Uma grande sala, no Vaticano. Paredes cobertas de panos de Arras
- Amplos tectos de caixão, com apainelamentos de talha doirada -
Um retrato de cardeal vermelho, sobre o fogão - À D. baixa,
o cravo, o violoncelo e o violino de um terceto clássico - Estantes
altas de coro - Luzes - Ao fundo, largo tamborete onde repousam as capas,
os chapéus, os bastões - À E. baixa, grande armário
pesado de baixela de oiro e prata lavrada - Quase a meio, bufete onde ceiam
os três cardeais: toalha de holandilha, picada de rendas; serviço
de Sèvres, azul e oiro; cristais.
CARDEAL GONZAGA, CARDEAL RUFO, CARDEAL DE MONTMORENCY, sentados ao
bufete, ceando; os fâmulos, vestidos de verde e prata, servem-nos,
de joelhos.
CARDEAL RUFO, visivelmente agastado.
Será já amanhã!
CARDEAL RUFO, a outro fâmulo
Xerez.
Continuando, a de MONTMORENCY:
Roma! Roma! Que viu pela primeira vez,
Benedito XIV, um para receber
Conselhos de Inglaterras e cartas de Voltaire!
CARDEAL DE MONTMORENCY, grandioso
As cartas de Voltaire honram!
CARDEAL RUFO, num sorriso de desdém
É natural.
Fala como francês.
CARDEAL DE MONTMORENCY, com dignidade
Falo como cardeal!
CARDEAL GONZAGA, intervindo de novo
Mas, perdão... Não será política demais
Para uma ceia alegre? Enfim, três cardeais
Não salvam Roma ...
CARDEAL RUFO, numa grande atitude
Pois, em minha consciência,
Bastava um só para salvar!
CARDEAL DE MONTMORENCY, com ironia
Vossa Eminência?
CARDEAL GONZAGA, conciliando docemente
Deixemos isso a Deus. E, na divina mão.
Roma repousará
CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso
Vamos nós ao faisão?
Trinchando, com galanteria:
Se permitem, eu sirvo. É um faisão doirado,
Mau político, sim, mas todo embalsamado
De trufas. Nunca fez encíclica nenhuma;
Não usou solidéu por sobre a áurea pluma,
E, se um dia assistisse a qualquer consistório,
Dormiria como eu - e como S. Gregório.
AO CARDEAL RUFO:
Eminência, não acha?
AO CARDEAL GONZAGA, servindo:
A perna? A asa? O peito?
Muito superior, sobretudo em direito
Canônico. _ Uma àsinha, Eminência? Talvez
A possa amaciar, regando-a de Xerez.
A ave é rija demais para velhinhos doentes...
CARDEAL GONZAGA, formalizando
Eminência, ainda tenho uns quatro ou cinco dentes.
CARDEAL RUFO, provando o faisão
Benedito talvez não ande muito mal
Ser der ao cozinheiro o chapéu de cardeal!
CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL RUFO
Inda agora, a Eminência agastou-se comigo.
Confesse...
CARDEAL RUFO
Eu?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Agastou.
CARDEAL RUFO, desculpando-se
Voltaire é um inimigo...
CARDEAL DE MONTMORENCY
E nós amigos. São discordantes fugaces.
Eminências...
CARDEAL RUFO, abraçando-o
Depois...
CARDEAL DE MONTMORENCY, beijando-o
Vem o osculum pacis
CARDEAL RUFO
Sobre um beijo outro beijo e sobre um ano outro ano...
Como envelhece a gente, o Velho Vaticano!
A política... O mal que se faz e desfaz
No mistério subtil destes panos de Arrás...
A intriga na sombra, os passos sempre incertos...
CARDEAL GONZAGA, olhando a estante de música
O que nos vale...
CARDEAL DE MONTMORENCY
Ah, sim...São os nossos concertos.
CARDEAL RUFO
Música de uma unção espiritual tão grande!
CARDEAL GONZAGA, em êxtase
Como a alma sobe a Deus nas fugas de Lalande!
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY
Depois, o seu violino... Eminência é artista...
CARDEAL DE MONTMORENCY, a RUFO
E o seu violoncelo...
CARDEAL RUFO
Oh! A perder de vista!
Num sorriso de beatitude:
Só com três cardeais, Roma era um céu aberto!
CARDEAL DE MONTMORENCY, tristemente
Tão longe a mocidade...
CARDEAL GONZAGA, numa lágrima
E o trêmulo tão perto!_
Caiu-nos sobre a fronte a neve dos caminhos...
CARDEAL RUFO
Envelhecemos tanto!
CARDEAL GONZAGA, a RUFO
Estamos tão velhinhos..._
Já fez sol, para nós.. Sol! Pois não é
verdade?
CARDEAL RUFO, como num sonho
Sol!
CARDEAL DE MONTMORENCY, a um dos fâmulos
Mais champanhe.
CARDEAL GONZAGA
Sol! _ Nós que somos a saudade.
O pensar que se amou, que se viveu... O amor!
_ Um tronco envelhecido a cuidar que deu flor!
Depois, num embevecimento:
Misterioso monte é neste mundo a vida!
Todo rosas abrindo, ao galgar na subida,
E a velhice, ao descer, toda cheia de espinhos...
_ Ai, tão velhinhos!
CARDEAL RUFO, tristemente
Tão velhinhos!
CARDEAL DE MONTMORENCY, olhando os dois,
com ternura
Tão velhinhos!
CARDEAL RUFO
Relíquias. Devo ter setenta e três, já feitos.
CARDEAL GONZAGA
Eu tenho oitenta e um.
CARDEAL DE MONTMORENCY, sorrindo a, a olhá-los
São dois velhos perfeitos!
Três... Três velhos sem cor, que a saudade aviventa...
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY
Vossa eminência tem, quantos?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Tenho sessenta.
CARDEAL RUFO, ao CARDEAL GONZAGA,
olhando DE MONTMORENCY com inveja infantil
Sessenta, só!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Sessenta. E a vida já me cansa...
CARDEAL GONZAGA
Vossa Eminência está ainda uma criança!
CARDEAL RUFO, olhando DE MONTMORENCY
Também já fui assim! E que rijo que eu era!
Sessenta anos! Ainda em plena Primavera!
Tal qual assim... Tal qual!
CARDEAL GONZAGA
E eu! O que direi eu!
CARDEAL RUFO
Então, ainda compunha ao espelho o solidéu
E via com amor, sob a seda vermelha,
Uns fios de oiro a rir por entre a prata velha!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Mas, Eminência, não! Com sessenta anos feitos,
Não sou, precisamente, uma criança de peitos.
Sou um velho, também... Um velhinho, com o ar
De quem viveu feliz e envelhece a cantar...
CARDEAL GONZAGA
É. É uma criança. Em tendo a nossa idade,
Verá que o relembrar coisas da mocidade
É o prazer maior que podem ter os velhos...
Para nós, recordar é cair de joelhos.
CARDEAL DE MONTMORENCY
Eu sei, eu também sei... Recordar é viver,
Transformar num sorriso o que nos fez sofrer,
Ressurgir dentro d’alma uma idade passada,
Como em capela de oiro há cem anos fechada,
Onde não vai ninguém, mas onde há festa ainda...
Se eu não hei-de saber como a saudade é linda!
Se eu não hei-de saber! _ É curioso, Eminências.
Não fizemos ainda as nossas confidências,
E somos como irmãos... Tão amigos!
CARDEAL RUFO
É certo!
CARDEAL GONZAGA
Confidências?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Então... A morte vem tão perto!
Olhemos para trás, lembremo nos da vida...
A saudade de um velho é uma estrada florida!
CARDEAL RUFO
Confidências de amor!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Porque não há-de ser?
Em toda a mocidade há um rido de mulher.
Contemos esse rido uns aos outros...Nós três...
Recordar um amor é amar outra vez!
Ninguém nos ouve...
CARDEAL GONZAGA
Mas, Eminência!
CARDEAL DE MONTMORENCY
O maior
Amor da nossa vida!
CARDEAL GONZAGA, com pudor, tapando a cara
Oh!
CARDEAL RUFO, como quem sonha
O maior amor!
CARDEAL GONZAGA
Mas nós somos cardeais!
CARDEAL RUFO, entusiasmando-se
O sentimento humano
Em toda a parte vive, até no Vaticano!
E esta púrpura - ai não, seria crueldade! _
Pode matar o amor, mas não mata a saudade!
CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL GONZAGA
Principie o mais velho... Eminência...
CARDEAL GONZAGA
Não, não...
Por Deus!
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY
Seja o mais novo.
CARDEAL DE MONTMORENCY, escusando-se,
polidamente num gesto
Oh!
CARDEAL RUFO
Serei eu, então.
Pensando um instante
Que lhes hei-de contar?
Erguendo a cabeça, os olhos brilhantes,
como quem encontrou:
Uma aventura linda,
Cheia de coração! Ai, não ter eu ainda
Mocidade na voz para a saber contar!
Eminências, perdão se eu acaso chorar...
Se uma lágrima... _ Enfim, são tudo impertinências
De velhos...
CARDEAL DE MONTMORENCY, convidando-o a principiar
Eminência...
CARDEAL RUFO, depois de um ligeiro cumprimento
a ambos
Eu começo, Eminências. _
Aos vinte anos, ou vinte e dois, pròximamente,
Fui eu, por gentileza a um fidalgo parente,
Com minha capa negra e minha volta branca,
Ler cânones e leis na Douta Salamanca.
Era então um pequeno, espadachim e ousado,
O feltro ao vento, o manto ao ombro, a espada ao lado,
Tendo o instinto da frase e a intuição do gesto
_ Um Velásquez no trajo, um Quixote no resto _,
Que seria talvez, por suprema façanha,
Capaz de desafiar o próprio rei de Espanha!
Nem pode calcular sequer, Vossa Eminência,
Como o meu buço loiro irradiava insolência!
Não matei em duelo o Sol, pelas alturas,
Só para não deixar Salamanca às escuras!
A respeito de amor, como essência divina,
Imitei o Don Juan de Tirso de Molina:
O amor, por mais ardente ou mais puro que fosse,
Morria, ainda em flor, com a primeira posse!
Detestava a mulher depois de conquistada:
A conquista era tudo: o resto, quase nada.
Queria lá saber de aventuras serenas!
Para mim, o amor era o duelo, apenas,
Batia-me ao acaso, enfim, por qualquer cousa,
Um beijo, uma mulher, uma pedra preciosa,
Uma flor que se atira, asa de oiro pelo ar,
A esmola de um sorriso, a graça de um olhar...
Já não tinha valor para mim nenhum bem,
Se não fosse preciso ir disputá-lo a alguém,
Lutar, vencer, rasgar, ardendo de desejo,
Com a ponta da espada o caminho de um beijo,
Pomar de assalto o Amor, ao Sol de mil perigos,
Como um rubro estandarte entre mãos de inimigos!
Assim vivia eu e os outros estudantes,
Lendo pouco Platão, lendo muito Cervantes,
Quando entrou de jornada em Salamanca, um dia,
Sobre carros de bois, a maior companhia
De cósmicos que eu vi ainda em toda a Espanha!
CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso
Se visse a de Molière... Oh!
CARDEAL RUFO, sem se perturbar
Não era tamanha,
Nem tão rica, por certo. Ah! Foi uma loucura
Na Universidade! _ A primeira figura
Do bando era uma viva e linda rapariga,
Um Rubens precioso, uma beleza antiga...
CARDEAL GONZAGA, tapando a cara
Oh!
CARDEAL RUFO
De um loiro flamengo, a cabecita airosa,
toda num garavim de seda cor-de-rosa,
Como um beijo de luz, rescendia inocência...
CARDEAL GONZAGA, estranhando a palavra
Oh!
CARDEAL RUFO
Eu peço
perdão se me excedo, Eminência,
Mas aquela mulher era um anjo dos céus!
Se Deus a pretendesse, eu desafiava Deus!
Ver um anjo a dizer-me - ó natureza cega! _
Versos de Calderon e de Lopo de Vega!
A representação foi sobre um pátio velho,
Todo armado à fidalga em damasco vermelho,
Num tapete real de capas de estudantes!
Num desfalecimento, escondendo uma lágrima:
Ai, o que eu sou agora! Ai, o que eu era dantes!
Quanta luz, quanto fogo a velhice nos rouba!_
Representaram não sei bem se a Niña Boba,
Um poemazinho leve onde a graça?
Nisto, em meio talvez da representação,
Ouvi ao pé de mim, dentre um bando folião
De escolares, dizer em voz rouca e sumida:
O rapto será logo, hem? Será à saída,
Na porta dos brasões. Quando a linda “bobinha”
Entrar na sua rica e leve cadeirinha,
Caíremos sobe ela, e...”Não ouvi mais nada.
Inda desembainhei meio palmo da espada,
Mas contive-me. ”Não. Logo é melhor” _ disse eu.
Quando acabou a peça era noite. Desceu
Uma tapeçaria. A cadeirinha, fora,
a porta dos brasões, para sua senhora,
Era um ninho infantil de lúcido brocado.
Perto, o bando escolar aguardava embuçado.
Ocultei-me também nas sombras da viela,
Desembainhei a espada, e. Nisto, assomou ela.
Diz-se: espada e anel, na mão em que estiver.
Mas sempre é forte a mão quando é linda a mulher!
Atirei-me de um salto, e em rápidos instantes,
Sozinho contra vinte e tantos estudantes,
Contra uma Faculdade inteira, expondo a vida,
A capa ao vento, a espada em punho, a pluma erguida,
Talhei, ensangüentei, feri, numa violência...
Esgrimindo, com o bastão, por sobre a mesa:
Assim! Assim!
Continua ...
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