José Hélder de Souza
Entrevista a João Carlos Taveira
Um salto no abismo de José Hélder de
Souza
in Literatura nº
14
O escritor José Hélder de Souza (Massapê-CE,
1931), com 38 anos dedicados integralmente ao jornalismo e à
formação literária de Brasília, nesta entrevista, demonstra
constante participação do movimento histórico, sem nunca perder a
visão interpretativa da administração de Brasília e do País. Homem
de profunda esperança, até mesmo a globalização, que é um fantasma
para muitos, para ele “nunca será infinita, não irá além da
capacidade de renovação da sociedade humana, mesmo a mais retrógrada
e atrasada”.
Ser escritor em Brasília, em sua análise,
“provoca invejas, os de outras cidades acreditando termos
intimidades com os poderes centrais e favorecimentos, o que nem
sempre é verdade”. Mais adiante, afirma: “Há bons e péssimos
escritores; há bons e ruins administradores, como há também
corruptos e prevaricadores, todos se amam, como diria Menoti del
Picchia em seu Juca Mulato, as estrelas no céu e os insetos na
lama...”
Dono de uma vastíssima bibliografia, cabe
destacar que José Hélder de Souza participa das antologias A
Novíssima Poesia Brasileira (1962), de Walmir Ayala; Poetas do Ceará
(1983), de Raimundo Araújo; e de A Poesia Cearense no Século XX
(1996), de Assis Brasil
JCT –
A sua chegada a Brasília se deu na década de 1960. Qual o sonho que
motivou sua transferência do Ceará para o Planalto Central?
JHS – Não houve propriamente um sonho.
Sinceramente, o infortúnio foi o motivo, não digo o maior, mas um
dos determinantes para o salto no abismo. Sou filho de pequenos
burgueses com avô latifundiário. Porém isto não vale, não determina
a vida prática de ninguém. Por boêmia, desfastio, tédio, ódio que,
segundo o poeta Antônio Nobre são Moléstias d’Alma para as quais não
há remédio, abandonei os estudos no segundo ano do curso clássico do
Liceu do Ceará. Entrei para o jornalismo, meio clandestinamente – já
havia, na época, faculdades de jornalismo – e sentei-me, por conta
do ódio, numa banca de redator do jornal diário “O Democrata”, órgão
do Partido Comunista, sem, no entanto, abandonar o conforto do lar
paterno. Foi em 1953, ano da morte de Joseph Stalin e o começo da
derrocada do vago, impreciso ódio às instituições burguesas.
Ainda levemente ligado ao PC – nunca o abandonei propriamente, nem
jamais deixei de acreditar no socialismo (sem Stalin!) – fui para o
Rio de Janeiro. Trabalhei no jornal de frente democrática (mistura
de comunistas, socialistas e outros democratas de vários matizes)
“Emancipação”, dirigido pelos oficiais da reserva marechal
Felicíssimo Cardoso e seu irmão general Leonidas Cardoso (pai de
Fernando Henrique Cardoso), deputado federal por São Paulo. Na
verdade, quem o editava era Carlos Alberto Costa Pinto, baiano, e o
cearense Maurício Pinto, ambos do velho PC. O jornal, de
periodicidade incerta, defendia o “petróleo é nosso” e outras causas
nacionalistas, vivia de doações de ricos profissionais liberais
simpatizantes do PC ou da causa do petróleo, e quase sem nenhum
anúncio. Remunerava mal e de modo também incerto. Vivi de favor no
apartamento de um jovem médico pernambucano (não guardei seu nome,
nem o de sua mulher, ambos filiados ao PC). Fui assim vivendo, até
me abrigar, clandestinamente, na Casa do Estudante do Brasil, com
amigos do Ceará. Ganhava mais uns trocados numa agência de notícias,
passando matérias para São Paulo por telefone, depois das sete horas
da noite. Um sufoco, os aparelhos funcionavam mal, tinha de repetir
notícias, o que me levava a altas horas da noite. Depois, a farra em
botecos da Cinelândia. Dormia mal e comia menos. Veio assim uma
recidiva da tuberculose contraída (também por desfastio e boêmia)
aos 18 anos. Com 22 anos de idade, desiludido (a cachaça, às vezes,
abafava a desilusão), tinha que regressar ao chamado lar paterno.
Faltou então o necessário dinheiro para a passagem de volta.
O pessoal do “Emancipação” conseguiu embarcar-me num antigo
cargueiro, ocupando o que fora o camarote do telegrafista. O
comandante, um velho lobo do mar aposentado e que fazia um “bico”
navegando no arruinado navio ao qual chamava de “banheira”, sempre
reclamava da insegurança, pela falta do telégrafo, na iminência de
um naufrágio. Mas passamos pelo perigoso mar dos Abrolhos, atracamos
no Recife e, ao fim de uma derrota de uns quinze dias, desembarquei,
são e salvo, embora com os bacilos roendo os peitos, no porto de
Mucuripe, na Fortaleza. Voltei ao lar paterno – único filho homem
aparado pela compreensão e amor do pai – e ao “Democrata”, depois de
meses de repouso num sanatório. Em 1956, o ano do turbilhão chamado
Nikita Kruchev a fazer as denúncias dos crimes de Stalin e Béria, no
XX Congresso do Partido Comunista, o jornal – também financiado por
doações e um pouco de venda avulsa – foi definhando, até ser fechado
por ordem do PC. Novo desemprego e desorientação, aos 24 anos.
Recolhi-me a penates, por uns
meses, nas casas dos avós, na Meruoca, Massapê e Sobral, sertão
norte do Ceará. Voltando para Fortaleza, felizmente consegui emprego
nas redações de “O Estado” e depois de “O Povo”. Já tinha algum
nome, publicava crônicas, contos e poemas nos suplementos dos
jornais. Sempre enfastiado e nem sempre bem remunerado, metido à
noite nos botecos e prostíbulos das praias, acompanhado de
intelectuais amigos da boêmia, veio-me de novo a maldita tísica.
Internei-me no sanatório dos comerciários por seis meses. Curado
pela estreptomicina, decidi partir e, com os trocados amealhados
pela espécie de pensão do IAPC e uns tantos vindos da generosidade
do pai, embarquei num avião da NAB – Navegação Aérea Brasileira,
meio sem destino, em julho de 1960. Primeiro, uma parada no Rio,
ainda na Casa do Estudante, abrigado por meu amigo e eterno
estudante de engenharia – formou-se depois de 8 anos matriculado na
faculdade –, José Sabóia Ribeiro.
Resumindo a minha epopéia: em agosto, ainda com destino incerto,
cheguei a Brasília. No Rio, o deputado federal José Colombo de
Souza, meu parente, apontara-me o horizonte do Planalto Central, no
qual me ajudaria; abrigou-me, provisoriamente, no seu apartamento da
208 Sul; ele, a mulher e os filhos menores, ainda viviam em Grajaú,
aqui estavam só os maiores, José e Maurício. Nestes dias conheci o
jornalista Jairo Valadares, colega de Colombo Filho no Correio
Braziliense e TV-Brasília. Jairo, por sua influência na NOVACAP,
conseguiu-me um quarto no Hotel Dó-Ré-Mi, uma construção de madeira
na beira do lago, no qual a NOVACAP abrigava, com todo conforto,
roupa e cama e tudo mais, certos forasteiros e algumas
personalidades. Ainda por intermédio do Jairo e do Colombinho,
aproximei-me do Correio Braziliense, no qual, com a generosidade e
compreensão do conterrâneo Ari Cunha (com quem, aliás, trabalhara no
Ceará) e de Edilson Cid Varela, empreguei-me como redator, depois
secretário. Aí terminaram – sem sonho algum – minhas vicissitudes,
minhas agruras e cá estou definitivamente fincado. É claro que aderi
à cidade, ao ideal mudancista, pois lera muito, em revistas e
jornais, nos meses de sanatório, sobre a Nova Capital. Foi fácil
assim, aceitar e adaptar-me à vida de Brasília.
JCT – Cassiano Nunes afirmou numa
entrevista que Brasília, do ponto de vista literário, é uma espécie
de túmulo para o escritor que decide nela radicar-se. Mesmo após
ter-se aposentado, a sua decisão foi de permanecer em Brasília. Qual
o segredo? O futuro está aqui?
JHS – Não há segredo, ou se quiserem, o
segredo é a família. Saí do Ceará já praticamente noivo com Maria
Neide. Qualquer oportunidade que havia, dava lá um pulo para
namorá-la. Em 1961, um ano depois de vida em Brasília, fomos morar
num apartamento de 2 quartos, os primeiros da Asa Norte, conseguido
junto à Prefeitura e ao então Prefeito Paulo de Tarso, com a ajuda
do Ari Cunha, assessor especial do gabinete do Prefeito. Nele
tivemos os primeiros filhos, Zuleika e Adriana. Não largamos de todo
a Fortaleza, geralmente as férias eram lá. A família foi crescendo,
na mudança para a 205 Sul nos vieram Tereza e Pedro. Não havia
motivo para o retorno ao Ceará, estávamos e estamos satisfeitos com
Brasília, temos aqui vida estável. De fato, o futuro está aqui: o
neto Vítor e outros que, espero, hão de vir, nos enraizando cada vez
mais neste chão do cerrado. Temos, além do mais, hoje, poucos
parentes no Ceará, os amigos cada vez mais rareando, a idade, as
doenças da velhice, os levando, uma tristeza... Assim mesmo, não
deixamos de ir lá.
Quanto ao “túmulo” referido pelo meu amigo Cassiano, é discutível.
Há escritores, jovens e velhos, moradores de Brasília, figurando, de
quando em vez, em concurso ou publicações de outras terras. O
próprio Cassiano Nunes é citado em dois números da “LB - revista da
literatura brasileira”, editada em São Paulo por Aloysio Mendonça
Sampaio, por seus trabalhos “Cora e Lobato”, no número 7 da LB e, no
número 9, “Vinte vezes Cassiano”. Este mesmo número da LB traz uma
referência ao “Bestiário Lírico”, de Antônio Carlos Osório,
presidente da Academia Brasiliense de Letras, e trabalhos de Ronaldo
Cagiano e Emanuel Medeiros Vieira, hoje escritores bem brasilienses.
Por sua vez, a revista literária “Blau”, do Rio Grande do Sul,
número 18, traz referências aos livros “Os Avessos do Espelho”, de
José Santiago Naud (editora Thesaurus), “Caminho de Estrelas”, livro
póstumo de Maria Braga Horta, organizado por seu filho, o poeta
Anderson Braga Horta e “Pura Lira”, do diplomata Hélio Póvoas, aqui
publicado. Já o jornal “O Escritor”, da União Brasileira de
Escritores, dirigido por Fábio Lucas e editado em São Paulo (número
82, outubro de 97), traz uma notícia sobre o livro de contos de
Nilto Maciel – “Babel”, e outra ainda sobre “Caminho de Estrelas”,
de Maria Braga Horta. Entendo Cassiano: é que ser escritor em
Brasília provoca invejas, os de outras cidades acreditando termos
intimidades com os poderes centrais e favorecimentos, o que nem
sempre é verdade.
JCT – Em Brasília há produção literária
que justifique maior atividade editorial?
JHS – É difícil a resposta. Destaco,
porém, que há anos, não só Brasília como o Distrito Federal e até
municípios vizinhos, de Goiás, contam com bom e moderno parque
gráfico para qualquer tipo de feitura de revistas ou livros. Existe
também já um bom número de editoras: a Thesaurus, a mais antiga
delas, e a André-Quicé, do Alan Viggiano e seu filho Mário, estão aí
dando seu recado. Por sua vez, o Vítor Alegria, da Thesaurus, diz
ter cadastrado cerca de 600 escritores no Distrito Federal,
naturalmente publicados por ele e, certamente, na maioria, opúsculos
sobre assuntos diversos, poucos de vero caráter literário, alguns de
versos frouxos e melosos rememorando a morte da mãe ou pai do
presumível escritor. Verdadeiramente, da relação do Vítor, nos
restam talvez dez por cento de autênticos escritores, uns cinqüenta
ou sessenta. O que talvez haja é pouca produção de obras de real
valor literário a ser notada e destacada pela crítica e aceita pelo
público. É que nem tudo que reluz é ouro. É uma vasta questão a ser
examinada e discutida. Encerrando, porém, este meu juízo, lembro que
quase mensalmente (ou quinzenalmente?) há lançamentos de livros aqui
escritos e publicados; o restaurante Carpe Diem é o maior centro de
tais lançamentos.
JCT – Seu último livro de poesia,
Relvas do Planalto, saiu em 1990; Rios dos Ventos, de contos, em
1992. Considerando que já foi editada uma dezena de livros de sua
autoria, por que a demora em publicar uma nova obra nestes últimos
anos?
JHS – De certo modo, a resposta está na
questão anterior: produção rarefeita e distância de editores ou de
editoras que acreditem nos meus escritos. Contudo, não estive
inteiramente parado. De 90 para cá, publiquei alguns ensaios que
prezo, publicados na Revista da Academia Brasiliense de Letras, e
que poderiam e gostaria de enfeixar em livro, como: Frases Eternas
de Machado de Assis (N.º X), Argila: um soneto de Raul de Leoni (N.º
13), Versos de Petrarca na Cadeia de Mestre Elias (N.º 14) e Notícia
que se dá da morte do poeta Antônio Girão (N.º XI), além de poemas e
crônicas e várias apreciações (não críticas, que não o sou) sobre
alguns livros como o de José Santiago Naud , Os Memoráveis signos de
Santiago Naud. Alguns outros em outras publicações, como “A cultura
das Cidades”, e que sonho em ampliar e publicar em livro, pois neles
procuro discutir a transformação da cultura ocidental por intermédio
do som e da imagem, especialmente da televisão. Informo ainda ter
nas mãos de José Salles Neto, da Associação dos Bibliófilos do
Brasil, o livro Pequenas Histórias Matutas reunindo contos desta
última fase de vida e que deverá sair muito breve. Planejo também
reunir poesias num livro a ser intitulado Viagem – o faço devagar,
pois poesia é coisa muito difícil... e muito mais séria do que se
imagina. Estive presente, por outro lado, em antologias, a principal
delas A Poesia Cearense do Século XX, organizada pelo crítico Assis
Brasil, fazendo-me profundamente desvanecido ao ver-me ao lado de
José Albano, Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros, Artur Eduardo
Benevides, Gerardo Melo Mourão e muitos e muitos outros.
JCT – Além de parque editorial, o que
está faltando para o escritor de Brasília?
JHS – Não cairei no lugar comum de
dizer que falta apoio, incentivo e coisas que tais. Não, pelo menos
nos anúncios oficiais eles existem, e os vemos também em entregas de
tais benefícios, noticiados pela imprensa. Como já dissemos acima,
pode ser falta de empenho e trabalho, talento dos escritores e,
ainda mais, divulgação pública das atividades literárias. A arte
literária é difícil, penosa, solitária, precisa nascer forte e com
alguma perfeição para se impor, não basta a presunção de genialidade
e de querer reconhecimento gratuito. Trabalho, talento e
conhecimento da arte literária ou de outras artes, a gramatical e
lingüística inclusive, são fundamentais, a não ser que se pretenda
conseguir tais incentivos e apoios por mera gestão ou ingerência
política, o que muitas vezes acontece, por influência de poderosos a
amparar seus medíocres protegidos. Não estou generalizando. Há bons
e péssimos escritores; há bons e ruins administradores, como os há
também corruptos e prevaricadores, todos se amam, como diria Menoti
del Picchia em seu “Juca Mulato”, as estrelas no céu e os insetos na
lama...
JCT – O panorama da literatura atual
não é muito animador. A arte –sobretudo a poética– não tem
apresentado nenhum compromisso com o novo. Tudo parece velho, para
não dizer repetitivo. A que você atribui esta falta de explosão?
JHS – Ressaltemos, de início, que o
marasmo criativo ou renovador é somente na literatura pura, mormente
na poesia. O mundo cultural e artístico, generalizando,
transformou-se inteiramente nestes últimos cinqüenta anos, com o
cinema e a televisão, o mundo e a nova cultura da imagem e do som,
coisa que a maioria dos intelectuais e escritores ainda não percebeu
integralmente, ou simplesmente, por presunção, recusa-se a aceitar -
rádio, cinema e televisão, acham, são coisas vulgares, popularescas,
inferiores às suas “divinas” manifestações e concepções literárias.
Até a vulgarização eletrônica da cultura, digamos assim, só o
alfabetizado, desde os gregos e romanos, alcançava a cultura e o
conhecimento generalizado por meio da leitura dos livros. Hoje, o
analfabeto – caso não seja debilóide – recebe pela TV informações
culturais várias, embora muitas vezes superficiais – o cinegrafista
Pedro Olavo, meu filho, costuma dizer que a televisão é um oceano de
conhecimentos... com cinco centímetros de profundidade. Sem querer
ser profeta, eu diria que a cultura ou literatura escrita, depois do
reinado da imagem e do som, está entrando em decadência. Antes, as
mulheres românticas e os homens apaixonados, mormente na juventude,
liam ou pediam para lhes lerem romances e novelas... Hoje, quedam-se
horas esquecidas vendo e ouvindo entrechos dramáticos, patéticos ou
trágicos, sentados na sala diante da televisão, em lares pobres e
suburbanos ou em sofisticados bairros burgueses, as novelas da
Globo. Isto é, queiram ou não muitos intelectuais, poetas e
prosadores, uma funda transformação cultural, acentuada ainda mais
com os modernos computadores que estão chegando, providos de imagem
e som e redes de nível até mundial. O livro, sem desaparecer, pois
serve também à cultura para a formação de sua cúpula ou nova elite,
está em declínio, e com ele as formas até então existentes de
cultura e de feitio literário. O espalhafatoso concretismo dos anos
sessenta talvez tenha sido a mais dramática e fracassada tentativa
de transmitir emoções com imagens de letras e frases em forma de
imagens... sem sentido. Agora, talvez surja - ou já surgiu e os
intelectuais não perceberam ainda? – entre cineastas e operadores de
televisão, os novos “poetas”, os renovadores das transmissões de
emoções e idéias por meio de imagens e sons? Me responda quem
souber.
JCT – Dentro do processo histórico das
relações entre capital e trabalho, a sua visão crítica sempre esteve
voltada para o social. O capitalismo, atualmente, se esconde atrás
do neoliberalismo; o socialismo, por sua vez, ainda não se refez das
quedas. O que se vê é uma grande massa de desempregados. Já é
impossível a revolução? Onde estão os socialistas?
JHS – O socialismo – sem Stalin! –,
como Minas, está onde sempre esteve. A crise mundial a se processar
atualmente, é intrínseca do capitalismo, o mais selvagem,
principalmente na Ásia e nos chamados países emergentes. Vejam os
desastres financeiros da Coréia, Tailândia e outros bichos. É um dos
ciclos previstos pelo socialista Karl Marx. Onde vai dar, não se
sabe ainda. Mas, muito provavelmente, irá para outras transformações
políticas, sociais e econômicas. Quais? – os cientistas sociais,
políticos e econômicos, que os há muitos, inclusive um na
presidência da República Federativa do Brasil – que as
diagnostiquem. ... Mas, como as bruxas dos espanhóis, que as há,
há... Disputas de mercados, de predomínio econômico social e
político, somados a desemprego, fundas inquietações políticas com
divergências ideológicas, disputas territoriais e diferenças raciais
foram as causas das duas grandes guerras deste século – 1914/18 e
1939/45 – que abalaram o mundo, fenômenos parecidos com os atuais.
Tudo parecido com as situações políticas e econômicas de hoje,
tomara não degenerem em outra ou outras guerras de conseqüências
imprevisíveis, com os mísseis de ogivas atômicas e outros
instrumentos mortais, apontados para os peitos da humanidade. Os
socialistas – sem Stalin e Béria! – estão em posições de onde se
possa debelar a crise e impedir a guerra, num mundo sem desemprego,
sem grandes diferenças sociais e econômicas, com melhor distribuição
de renda e a capacidade do Estado de prover e amparar todas as
necessidades sócio econômicas dos cidadãos, como nas democracias
escandinavas – uma utopia, talvez mais uma...
JCT – Em alguns países, por contrariar
a ordem dominante, um bom número de pessoas encontra-se no cárcere.
Como você vê a cassação dos direitos do indivíduo por divergências
políticas?
JHS – Um absurdo, uma tirania, é claro.
Mas, sem justificar, sem querer dar razão aos tiranos de hoje e de
todos os tempos, parece uma sina da própria humanidade, desde os
gregos. O filósofo Sócrates foi condenado a beber cicuta,
suicidando-se, por ser considerado, pelos poderosos, contrário aos
costumes sociais e políticos da democracia – veja bem, democracia! –
da República de Atenas. Giordano Bruno, cientista italiano, no albor
da Renascença, por suas concepções científicas sobre o universo e
negadoras dos dogmas da Igreja, foi queimado vivo pelo Santo Ofício
da Inquisição, órgão judicial e político do Papado; na Revolução
Francesa de 1789, o poeta André Chenier aderiu inteiramente às
idéias dos revolucionários, mas, depois, quando discordou do curso
dos acontecimentos políticos, foi guilhotinado. São inúmeros os
casos, no decorrer dos séculos. Neste século em crepúsculo, o caso
mais notório e grave foi o do casal de cientistas nucleares Julius e
Ethel Rosemberg, americanos descendentes de judeus. O histerismo do
próprio Estado americano contra o comunismo e toda uma poderosa
ideologia de direita os acusou de colaboração com a União Soviética
– fornecimento de conhecimentos científicos sobre manipulação e uso
da energia atômica de que os americanos criam ser os únicos
conhecedores, com capacidade para fazer bombas atômicas – levou
Július e Ethel à cadeira elétrica, em 1953. Um absurdo, uma tirania
na chamada maior democracia do mundo. Anos depois, viu-se ter sido
uma grande injustiça.
No Brasil, na ditadura militar, houve casos graves, execuções
cruéis, mas não públicas como o caso Rosemberg, e que só viríamos a
saber anos depois, removidos dos porões da clandestinidade os
policiais e militares executores da política de repressão. O fato é
que o poder, absoluto ou não, sempre quer perpetuar-se. Por isso,
não perdoa seus adversários, matando, encarcerando ou simplesmente
alijando da vida política quem o contesta. Daí nasceram, e nascem,
os movimentos revolucionários dos insatisfeitos, nem sempre heróicos
vencedores, nem sempre totalmente vencidos.
JCT – O governo de Cristovam Buarque
atendeu às expectativas da esquerda?
JHC – Diria, sem sofisma, ser difícil
qualquer governo, de bases políticas populares e de aspectos ou
fundamentos utópicos, atender aos anseios de todos, de todos os
utopistas... Cristovam, com suas idéias de “governo popular e
democrático”, relaxou, deixou que os demagogos acabassem de
esculhambar Brasília e a higidez do plano da cidade e do Distrito
Federal. Permitiu a continuidade da política do maior malfeitor do
Distrito Federal, Joaquim Roriz, e seus asseclas, de assentamentos
populacionais de fundamentos políticos e maléficos e com finalidades
de especulação imobiliária. Toda vez que o governo anuncia doação de
lotes ou regulamentação de invasões, uma nova onda de pessoas da
periferia e até de terras longínquas vem à procura da felicidade de
ser proprietário de um pedaço de terra, isto desde os tempos de
Juscelino. Cristovam Buarque foi a negação política de quem lhe deu
votos na esperança de que ele acabasse com invasões e esculhambações
urbanísticas e arquitetônicas do Distrito Federal. Uma decepção,
para quem vive e viveu construindo e procurando defender Brasília em
sua essência. Vote governo popular e democrático...
JCT – O que resta ao poeta, depois que
os ideais revolucionários foram massacrados pela globalização?
JHS – A esperança, toda esperança, no
homem e em toda sua capacidade de criar, de modificar a si mesmo e
ao mundo circundante. A tão propalada globalização é passageira,
pode até durar cem anos – o que duvido – mas terminará com o homem
trilhando novos caminhos, até o das estrelas ou do cosmo. Sempre
surgirá um homem novo, uma sociedade nova, depois de crises
políticas e sociais, a dúvida é se esta será a última. A tal
globalização não será nunca infinita, não irá além da capacidade de
renovação da sociedade humana, mesmo a mais retrógrada e atrasada.
Vejam os resultados de tal situação nos desastres financeiros e
econômicos da Coréia e da Tailândia...
JCT – Viremos o disco. A Sexta Sinfonia
de Tchaikowsky continua sendo a grande companheira daquele uísque de
fim de tarde?
JHS – Sim! A vida, algumas vezes, como
queria o poeta Júlio Salusse, não é manso lago azul, por isto,
segue-se o conselho de Baudelaire num de seus “Pequenos Poemas em
Prosa” – “embriagai-vos, de vinho, de poesia ou de virtudes e de
música, eu acrescentaria, que pode ser também de Villa-Lobos..
JCT – E o tambaqui na brasa é um prazer
ou desculpa para reunir amigos?
JHS – As duas coisas, num bom espaço
campestre, como minha chácara do Bamburral, um bom vinho e o
tambaqui ou pacu pescados no Pantanal, digeridos ao som de uma
conversa tranqüila e despretensiosa, entremeada de anedotas que
podem ser fesceninas...
JCT – Agora, a pergunta de sempre. Qual
seu processo de criação? Quando e como nasce o poema?
JHS – De repente. Muitas vezes, ao
despertar, nas insônias da madrugada, surge uma idéia, um simples
verso, uma lembrança fugidia... A inspiração existe, que o diga a
moderna e trepidante Hilda Hilst e os poetas antigos. O que é
necessário, muitas vezes, é domá-la, burilá-la, como também se dizia
outrora. Aquela pequena fagulha de inspiração, digamos, deve-se
procurar transformar num fogaréu, trabalhando com arte, é claro, os
nomes e os verbos, como diria Platão, o que nem sempre se consegue.
As conquistas são árduas e “toda lua é atroz, todo sol é amargo”,
dizia Artur Rimbaud, e concluamos ainda com este poeta francês:
“Esta inspiração prova que sonhei”... estávamos sonhando, de
madrugada, e corremos para a escrivaninha na tentativa, algumas
vezes frustrada, de construir um poema. É assim que se sofre, ou às
vezes, rimos e gozamos no consciente fazer literário...
Leia João Carlos Taveira
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