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Soares Feitosa, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Soares Feitosa


 

A POESIA DOS RIOS

                                                            

Porque é verdade. Mas não penses que te censuro. Se queres transformarte-te num homem de letras, e quem sabe um dia escrever Histórias, deves também mentir, e inventar histórias, senão tua História ficará monótona. Mas terás que fazê-lo com moderação. O mundo condena os mentirosos que só sabem mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas que mentem apenas sobre coisas grandiosas. [Umberto Eco, in 4ª capa de Baudolino, tradução de Marco Lucchesi]

 

Fui dar uma espiada na biografia de Fernando Pessoa. Aos oito anos viajou para a África do Sul donde só retornou, em definitivo, aos 17. Ele fala de rios, do Tejo certamente. Contudo, não me atreveria a dizer que Pessoa tenha sido um poeta fluvial, no sentido de brincar-no-rio. Seus poemas silenciam quanto ao lacustre e ao fluvial, exceto quando nos conta do famosíssimo rio de sua aldeia, e, na Ode Marítima retrata alguns aflitos sentados nas pedras do cais — um cais sobre o Tejo — e suas angústias. Ainda na Ode Marítima este registro:

Era na velha casa sossegada ao pé do rio 
(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também,  
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,  
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo 
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas. 
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto... )

 

Então, telefonei para o poeta Carvalho. Ele me confirmou que até aos 14 anos fora menino do rio (Jaguaribe), em Russas, Ceará. Contou sobre as vazantes, na companhia do pai. O plantio de batata-doce, de jerimuns eFrancisco Carvalho feijões no leito do rio, coisa que ainda hoje se faz à medida que o rio vai-se fastando d'águas, pela seca. Depois, o rio retorna... quando chove, naturalmente. E, onde antes os balseiros, os plantios e a areia de uma calma doce, úmida — súbito um braço de mar e sua fúria. Os afogados. E as ingazeiras tombantes.

Porque, afinal, a pergunta seria: de que tanto os poetas "mentem" de suas infâncias? (Ninguém melhor que Fernando Pessoa para falar sobre a arte de mentir — ou seria a arte de não-fingir?).

Falariam os citadinos, poetas, de rios? Cabral, urbano, fala, presumo, de um Capibaribe não propriamente como um rio de jogar canga-pé, de correr nas cr’oas (ou coroas) com seus moleques, suas cheias e vazantes, mas como aquele canal imundo em que a "civilização" transformou, sofrido, o Capibaribe, o Cão sem plumas. 

Aqui na terrinha, Ceará, outros poetas de beira-rio, temo-los vários. Acaraú, de José Alcides Pinto; Salgado, do Dimas Macedo; Poti, de Juarez Leitão; Jaguaribe, que também é dos irmãos Maia, Luciano e Virgílio. Dessa dupla, Virgílio é mais sertão — com seus bois ferrados sob marcas armoriais, a ponto de escolher casa para morar, ele, numa feliz coincidência, numa rua com o nome de Sertão dos Inhamuns. Luciano é mais "aquático", com o seu Jaguaribe, cataventos e várzeas. Até mesmo na arte de traduzir, Luciano se prefere em águas, vide poema da Concha. Adriano Espíndola, praiano e praciano nos fala de um beira-sol que nada deve ter a ver com rios de encher e correr. Este escriba, de lá do rio Macacos ainda em sua nascente — Serra das Matas —, apenas um projeto de riachote, pouco mais do que um filete mirro... mas que não tem outro mais bonito no lugar! — e cito o Boiadeiro, de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, no vozeirão de Gonzaga.

Noutros poetas tão bons quanto, senão mais — e aqui não cuido de classificá-los —, Artur Eduardo Benevides e Pedro Henrique Saraiva Leão, a presença do rio é mínima. Artur, da serra da Aratanha, mas a infância e adolescência em Fortaleza, sua canção é a pólis, desde as quermesses do centro de Fortaleza, Praça da Lagoinha, com o Colégio São Luiz por perto, onde estudou, até o Mucuripe, nome de um dos seus livros mais bonitos. Artur fala de um flamboyant que em silêncio pomos/ no espaço em que já não existe/ nenhum flamboyant!, belíssimo, mas de rio, não. O mergulho existencial de Saraiva Leão é nitidamente urbano, intra, a partir de Fortaleza, menino, até outras plagas, "estranjas", onde estudou e cursou.

Esta classificação — poeta urbano ou sertanejo, este com seu desdobramento em poeta das secas ou poeta das águas — tem efeitos de mera curiosidade, posto que a poesia não está em canto algum e está em toda parte. Tudo isto me veio à tona a propósito do último livro de Francisco Carvalho, O silêncio é uma figura geométrica, edições UFC, Casa José de Alencar, 2002. Ali eu vi uma paisagem tipicamente "rio", ou melhor, uma paisagem "águas". De fato, em Russas, no baixo Jaguaribe, o rio já é perene, diminuindo de vazão na seca, é certo, mas sem apartar completamente. Lá, de dentro das águas, nos vem Francisco Carvalho com seu rio trespassado:

 

"O mistério

dos rios

é que eles passam

por dentro

de nós

e só depois

deságuam no mar".


 

Lembro de José Alcides Pinto, também ribeirinho, mentindo desbragadamente sobre rios quando nos conta de um padre atravessando a cheia do Acaraú, a outra margem a perder de vista, pendurado no rabo de uma vaca. Claro que é uma cena belíssima. Se verdadeira ou não, isto não me diz a mínima. Sequer o padre existe ou existiu, presumo. Existe, sim, a poesia imorredoura de Alcides Pinto. E Dimas Macedo bradando para o mundo que o Salgado é o rio mais bonito de... de Lavras da Mangabeira? Que nada! Do mundo! — ele diz.

Sim, os poetas mentem, mas por baixo da mentira há uma verdade terrível: o rio (ou a infância) lhes varando corpo e alma todo o tempo. Tenho que se alguém lhes pedir para desenhar um desenho infantil, serão irrecusáveis a várzea, o remanso, a cheia e as ingazeiras boiantes. E as areias úmidas, de escondida sombra, para o ócio justo e libidinagem.

Desconfio que o poeta-cidade não chegue a ser tão fingidor a ponto de inventar uma história de um rio trespassado e trespassante. Parece-me que o rio que passa por dentro de Cabral seria apenas o sofrimento do Capibaribe — um poema nitidamente social — coberto de entulho, um rio sofrido: pneus velhos, cachorros mortos, a fedentina e a imemorial pobreza dos pobres do Recife, onde morei 14 anos e até sinto saudades, apesar de. 

Saudades mesmo, sem jamais ter posto os pés nas areias do Jaguaribe, é o que me traz a poesia de Francisco Carvalho: Todos somos contemporâneos dos rios... Página do lado e nos diz: Um chuvisco inesperado desenhava/ alegorias no ar; página seguinte nos lembra o poeta: Apaga a memória/ deixada pelos rios nas retinas/ dos afogados. Seqüenciando mais uma página, esta imagem: ... virão, enquanto os homens pastoreiam/ deuses de espuma e orquídeas amarelas.

Abro novamente a esmo o livro de Francisco Carvalho: Liberdade é apenas um flecha de espumas/ trespassada na memória dos mortos. E mais, na mesma página: Cabeça decepada pela fúria dos elementos/ ó cabeça de fauno sem memória/ onde estão teus mais puros pensamentos? De fato, as águas estão o tempo todo presentes, seja nas espumas, seja na fúria dos elementos. Até mesmo uma pedra, quando o poeta se esbarra numa pedra, ela é cheia de limo e os sapos que por ali trafegam são úmidos como convém a todo batráquio que se preze. Uma imagem comovente, os olhos dos sapos nas noites luarentas de Carvalho.

Outra presença sobremodo ativa na poesia de Francisco Carvalho é a viagem — cavalos, centauros, canoas, estrelas mui longínquas — o vôo de longo curso. Uma poética viageira, mas sobretudo uma linguagem úmida, lúbrica, porém a anos-luz da vulgaridade. Poesia de rara intensidade lírica, de puro enlevo — fluvial e eqüestre — é o que nos presenteia esse notável poeta em sua permanência ribeirinha.

 

______________________

* Soares Feitosa, Francisco José, Ceará, 1944- , edita na Internet o Jornal de Poesia: www.jornaldepoesia.jor.br

Publicou Psi, a penúltima, esgotado. Escreveu sobre rios: Panos passados e Rio Macacos, ambos no Jornal de Poesia.

 

 

Página inicial de Francisco Carvalho

Página inicial de Soares Feitosa

 

 

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