Júlio Dantas

A CEIA DOS CARDEAIS ( Parte I )
Peça em um acto em verso, representada pela primeira vez 
no antigo teatro D. Amélia, em 28 de Março de 1902

 
Uma grande sala, no Vaticano. Paredes cobertas de panos de Arras - Amplos tectos de caixão, com apainelamentos de talha doirada - Um retrato de cardeal vermelho, sobre o fogão - À D. baixa, o cravo, o violoncelo e o violino de um terceto clássico - Estantes altas de coro - Luzes - Ao fundo, largo tamborete onde repousam as capas, os chapéus, os bastões - À E. baixa, grande armário pesado de baixela de oiro e prata lavrada - Quase a meio, bufete onde ceiam os três cardeais: toalha de holandilha, picada de rendas; serviço de Sèvres, azul e oiro; cristais. 

CARDEAL GONZAGA, CARDEAL RUFO, CARDEAL DE MONTMORENCY, sentados ao bufete, ceando; os fâmulos, vestidos de verde e prata, servem-nos, de joelhos. 

CARDEAL RUFO, visivelmente agastado. 
  

Será já amanhã! 
  

CARDEAL RUFO, a outro fâmulo 
Xerez. 

Continuando, a de MONTMORENCY: 

Roma! Roma! Que viu pela primeira vez, 
Benedito XIV, um para receber 
Conselhos de Inglaterras e cartas de Voltaire! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, grandioso 

As cartas de Voltaire honram! 

CARDEAL RUFO, num sorriso de desdém 
É natural. 

Fala como francês. 
CARDEAL DE MONTMORENCY, com dignidade 
Falo como cardeal! 
CARDEAL GONZAGA, intervindo de novo 
Mas, perdão... Não será política demais 
Para uma ceia alegre? Enfim, três cardeais 
Não salvam Roma ... 
CARDEAL RUFO, numa grande atitude 
Pois, em minha consciência, 
Bastava um só para salvar! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, com ironia 
Vossa Eminência? 
CARDEAL GONZAGA, conciliando docemente 

Deixemos isso a Deus. E, na divina mão. 
Roma repousará 

CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso 
Vamos nós ao faisão? 
Trinchando, com galanteria: 

Se permitem, eu sirvo. É um faisão doirado,  
Mau político, sim, mas todo embalsamado  
De trufas. Nunca fez encíclica nenhuma; 
Não usou solidéu por sobre a áurea pluma, 
E, se um dia assistisse a qualquer consistório, 
Dormiria como eu - e como S. Gregório. 

AO CARDEAL RUFO: 
Eminência, não acha? 
AO CARDEAL GONZAGA, servindo: 
A perna? A asa? O peito?  
Muito superior, sobretudo em direito 
Canônico. _ Uma àsinha, Eminência? Talvez 
A possa amaciar, regando-a de Xerez. 
A ave é rija demais para velhinhos doentes... 
  

CARDEAL GONZAGA, formalizando 

Eminência, ainda tenho uns quatro ou cinco dentes. 
CARDEAL RUFO, provando o faisão 
Benedito talvez não ande muito mal 
Ser der ao cozinheiro o chapéu de cardeal! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL RUFO 
Inda agora, a Eminência agastou-se comigo. 
Confesse... 

CARDEAL RUFO 
Eu? 

CARDEAL DE MONTMORENCY 

Agastou. 
CARDEAL RUFO, desculpando-se 
Voltaire é um inimigo... 
CARDEAL DE MONTMORENCY 
E nós amigos. São discordantes fugaces. 
Eminências... 
CARDEAL RUFO, abraçando-o 
                                    Depois... 
  

CARDEAL DE MONTMORENCY, beijando-o 
Vem o osculum pacis 
CARDEAL RUFO 

Sobre um beijo outro beijo e sobre um ano outro ano... 
Como envelhece a gente, o Velho Vaticano! 
A política... O mal que se faz e desfaz 
No mistério subtil destes panos de Arrás... 
A intriga na sombra, os passos sempre incertos... 

CARDEAL GONZAGA, olhando a estante de música 

O que nos vale... 

CARDEAL DE MONTMORENCY 
Ah, sim...São os nossos concertos. 

CARDEAL RUFO 
Música de uma unção espiritual tão grande! 

CARDEAL GONZAGA, em êxtase 
Como a alma sobe a Deus nas fugas de Lalande! 

CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY 

Depois, o seu violino... Eminência é artista... 
  

CARDEAL DE MONTMORENCY, a RUFO 
E o seu violoncelo... 

CARDEAL RUFO 
Oh! A perder de vista! 
Num sorriso de beatitude: 

Só com três cardeais, Roma era um céu aberto! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, tristemente 
Tão longe a mocidade... 

CARDEAL GONZAGA, numa lágrima 

E o trêmulo tão perto!_ 
Caiu-nos sobre a fronte a neve dos caminhos... 

CARDEAL RUFO 
Envelhecemos tanto! 
CARDEAL GONZAGA, a RUFO 
Estamos tão velhinhos..._ 
Já fez sol, para nós.. Sol! Pois não é verdade? 

CARDEAL RUFO, como num sonho 
Sol! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, a um dos fâmulos 
          Mais champanhe. 

CARDEAL GONZAGA 
Sol! _ Nós que somos a saudade. 
O pensar que se amou, que se viveu... O amor! 
_ Um tronco envelhecido a cuidar que deu flor! 

Depois, num embevecimento: 

Misterioso monte é neste mundo a vida! 
Todo rosas abrindo, ao galgar na subida, 
E a velhice, ao descer, toda cheia de espinhos... 
_ Ai, tão velhinhos! 

CARDEAL RUFO, tristemente 
Tão velhinhos! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, olhando os dois, 
com ternura 
Tão velhinhos! 
CARDEAL RUFO 

Relíquias. Devo ter setenta e três, já feitos. 
CARDEAL GONZAGA 
Eu tenho oitenta e um. 
CARDEAL DE MONTMORENCY, sorrindo a, a olhá-los 
São dois velhos perfeitos! 
Três... Três velhos sem cor, que a saudade aviventa... 
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY 

Vossa eminência tem, quantos? 
CARDEAL DE MONTMORENCY 
Tenho sessenta. 
CARDEAL RUFO, ao CARDEAL GONZAGA, 
 olhando DE MONTMORENCY com inveja infantil 

Sessenta, só! 

CARDEAL DE MONTMORENCY 
Sessenta. E a vida já me cansa... 

CARDEAL GONZAGA 

Vossa Eminência está ainda uma criança! 

CARDEAL RUFO, olhando DE MONTMORENCY 

Também já fui assim! E que rijo que eu era! 
Sessenta anos! Ainda em plena Primavera! 
Tal qual assim... Tal qual! 
CARDEAL GONZAGA 
E eu! O que direi eu! 
CARDEAL RUFO  
Então, ainda compunha ao espelho o solidéu 
E via com amor, sob a seda vermelha, 
Uns fios de oiro a rir por entre a prata velha! 

CARDEAL DE MONTMORENCY 
Mas, Eminência, não! Com sessenta anos feitos, 
Não sou, precisamente, uma criança de peitos. 
Sou um velho, também... Um velhinho, com o ar 
De quem viveu feliz e envelhece a cantar... 

CARDEAL GONZAGA 
É. É uma criança. Em tendo a nossa idade, 
Verá que o relembrar coisas da mocidade 
É o prazer maior que podem ter os velhos... 
Para nós, recordar é cair de joelhos. 

CARDEAL DE MONTMORENCY 
Eu sei, eu também sei... Recordar é viver, 
Transformar num sorriso o que nos fez sofrer, 
Ressurgir dentro d’alma uma idade passada, 
Como em capela de oiro há cem anos fechada, 
Onde não vai ninguém, mas onde há festa ainda... 
Se eu não hei-de saber como a saudade é linda! 
Se eu não hei-de saber! _ É curioso, Eminências. 
Não fizemos ainda as nossas confidências, 
E somos como irmãos... Tão amigos! 
CARDEAL RUFO 
É certo! 
CARDEAL GONZAGA 
Confidências? 
CARDEAL DE MONTMORENCY 

Então... A morte vem tão perto! 
Olhemos para trás, lembremo nos da vida... 
A saudade de um velho é uma estrada florida! 

CARDEAL RUFO 
Confidências de amor! 

CARDEAL DE MONTMORENCY 

              Porque não há-de ser? 
Em toda a mocidade há um rido de mulher. 
Contemos esse rido uns aos outros...Nós três... 
Recordar um amor é amar outra vez! 
Ninguém nos ouve... 

CARDEAL GONZAGA 
Mas, Eminência! 

CARDEAL DE MONTMORENCY 
O maior 
Amor da nossa vida! 
CARDEAL GONZAGA, com pudor, tapando a cara 

Oh! 

CARDEAL RUFO, como quem sonha 
O maior amor! 
CARDEAL GONZAGA 

Mas nós somos cardeais! 

                           CARDEAL RUFO, entusiasmando-se 

O sentimento humano 
Em toda a parte vive, até no Vaticano! 
E esta púrpura - ai não, seria crueldade! _ 
Pode matar o amor, mas não mata a saudade! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL GONZAGA 

Principie o mais velho... Eminência... 

CARDEAL GONZAGA 
Não, não... 
Por Deus! 
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY 

Seja o mais novo. 
CARDEAL DE MONTMORENCY, escusando-se, 
 polidamente num gesto 

Oh! 

CARDEAL RUFO 
Serei eu, então. 
Pensando um instante 
Que lhes hei-de contar? 

Erguendo a cabeça, os olhos brilhantes, 
como quem encontrou: 

                                                        Uma aventura linda, 
Cheia de coração! Ai, não ter eu ainda 
Mocidade na voz para a saber contar! 
Eminências, perdão se eu acaso chorar... 
Se uma lágrima... _ Enfim, são tudo impertinências 
De velhos... 

CARDEAL DE MONTMORENCY, convidando-o a principiar 

                           Eminência... 
CARDEAL RUFO, depois de um ligeiro cumprimento 
a ambos 
Eu começo, Eminências. _  
Aos vinte anos, ou vinte e dois, pròximamente, 

Fui eu, por gentileza a um fidalgo parente, 
Com minha capa negra e minha volta branca, 
Ler cânones e leis na Douta Salamanca. 
Era então um pequeno, espadachim e ousado,  
O feltro ao vento, o manto ao ombro, a espada ao lado,  
Tendo o instinto da frase e a intuição do gesto 
_ Um Velásquez no trajo, um Quixote no resto _, 
Que seria talvez, por suprema façanha, 
Capaz de desafiar o próprio rei de Espanha! 
Nem pode calcular sequer, Vossa Eminência, 
Como o meu buço loiro irradiava insolência! 
Não matei em duelo o Sol, pelas alturas, 
Só para não deixar Salamanca às escuras! 
A respeito de amor, como essência divina,  
Imitei o Don Juan de Tirso de Molina: 
O amor, por mais ardente ou mais puro que fosse, 
Morria, ainda em flor, com a primeira posse! 
Detestava a mulher depois de conquistada: 
A conquista era tudo: o resto, quase nada. 
Queria lá saber de aventuras serenas! 
Para mim, o amor era o duelo, apenas, 
Batia-me ao acaso, enfim, por qualquer cousa, 
Um beijo, uma mulher, uma pedra preciosa, 
Uma flor que se atira, asa de oiro pelo ar, 
A esmola de um sorriso, a graça de um olhar... 
Já não tinha valor para mim nenhum bem, 
Se não fosse preciso ir disputá-lo a alguém, 
Lutar, vencer, rasgar, ardendo de desejo, 
Com a ponta da espada o caminho de um beijo, 
Pomar de assalto o Amor, ao Sol de mil perigos, 
Como um rubro estandarte entre mãos de inimigos! 
Assim vivia eu e os outros estudantes, 
Lendo pouco Platão, lendo muito Cervantes, 
Quando entrou de jornada em Salamanca, um dia, 
Sobre carros de bois, a maior companhia 
De cósmicos que eu vi ainda em toda a Espanha! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso 

Se visse a de Molière... Oh! 

CARDEAL RUFO, sem se perturbar 

                                                                 Não era tamanha, 
Nem tão rica, por certo. Ah! Foi uma loucura 
Na Universidade! _ A primeira figura 
Do bando era uma viva e linda rapariga, 
Um Rubens precioso, uma beleza antiga... 

CARDEAL GONZAGA, tapando a cara 
Oh! 
CARDEAL RUFO 
De um loiro flamengo, a cabecita airosa, 
toda num garavim de seda cor-de-rosa, 
Como um beijo de luz, rescendia inocência... 

CARDEAL GONZAGA, estranhando a palavra 

Oh! 
CARDEAL RUFO 

           Eu peço perdão se me excedo, Eminência, 
Mas aquela mulher era um anjo dos céus! 
Se Deus a pretendesse, eu desafiava Deus! 
Ver um anjo a dizer-me - ó natureza cega! _ 
Versos de Calderon e de Lopo de Vega! 
A representação foi sobre um pátio velho, 
Todo armado à fidalga em damasco vermelho, 
Num tapete real de capas de estudantes! 

Num desfalecimento, escondendo uma lágrima: 

Ai, o que eu sou agora! Ai, o que eu era dantes! 
Quanta luz, quanto fogo a velhice nos rouba!_ 
Representaram não sei bem se a Niña Boba, 
Um poemazinho leve onde a graça? 
Nisto, em meio talvez da representação, 
Ouvi ao pé de mim, dentre um bando folião 
De escolares, dizer em voz rouca e sumida: 
O rapto será logo, hem? Será à saída,  
Na porta dos brasões. Quando a linda “bobinha” 
Entrar na sua rica e leve cadeirinha, 
Caíremos sobe ela, e...”Não ouvi mais nada. 
Inda desembainhei meio palmo da espada, 
Mas contive-me. ”Não. Logo é melhor” _ disse eu. 
Quando acabou a peça era noite. Desceu 
Uma tapeçaria. A cadeirinha, fora, 
a porta dos brasões, para sua senhora, 
Era um ninho infantil de lúcido brocado. 
Perto, o bando escolar aguardava embuçado. 
Ocultei-me também nas sombras da viela, 
Desembainhei a espada, e. Nisto, assomou ela. 
Diz-se: espada e anel, na mão em que estiver. 
Mas sempre é forte a mão quando é linda a mulher! 
Atirei-me de um salto, e em rápidos instantes, 
Sozinho contra vinte e tantos estudantes, 
Contra uma Faculdade inteira, expondo a vida, 
A capa ao vento, a espada em punho, a pluma erguida, 
Talhei, ensangüentei, feri, numa violência... 

Esgrimindo, com o bastão, por sobre a mesa: 
Assim! Assim! 
 
  

Continua ...
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 Remetente : Sílvia Maul