Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Jeanette Beatriz Rozsavolgyi


 

Qual é mesmo o caminho de Swann?

 

A mão quase alcançava o pacote de macarrão (do tipo gravatinha – o preferido do Carlinhos), quando o gesto ficou em suspenso. A frase! Uma imagem que acabava de brotar e que tinha tudo para virar poesia. Como uma borboleta rara que voa, arisca: há um momento único de persegui-la e capturá-la na rede das idéias. Depois disso, nunca mais; pelo menos, não aquela. A frase soava tão forte que ela se alheou de tudo, do pacote de macarrão, da lista de compras, do carrinho quase transbordando, das pessoas que pediam licença, irritadas com aquela mulher parada no meio do corredor, atrapalhando a passagem. A frase insistia, martelava, numa revelação intensa, única, lírica, um clarão repentino vindo das profundezas de sua imaginação.

Levou seguramente um minuto, um longo minuto, de total imobilidade até voltar a si e à lista: macarrão, sabão em pó, leite desnatado para a Clarinha, leite integral para o Carlinhos, leite de soja para o André, não sei como alguém consegue tomar leite de soja, ela pensou, enquanto finalmente pegava o pacote de macarrão e o equilibrava sobre as outras compras.

Foi andando pelos corredores, alcançando, aqui e ali, os itens que não podiam faltar em sua casa. Refrigerante, cerveja, água, e depois de conseguir ajeitar as embalagens no carrinho, partiu em busca da carne, a fila mais longa do que o habitual por causa das ofertas. E eu que queria um lugar só meu para escrever, ela pensou, lembrando de Virginia Woolf . Fazer supermercado a cada quinze dias e todo o resto. Onde e quando escrever, se não há lugar especial, se tenho de estar em tantos ao mesmo tempo? Finalmente, a sua vez. Um quilo de patinho moído, por favor, dois de alcatra em pedaço. Peito de frango – tem já cortado em filé? Sem osso. Isso mesmo, um lugar ao sol, Hemingway, aquele fez o que quis na vida e qual foi o resultado? Um tiro nos miolos. Não, desculpe, não quero miolos, ninguém gosta em casa. Chega de carne, e ela seguiu adiante, comprou sal e se lembrou do Sal da terra, do Caio Porfírio Carneiro, belo romance, e eu querendo escrever meus contos, como se fosse fácil, todo o mundo pensa que é tarefa simples, ela pensou, pão italiano, pão integral, light para a Clarinha, bisnagas de leite para o Carlinhos, pão sírio, oh gente pra gostar de pão, croissant, brioches, Maria Antonieta mandou comerem brioches e o que lhe aconteceu? Cortaram-lhe a cabeça, Mr. Guillotin, biscoitos. E as madeleines de Proust?, ela pensou, para tomar com chá e retraçar o passado em filigranas preciosas; preto, de flores, cítrico, mate, eu gosto do de hortelã. Chá e simpatia, ousado para a época. Prosseguiu, sempre equilibrando as compras no carrinho superlotado, queijo branco, amarelo, suíço, esburacado como o Iraque depois da guerra, crianças órfãs cheirando cola, ela pensou, enquanto eu aqui encho o carrinho, mas não adianta fazer um mea culpa porque por mim não haveria guerra, nem aquela nem outra qualquer. Mesmo porque, ela pensou, se dependesse de mim os líderes mundiais seriam mulheres e mulher não manda filho para morrer na guerra em nome de religião, de ideologia, de poços de petróleo, do que quer que seja, porque para uma mulher, ela pensou, não há bem maior do que um filho, pode ser muçulmana, judia, cristã, xiita, branca, amarela, negra, antes de qualquer coisa quer o bem-estar dos filhos. Papel alumínio, papel higiênico, desodorante de ambientes. Qual? O de pinho, tem um cheiro suave, como suave é a noite que já deve estar lá fora, enquanto eu, na artificialidade dessa luz, procuro o desinfetante cujo aroma seja do agrado de todos em casa, ela pensou, limpa-vidro, lustra móveis, oh lista que não acaba mais, ração para o cachorro, já deve estar acabando, tudo acaba tão depressa e mesmo assim falta tempo para dar banho no cachorro, para escrever, ela pensou, não falo do tempo cronológico mas do tempo interior, dividir o dia em tantas partes quantas sejam necessárias para cuidar de tudo e além disso escrever pelo menos meia hora por dia, não é muito mas melhor que nada, ela pensou, não consigo dar conta de ler, escrever, ouvir música, ver um filme, fazer algum exercício, ela pensou, não dá, meu tempo não deixa, O Tempo e o Vento, Ana Terra, Bibiana, Rodrigo Cambará, li quando era menina ainda, gostaria de reler mas não há mais tempo, agora sim o cronológico, porque há muita coisa a ser lida, não só os novos, mas os clássicos e os trágicos, se fosse reler, nem com três eternidades, como disse Borges. Ou fui eu quem disse?, ela pensou. Biscoito de chocolate, de morango, rosquinha de leite, só os russos por exemplo? Queria reler Tolstoi, Gorki, Tchecov, Gogol, Pushkin, Dostoievski, sem achar que estou cometendo um crime lesa -família, a merecer castigo pelo tempo surrupiado aos meus. E Shakespeare, de ponta a ponta. Alguém me perguntou o que eu levaria para ler numa ilha deserta se pudesse escolher só três livros. Difícil escolha. Conrad? Kafka? Faulkner? Pano de chão, pano para enxugar louça. Flores. Nossa, como estão caras, Mrs. Dalloway!, e não vou dar nenhuma festa hoje à noite, ela pensou, pobre e maravilhosa Virginia, acabou se afogando no lago. Pedras. No bolso; no caminho. Xampu, cabelos lisos, crespos, ah, esse aqui deve ser bom, preciso ter um de reserva senão a Clarinha pega, quando dou pela coisa, estou debaixo do chuveiro, a cabeça molhada e nem um pingo de xampu , isso me deixa louca, ela pensou. Horla, Maupassant escreveu o conto genial, a apavorante progressão da loucura, ele conseguiu descrever o mal que acabou por dominá-lo. Escovas de dente, cada um gosta de uma cor, verde Carlinhos, azul André, rosa Clarinha, não tem, então branca. A Cor Púrpura, tão triste, pra mim, qualquer uma, ela pensou, essa aqui serve, amarela, diferente das outras. Nora, será que sou Nora? Não, não é meu caso, se bem que em toda mulher há um pouco de Nora. E de Clarissa Dalloway. E da Bovary. E também da Chatterley e da Ana Karenina, pelo menos em imaginação. Algumas têm a ver com a Merteuil e com Medeia. Sem falar na Velha Senhora, uma Cinderela trágica e vingativa, por isso mesmo tão pungentemente humana. Quantas não existirão? A lista quase no final: fósforos, lâmpadas de 100 e de 60 Watts. Ai, meu Deus, ia me esquecendo dos ovos de páscoa: professores, empregada, faxineira; qual o nome do conto do Cortázar no qual o homem vomita coelhinhos aos montes?

De repente, ela como que calou qualquer outro pensamento para se dizer com uma certa angústia – não, com uma imensa angústia, que precisava encontrar um lugar para escrever. Nem que seja no banheiro, ela pensou, mas aí o Toby fica raspando a porta até que eu abra, cachorro me emociona tanto, a Baleia, coitadinha, aquele livro Desonra, do Coetzee, quando matam os cachorros é terrível, terrível, mais do que o estupro. Cidade dos cachorros, o Llosa escreve quatro horas por dia todos os dias, esteja onde estiver, e eu aqui, um quilo de batatas, legumes para a salada, tomate para molho. Acabou! Agora, ela pensou, só falta enfrentar a fila do caixa, empacotar tudo, levar para o carro, arrumar no porta-malas. Dulcinéa, Desdêmona, Chimène, Julieta, Isolda, alguma de vocês foi dona-de-casa?, ela pensou, enquanto, já dentro do carro, lembrava que ao chegar em casa teria de descarregar, pôr no elevador aquele monte de coisas, desempacotar, lavar, congelar, guardar, arrumar.

E a frase? Como era mesmo a frase? Alguma coisa sobre caminho, qual o caminho? Quando deu por si, estava no caminho errado, então corrigiu o rumo e voltou a pensar na frase. Não se lembrava com precisão, mas a idéia mantinha-se intacta. As palavras, talvez um tanto diferentes, brilhavam iluminadas, repetiam-se no fundo da memória, propagavam-se em círculos, alargavam-se. Era o início de um conto, de um poema, de um romance. Ela podia sentir na pele; arrepiava-se.

Ao chegar em casa, fez tudo o mais rápido possível para, enquanto o marido via televisão na sala, poder aproveitar a solidão abençoada do quarto e deixar fluir aquela idéia exigente, que não lhe daria paz enquanto não fosse transferida para o papel.

Já estava com as compras quase todas no lugar, quando:

– Mãe?

O Carlinhos!

– Vem me ajudar a fazer a lição, que eu não estou conseguindo!

A princípio ficou nervosa, a irritação doendo nas têmporas. Uma borboleta presa numa redoma de vidro.

– Mãe?! – de novo o Carlinhos, exigente.

Ainda tentou pensar na frase. Não encontrou mais nada. O que parecera ser um momento de epifania, transformara-se apenas num fogo pálido, esvaziado de qualquer emoção.

O meu não é mesmo o caminho de Swann, ela pensou, nunca vou conseguir encontrá-lo.

Em seguida, respirou fundo e soltou o ar aos poucos, num longo suspiro conformado.

– Já vou, Carlinhos.

 

 

 

 

 

05.07.2005