva de partículas fulgurantes,
ora explode no centro da tela como a desintegração instantânea de
substâncias nucleares, luz para onde avançam, atraídos e dominados,
todos os seres que aspiram a viver e, dentro da qual, são abrasados
e consumidos.
A pintura de Rembrandt é o drama da própria
consciência do pintor que, para maior clareza, na série de pinturas
em que retrata a si mesmo e a Titus e a Saskia e a Hendrijke,
reproduz o mistério do nascimento e da morte em termos de luz e
sombra. Basta olhar-se o seu último auto-retrato, de 1668, já
próximo de sua morte, que sucedeu um ano depois, para se ver um
rosto não mais surgindo, mas se desfazendo na sombra, corroído pela
luz. A série dos seus retratos dá ainda uma idéia da pintura
religiosa e do realismo de Rembrandt, que representam talvez o
último termo da interpretação dos motivos religiosos que, segundo
Dvorak, teve na arte cristã um sentido em tudo diverso daquele dos
antigos, por desprezar a representação isolada dos tipos de
divindade e fixar a ação, o sucesso, a “história figurada ”de
acontecimentos passados”, “sempre baseada ”na observação da vida ou
na fantasia”. Foi um pouco na fantasia e muito na observação da vida
que o grande pintor holandês encontrou aquele sentido humano e
habitual das cenas religiosas que pintou.”Como já o fizera
Caravaggio na “Morte da Virgem e na “Conversão de São Paulo.
Rembrandt descreve os episódios bíblicos como se
fossem cenas cotidianas, numa afirmação poderosa das condições
ambientes, numa sinceridade sempre presente e atual: ”Jesus e a
Samaritana, O evangelista São Mateus”. Os “Discípulos de Emaús”
diferem pouco dos seus retratos e quadros de gênero. Com isto, em
verdade, ele apenas se adaptava à tendência geral da arte holandesa
do seu tempo; arte que já usava largamente o “tenebrismo”
caravvagesco, que assimilava e refletia as aspirações e exigências
de uma nova maneira de sentir e compreender a vida. E era essa mesma
compreensão objetiva, imediata e utilitária, tocada ainda por uma
luz de idealismo, de audácia e de aventura, que animava os arrojados
navegadores e os hábeis comerciantes dos Países Baixos , pioneiros
da burguesia como classe revolucionária e triunfante.
Mas essa integração no espírito realista do seu
tempo, como a sua adesão à técnica do claro-escuro, não se verifica
sem o sinal de sua grande personalidade, sem que tivessem, do seu
espírito magnífico, a marca inconfundível e impressionante impressa
na afirmação da própria vida como o sentido eletivo da existência,
na substituição silenciosa de todos os seres pelo seu próprio ser: a
redução do Cosmos ao seu eu corajoso, autoritário e comunicativo,
imenso e solidário com as fraquezas e virtudes humanas.
Desse “Miguel Ângelo que não teve Júlio II “, como a
seu respeito tão bem se exprimiu André Malraux, se poderá dizer que
foi a expressão mais perfeita do sentimento e da cultura holandesas,
a imagem verdadeira e harmoniosa de sua época e o modelo mais
legítimo de um gênio universal.
|