Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Júlio Castañon Guimarães


 

Prefácio a Tempo espanhol*

 

Pela diversidade que a caracteriza, decorrente das várias mutações por que passou, na obra de Murilo Mendes é especialmente difícil estabelecer peças principais. De qualquer modo, Tempo espanhol é um de seus momentos fortes, pois concentra muitas questões e, por isso mesmo, estabelece muitas conexões. No livro estão alguns dos mais belos poemas de Murilo Mendes, poemas sempre lembrados e que qualquer antologia de sua obra deve incluir. Além disso, o livro como que convoca diversos elementos de toda a obra do poeta e se põe em proveitoso diálogo com algumas vertentes da poesia brasileira da época.

Tempo espanhol foi publicado pela primeira vez em 1959 por uma editora de Portugal. Nesse mesmo ano, saíram também dois outros livros de Murilo Mendes. No Brasil, era lançado o volume que reunia o conjunto de sua obra poética, com o título Poesias. Na Itália publicava-se uma edição bilíngüe de Siciliana. O volume Poesias incluía todos os livros de poesia até então publicados, com exceção de História do Brasil, que Murilo Mendes excluiu desse conjunto por considerá-lo destoante. Mas, além dos livros publicados, Poesias incluía também alguns livros que até então não tinham tido edição autônoma e que ali se publicavam pela primeira vez. Esses livros eram Sonetos brancos, Parábola e Siciliana. No caso deste último, era a primeira vez que se publicava no Brasil, pois simultaneamente (ou talvez um pouco antes) saía a edição italiana bilíngüe, na qual até se podia ler uma nota que dizia que o livro fazia parte das Poesias, "obra em impressão no Rio de Janeiro". Nas Poesias lê-se que a impressão terminou em junho, enquanto em Siciliana consta que a impressão se deu em maio.

Tempo espanhol é publicado num momento de reavaliações e mudanças. No plano da poesia brasileira, lembre-se que Carlos Drummond de Andrade publica em 1951 Claro enigma (com o recurso à forma clássica do soneto e a epígrafe de Valéry declarando que os acontecimentos o entediam) e em 1962 Lição de coisas (em que a concisão de alguns poemas se alia a experiências formais), enquanto em 1960 João Cabral de Melo Neto publica Quaderna (já com o rigor da organização serial). A este contexto e aos dados editoriais antes mencionados, soma-se o fato de que nessa época Murilo Mendes se transferira para a Itália. Irrompe assim em sua poesia a temática de um novo espaço, ao mesmo tempo que se modifica sua situação editorial, pois alguns livros já não são publicados no Brasil. O volume das Poesias, além da exclusão de um livro anteriormente publicado, apresentava também um grande número de alterações nos poemas e até mesmo de ordenação dos conjuntos de poemas dos livros, com exclusões e inclusões de poemas. Esse processo, em que a obra permanece como que em curso, em escrita, pode pelo menos sinalizar para o fato de que as mudanças não são bruscas e de que as diferentes etapas não são isoladas nem excludentes. Esta observação vem a propósito do fato de que os livros que são publicados pela primeira vez nesse volume da poesia completa representam uma guinada, mas, como adiante se referirá, não são interrupções no andamento da obra.

Os Sonetos brancos são a experimentação de uma forma clássica que se faz pela primeira vez na obra do autor. São também uma poesia de caráter mais reflexivo, numa linhagem de imagens por isso mesmo mais contidas. Mas são experimentação ainda em outro sentido, o de que o poeta recorre à ausência de rimas, como indicado pelo título, a uma métrica não constante, e a uma refinado entranhamento entre desenvolvimento discursivo e efeitos sonoros. Parábola, se dispensa a forma clássica, desenvolve também o caráter reflexivo e severo, embora não em todos os poemas, pois retoma em certa medida uma dicção anterior.

Tempo espanhol e Siciliana, ainda que publicados no mesmo ano, têm épocas diferentes de realização. Siciliana, escrito entre 1954 e 1955, antecede de pouco, portanto, Tempo espanhol, escrito entre 1955 e 1958. Siciliana, em que a poética de Murilo Mendes já apresenta os elementos que se acentuarão em Tempo espanhol, como a dicção concisa e mais apegada a elementos concretos, constitui uma primeira incursão de Murilo Mendes numa poesia voltada para um espaço geográfico determinado. Representa também - já que livro escrito a partir de um espaço estrangeiro - uma primeira incursão por uma literatura de viagem, que em Murilo Mendes tem características muito especiais, pois nesse setor ele nunca se desviou para o relato ou a crônica. Na verdade os espaços geográficos a partir dos quais ele escreveu eram, não espaços naturais, mas espaços onde se erguem elementos culturais. Com isto, a literatura de viagem também vem a ser dominada pela temática cultural. Nas obras seguintes de Murilo Mendes, essas dimensões ocuparão espaço preponderante.

Nessa linha de mudanças por que vem então passando o discurso poético de Murilo Mendes, Tempo espanhol chama a atenção por acrescentar novos dados, como a radicalização de certos elementos e a incorporação definitiva da temática geográfico-cultural. Assim, essa linha temática produzirá a seguir alguns livros de prosa, como Espaço espanhol, Janelas verdes e Carta geográfica. Nos livros de poemas seguintes, Convergência e o póstumo Ipotesi, a mesma temática será preponderante. Todavia, assim como terão continuidade, nenhum dos novos dados de Tempo espanhol irrompe abruptamente neste livro. Ao longo da obra anterior de Murilo Mendes, a temática cultural já se encontra presente. Em diferentes livros, encontram-se poemas dedicados a Mozart, Cícero Dias, Jorge de Lima, Goeldi, Vieira da Silva, Ismael Nery, Vermeer de Delft, para não falar em Contemplação de Ouro Preto, de 1954, que na verdade é o primeiro livro em que Murilo Mendes se dedica a um espaço geográfico abordado em seus elementos culturais. Aí a cidade mineira, se em muitos poemas é descrita em sua constituição física, é também tratada por meio de seus escritores e artistas - sua paisagem tende, em última instância, a se resumir a elementos culturais.

Examinando-se Tempo espanhol a partir de elementos como o verso, a constituição das estrofes, a seleção vocabular, a construção das frases, e assim por diante, encontram-se materiais essenciais para uma melhor compreensão do projeto do livro, pois nesses aspectos estão algumas de suas características peculiares. O poema, por exemplo, que abre o livro, "Numancia", tem apenas quatro estrofes compostas de dísticos. Essa pequena estrofe surgirá ainda em outros poemas - "Pueblo", "O passante de Sevilha", "O sol de Granada", "O chofer de Barcelona". Bom número dos poemas do livro apresenta essas dimensões mais reduzidas. O próprio metro tende a ser mais curto. A frase tende também a ser direta e simples. Assim, no poema "Ávila", o primeiro verso é composto de uma frase completa: "O aeronauta conduz a bordo a palavra silêncio". Já no poema "A Virgem de Covet", é toda a primeira estrofe que é constituída por um único período simples: "Nessa talha policroma / Resumo o estilo severo / Dos primeiros catalães, / Mestres da força, escultores". Paralelamente, em decorrência da adesão à realidade que se torna objeto dos poemas, o vocabulário tende a se simplificar, a se valer de termos imediatamente referentes aos elementos de um determinado universo. Nesse plano, há um conjunto de vocábulos que, na medida em que correspondem a uma visão do objeto dos poemas, se voltam também para a própria concepção que norteia esses poemas. Esse aspecto já foi ressaltado num estudo fundamental sobre Tempo espanhol, o texto de Haroldo de Campos "Murilo e o mundo substantivo" (incluído em seu livro Metalinguagem). Aí Haroldo de Campos mostra como Tempo espanhol vinha a ser a culminação (na época do artigo era o último livro publicado de Murilo Mendes) de um processo de substantivação, processo que implica os vários níveis da elaboração poética. No caso do vocabulário, tal como realçado por Haroldo de Campos, são vocábulos como "rigor", "concreto", "concisão", "lucidez", "geometria" que marcam o encaminhamento do processo. A persistência ao longo do livro desses vocábulos, bem como de outros conexos, está estreitamente associada a toda uma poética que toma corpo em Tempo espanhol.

Todavia, não se trata aqui de ruptura, como no tocante a outro nível já se fez referência. É possível alinhar alguns poemas de diversos livros anteriores de Murilo Mendes que apontam para esse caminho no meio do qual surge Tempo espanhol. Em um livro como Os quatro elementos, datado de 1935 e só publicado em 1945, encontra-se um poema como "Oito horas", composto de uma estrofe de quatro versos, cada um deles de duas frases paralelas; o primeiro verso diz: "É a hora do vulcão, é a hora da mazurca" e o processo se repete nos outros versos. No mesmo livro, há uma série de poemas que aliam uma extrema concisão à fulguração imagética própria de Murilo Mendes. Em Poesia liberdade, o poema "Algo", um dos mais conhecidos e mais belos de Murilo Mendes, é uma obra-prima de condensação poética. No mesmo livro, um poema como "Vermeer de Delft" também se situa no mesmo âmbito dos poemas compostos com termos que representam diretamente os objetos. No livro Parábola, tem-se um exemplo como o poema "Iniciação", em que o poeta alcança alto nível de depuração.

Lembre-se também que em livros anteriores os poemas evidentemente desencadeados pelo impacto da Segunda Guerra Mundial expressavam o horror da situação às vezes por meio de imagens, às vezes de forma mais direta, como no poema "A noite em 1942", de Mundo enigma, em que se lê: "O vampiro Ditador / Semeou espadas / Colhe cadáveres". Em Tempo espanhol a realidade coletiva também se faz presente e surge de forma efetivamente crua, como nos poemas "O chofer de Barcelona" e "O Cristo subterrâneo", em que se pode ler: "É um Cristo de homens-larvas, / Famintos, inacabados, Morando em covas escuras / De Barcelona e Valência".

No outro sentido do percurso, isto é, no do trabalho posterior, fica claro que Convergência é um livro de quem passou pelo Tempo espanhol, um livro em estreito diálogo com a vertente construtiva da poesia. O projeto que nele se cristaliza é radicalizado nas experimentações de Convergência. Lembre-se que, algum tempo depois da publicação de Tempo espanhol, Murilo Mendes publicou uma série de poemas no número 5, de 1966, da revista concretista Invenção, poemas que iriam fazer parte de Convergência. Neste o poeta explora possibilidades fônicas e semânticas dos vocábulos, dimensões visuais, potencialidades lingüísticas por meio das quais cria vocábulos, e assim por diante. O livro seguinte, Ipotesi, escrito em italiano, não apresenta de modo explícito esses elementos, mas nele, na verdade, estão incorporadas conquistas tanto de Tempo espanhol quanto de Convergência. E mesmo na prosa, essas conquistas da poética muriliana estão presentes, como é o caso de A idade do serrote, de 1968, onde são encontrados procedimentos similares aos dos livros de poemas da mesma época.

Em poema de Tempo espanhol, "O dia do Escorial", encontra-se um verso que é emblemático da poética muriliana nesse período. Diz o verso:
 

O espaço     o espaço     o espaço aberto.
 

Em primeiro lugar, a ênfase no espaço indica o âmbito do olhar do poeta, voltado para uma realidade física; em seguida, a disposição gráfica da palavra "espaço", que se repete três vezes, com grandes intervalos espaciais entre cada repetição, constitui a concreção no corpo do poema da amplitude espacial a que ele quer se referir.

Já o poema "A Tomás Luís de Victoria, músico" aponta para outro princípio cada vez mais forte na poesia muriliana. Voltado para a música do compositor espanhol do século XVI, o poema, logo na primeira estrofe, relaciona-a com o espírito espanhol, mostrando que a elaboração musical de Victoria está plena de humanidade. O que aqui interessa, porém, é que essa relação se faz pelo rigor, sobretudo na segunda estrofe, o que é um eco da própria poética muriliana. Mas um eco na verdade entre diferentes poemas de Murilo Mendes, de livros distintos, é o que se encontra nesta estrofe. Os versos "Minha forma / Vive dando tapas na minha essência", do poema "O poeta nocaute" (O visionário), reformulam-se aqui em "centro essencial da forma". As "colunas da ordem e da desordem" do poema "Os dois lados" (Poemas), com a tensão dos opostos que marcava a poesia muriliana, ressurgem aqui de forma definida, como "colunas do som", associadas claramente à ordem, à "disciplina de Victoria". A diretriz de rigor - de Victoria e do próprio poema - associa-se ainda ao elemento concreto - no caso, designado tecnicamente como "discurso cromático".

O poema "Aos poetas antigos espanhóis", logo em seu primeiro verso estabelece a base de que o próprio Tempo espanhol vem a ser herança: "Da linguagem concreta iniciadores". O exercício de conformação desta linguagem constituirá a marca de diversos outros poemas, trazendo para eles elementos objetivos de consideração da linguagem, inclusive elementos próprios, de início, do universo analítico-crítico. Em poemas como "Arco de Góngora" e "Lida de Góngora", o emprego de vocábulos como "verso", "ode, "vocabulário", "metáfora", "analogia", "verbo" revela o espectro não só da visão que os poemas apresentam sobre Góngora, mas do próprio plano de constituição dos poemas.

A noção que preside o livro é insistente em sua explicitação. Pode ser encontrada em poemas dedicados a autores como Quevedo, Antonio Machado e Lorca. Em "Tempo de Quevedo", lê-se "Quevedo, a angústia do tempo / Informa tua visão concreta"; em "Pausa de Antonio Machado": "E onde o poeta é conduzido / Pelas mãos alternativas / Do irreal e do concreto"; em "Canto a García Lorca": "Onde Espanha é calculada / Em número, peso e medida". Naturalmente não é somente a observação isolada da freqüência elevada desses termos que possibilita uma percepção do projeto de Tempo espanhol. A preocupação com o concreto se soma a outras, como o rigor, a medida, a contenção. O exame de alguns poemas permite ver como esses elementos se articulam no livro.

O primeiro verso do poema "Joan Miró" diz: "Soltas a sigla, o pássaro e o losango". Aí se tem apenas uma enumeração de elementos visuais concretos presentes na obra de Miró. Os dois versos seguintes dizem: "Também sabes deixar em liberdade / O roxo, qualquer azul e o vermelho". O primeiro, na medida em que se refere à liberdade de associação das cores - também elementos visuais concretos dos quadros -, indica retroativamente que "também" os elementos do primeiro verso se associam livremente. E por sua vez o verbo inicial "Soltas" repercute semanticamente no "em liberdade" do segundo verso. Essa noção é retomada nos versos seguintes: "Todas as cores podem aproximar-se / Quando um menino as conduz no sol". Dentro da insistência na "liberdade" com que se compõe a obra de Miró, o poema recorre à imagem do menino. E com esta imagem sinaliza a condição de reinauguração própria dos procedimentos do artista plástico. Todo o poema se marca pela exposição de um conjunto de elementos que implicam uma extrema liberdade, sendo que esta resultaria numa desintegração da ordem. Mas, sobretudo para a poética muriliana, a obra só subsiste como construção, o que é explicitado pelos versos "A ordem que se desintegra / Forma outra ordem". O poema se compõe, portanto, de uma exposição concreta dos elementos da pintura de Miró e de uma exposição da poética do artista (via poética muriliana).

O poema "Juan Gris" é marcado pela sucessão de vocábulos como "pureza", "medida", "concisão", "pensada", "clareza", "acordo", "simetria", aspectos ligados à pintura de Gris. Não só é marcado por essas diretrizes, mas também se elabora de acordo com elas. Compõe-se de duas estrofes, cada uma com cinco versos, de sete sílabas. É possível dizer que, na primeira estrofe, a Espanha é associada a espaço, que se resolve na pintura de Gris em concisão; e que na segunda estrofe, a Espanha é associada a irracionalidade, que a pintura de Gris resolve em "acordo e simetria". As resoluções se dão, num caso, "Pelo pincel de Juan Gris" e noutro, "Pelos planos de Juan Gris". O "acordo e simetria" do próprio poema vem a ser não somente o que se verifica em Gris, mas a organização do poema, com seus jogos de paralelismos, repetições e interligações.

Os exemplos acima talvez dêem uma idéia dos procedimentos construtivos em operação no Tempo espanhol. Mas provavelmente falham - e espera-se que com isto incitem à leitura - pela incapacidade de dar a perceber o ânimo que pulsa nos poemas deste livro, em que se entrecruzam a rebeldia, a religiosidade, o inconformismo, a criatividade, a sensibilidade de uma Espanha cujo horizonte é a história. Uma história pontuada por seus pintores, toreadores, poetas, místicos, por sua arquitetura, seus ritos, suas paisagens.


* Publicado como prefácio de Tempo espanhol, de Murilo Mendes (Rio de Janeiro: Record, 2001).

 

Murilo Mendes

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08.12.2005