Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Jeanette Beatriz Rozsavolgyi


 

Feito em silêncio
 

O silêncio do fundo dos mares deve ser o mesmo do ventre materno (Raquel jardim, Inventário das cinzas)
 

Crescia a cada dia.

Tomava dimensões espantosas que o obrigavam a se fechar mais e mais dentro de si.

Os outros falavam, mas nada era dito. Aprendeu a fixar-se naqueles movimentos de boca, rostos que se moviam de modo quase grotesco. À medida que as vozes se apagavam, mais eloqüentes ficavam os significados implícitos, as emoções não traduzidas, os pensamentos ocultados pelo jogo social, do qual ele deixara de ser parte. De certa forma, passou a levar vantagem sobre os demais desde que se tornara um silencioso observador de almas. Protegido dos sons do mundo exterior aproveitava seu escudo para analisar cada gesto, cada esgar. E quanto descobrira! Quantas e quantas vezes não vislumbrara num sorriso a ironia escondida; num olhar, a dor; num movimento de ombros, o medo, a angústia.

A família, aqueles que o rodeavam, quanto não se enganara com eles. A atenção da filha agora lhe parecia forçada e calculista. O afeto dos netos deixava entrever o enfado e até um certo constrangimento com a presença da velhice. A impaciência do genro traduzia-se claramente através das mãos, como se com elas tentasse lhe empurrar, ouvido adentro, as palavras não ouvidas.

Nessas horas fechava os olhos e era então que mergulhava num grande lago, calmo e fundo, onde ficava a salvo dos outros, quando não mesmo de si próprio. Lá ficava, horas e horas, tentando recapturar sons que povoaram sua vida: uma voz perdida, dos pais, do irmão, nem ele sabia mais; frases soltas, nomes, o gorjeio dos pássaros na árvore que ficava debaixo da sua janela __onde fora isso?__a água da chuva escorrendo pelo vidro, o vento assobiando baixinho nas noites de outono. No entanto, os sons chegavam-lhe mudos, chapados, sem música, apenas lembrados como palavras não pronunciadas.Se pudesse, nem que fosse por um minuto, ouvi-los novamente...

Forçava-se, o rosto crispado pela concentração, mas tudo o que ouvia era o grande, denso, infinito barulho do silêncio. O mundo acabava-se à sua volta num imenso vazio.

Um dia, porém, ao acordar, ouviu: eram as badaladas do relógio de carrilhão da casa do seu avô, aquele som que o acompanhara desde o nascimento ater o dia em que decidira tomar seu próprio rumo. Eram tão características, reverberavam por toda a casa, como naquele instante, solenes, pausadas, majestosas. Só poderiam ser elas, nunca mais ouvira outras iguais. Parecia que soavam mais fortes, quase música. Queria que os netos ouvissem, deviam estar ouvindo, mas queria que estivessem lá, ao lado dele, para que lhes pudesse contar a história do velho carrilhão, da casa do avô, de como acordara tantos e tantos dias ao som dessas mesmas badaladas.

Chamou, chamou forte, a filha, os netos, ninguém vinha, o som do carrilhão abafava-lhe a voz.

Gritou. Nada. Só o barulho aumentando, aumentando, agora era o medo que fazia com que chamasse, queria que estivessem lá, a seu lado, para falar-lhes do medo, do medo imenso que sentia, pior do que a solidão que lhe fora imposta pelo silêncio, pior do que as intenções que adivinhara em suas atitudes e que tanto o magoaram, mas isso não importava, queria dizer-lhes que os amava, que compreendia e perdoava, porém que não o abandonassem naquele momento, quando estava mais só do que jamais estivera. O carrilhão, indiferente às suas súplicas, tocava descompassadamente, podia sentir as pulsações nas têmporas, crescendo, aumentando, estourando, nada, ninguém.

E os olhos foram se fechando à medida que o som diminuía, a mão escorregou de lado, um último alento vindo das entranhas, misto de rugido e apelo, um último grito de vida, até que se entregou de vez, suspirando longa, longamente.
 

 

 

 

 

05.07.2005