Soares Feitosa
A
POESIA DOS RIOS
Porque
é verdade. Mas não penses que te censuro. Se queres
transformarte-te num homem de letras, e quem sabe um dia
escrever Histórias, deves também mentir, e inventar histórias,
senão tua História ficará monótona. Mas terás que fazê-lo
com moderação. O mundo condena os mentirosos que só sabem
mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas
que mentem apenas sobre coisas grandiosas. [Umberto Eco, in 4ª
capa de Baudolino, tradução de Marco Lucchesi]
Fui
dar uma espiada na biografia de Fernando Pessoa. Aos oito anos
viajou para a África do Sul donde só retornou, em
definitivo, aos 17. Ele fala de rios, do Tejo certamente.
Contudo, não me atreveria a dizer que Pessoa tenha sido um
poeta fluvial, no sentido de brincar-no-rio. Seus poemas
silenciam quanto ao lacustre e ao fluvial, exceto quando nos
conta do famosíssimo rio de sua aldeia, e, na Ode Marítima
retrata alguns aflitos sentados nas pedras do cais — um cais
sobre o Tejo — e suas angústias. Ainda na Ode Marítima
este registro:
Era
na velha casa sossegada ao pé do rio
(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais
abaixo
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava
às mesmas janelas.
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar
alto... ) |
Então,
telefonei para o poeta Carvalho. Ele me confirmou que até aos
14 anos fora menino do rio (Jaguaribe), em Russas, Ceará.
Contou sobre as vazantes, na companhia do pai. O plantio de
batata-doce, de jerimuns e
feijões no leito do rio, coisa que
ainda hoje se faz à medida que o rio vai-se fastando d'águas,
pela seca. Depois, o rio retorna... quando chove,
naturalmente. E, onde antes os balseiros, os plantios e a
areia de uma calma doce, úmida — súbito um braço de mar e
sua fúria. Os afogados. E as ingazeiras tombantes.
Porque,
afinal, a pergunta seria: de que tanto os poetas
"mentem" de suas infâncias? (Ninguém melhor que
Fernando Pessoa para falar sobre a arte de mentir — ou seria
a arte de não-fingir?).
Falariam
os citadinos, poetas, de rios? Cabral, urbano, fala, presumo,
de um Capibaribe não propriamente como um rio de jogar canga-pé,
de correr nas cr’oas (ou coroas) com seus moleques, suas
cheias e vazantes, mas como aquele canal imundo em que a
"civilização" transformou, sofrido, o Capibaribe,
o Cão sem plumas.
Aqui
na terrinha, Ceará, outros poetas de beira-rio, temo-los vários.
Acaraú, de José Alcides Pinto; Salgado, do Dimas Macedo;
Poti, de Juarez Leitão; Jaguaribe, que também é dos irmãos
Maia, Luciano e Virgílio. Dessa dupla, Virgílio é mais sertão
— com seus bois ferrados sob marcas armoriais, a ponto de
escolher casa para morar, ele, numa feliz coincidência, numa
rua com o nome de Sertão dos Inhamuns. Luciano é mais
"aquático", com o seu Jaguaribe, cataventos
e várzeas. Até mesmo na arte de traduzir, Luciano se prefere
em águas, vide poema da Concha. Adriano Espíndola,
praiano e praciano nos fala de um beira-sol que nada deve ter
a ver com rios de encher e correr. Este escriba, de lá do rio
Macacos ainda em sua nascente — Serra das Matas —, apenas
um projeto de riachote, pouco mais do que um filete mirro...
mas que não tem outro mais bonito no lugar! — e cito o Boiadeiro,
de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, no vozeirão de
Gonzaga.
Noutros
poetas tão bons quanto, senão mais — e aqui não cuido de
classificá-los —, Artur Eduardo Benevides e Pedro Henrique
Saraiva Leão, a presença do rio é mínima. Artur, da serra
da Aratanha, mas a infância e adolescência em Fortaleza, sua
canção é a pólis, desde as quermesses do centro de
Fortaleza, Praça da Lagoinha, com o Colégio São Luiz por
perto, onde estudou, até o Mucuripe, nome de um dos seus
livros mais bonitos. Artur fala de um flamboyant
que em silêncio pomos/ no espaço em que já não existe/
nenhum flamboyant!, belíssimo, mas de rio, não. O
mergulho existencial de Saraiva Leão é nitidamente urbano,
intra, a partir de Fortaleza, menino, até outras plagas,
"estranjas", onde estudou e cursou.
Esta
classificação — poeta urbano ou sertanejo, este com seu
desdobramento em poeta das secas ou poeta das águas — tem
efeitos de mera curiosidade, posto que a poesia não está em
canto algum e está em toda parte. Tudo isto me veio à tona a
propósito do último livro de Francisco Carvalho, O silêncio
é uma figura geométrica, edições UFC, Casa José
de Alencar, 2002. Ali eu vi uma paisagem tipicamente
"rio", ou melhor, uma paisagem "águas".
De fato, em Russas, no baixo Jaguaribe, o rio já é perene,
diminuindo de vazão na seca, é certo, mas sem apartar
completamente. Lá, de dentro das águas, nos vem Francisco
Carvalho com seu rio trespassado:
"O
mistério
dos
rios
é
que eles passam
por
dentro
de
nós
e
só depois
deságuam
no mar".
Lembro
de José Alcides Pinto, também ribeirinho, mentindo
desbragadamente sobre rios quando nos conta de um padre
atravessando a cheia do Acaraú, a outra margem a perder de
vista, pendurado no rabo de uma vaca. Claro que é uma cena
belíssima. Se verdadeira ou não, isto não me diz a mínima.
Sequer o padre existe ou existiu, presumo. Existe, sim, a
poesia imorredoura de Alcides Pinto. E Dimas Macedo bradando
para o mundo que o Salgado é o rio mais bonito de... de
Lavras da Mangabeira? Que nada! Do mundo! — ele diz.
Sim,
os poetas mentem, mas por baixo da mentira há uma verdade
terrível: o rio (ou a infância) lhes varando corpo e alma
todo o tempo. Tenho que se alguém lhes pedir para desenhar um
desenho infantil, serão irrecusáveis a várzea, o remanso, a
cheia e as ingazeiras boiantes. E as areias úmidas, de
escondida sombra, para o ócio justo e libidinagem.
Desconfio
que o poeta-cidade não chegue a ser tão fingidor a ponto de
inventar uma história de um rio trespassado e trespassante.
Parece-me que o rio que passa por dentro de Cabral seria
apenas o sofrimento do Capibaribe — um poema nitidamente
social — coberto de entulho, um rio sofrido: pneus velhos,
cachorros mortos, a fedentina e a imemorial pobreza dos pobres
do Recife, onde morei 14 anos e até sinto saudades, apesar
de.
Saudades
mesmo, sem jamais ter posto os pés nas areias do Jaguaribe,
é o que me traz a poesia de Francisco Carvalho: Todos
somos contemporâneos dos rios... Página do lado e nos
diz: Um chuvisco inesperado desenhava/ alegorias no ar;
página seguinte nos lembra o poeta: Apaga a memória/
deixada pelos rios nas retinas/ dos afogados. Seqüenciando
mais uma página, esta imagem: ... virão, enquanto os
homens pastoreiam/ deuses de espuma e orquídeas amarelas.
Abro
novamente a esmo o livro de Francisco Carvalho: Liberdade
é apenas um flecha de espumas/ trespassada na memória dos
mortos. E mais, na mesma página: Cabeça decepada pela
fúria dos elementos/ ó cabeça de fauno sem memória/ onde
estão teus mais puros pensamentos? De fato, as águas
estão o tempo todo presentes, seja nas espumas, seja na fúria
dos elementos. Até mesmo uma pedra, quando o poeta se esbarra
numa pedra, ela é cheia de limo e os sapos que por ali
trafegam são úmidos como convém a todo batráquio que se
preze. Uma imagem comovente, os olhos dos sapos nas noites
luarentas de Carvalho.
Outra
presença sobremodo ativa na poesia de Francisco Carvalho é a
viagem — cavalos, centauros, canoas, estrelas
mui longínquas — o vôo de longo curso. Uma poética
viageira, mas sobretudo uma linguagem úmida, lúbrica, porém
a anos-luz da vulgaridade. Poesia de rara intensidade lírica,
de puro enlevo — fluvial e eqüestre — é o que nos
presenteia esse notável poeta em sua permanência ribeirinha.
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Soares Feitosa, Francisco José, Ceará, 1944- , edita na
Internet o Jornal de Poesia: www.jornaldepoesia.jor.br
Publicou
Psi, a penúltima, esgotado. Escreveu sobre rios: Panos
passados e Rio Macacos, ambos no Jornal de Poesia.
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