José Inácio Vieira de Melo
Affonso Manta: o poeta encantado
Affonso Manta Alves Dias nasceu em
Salvador, Bahia, a 23 de agosto de 1939. Faleceu em 3 de dezembro de
2003 em Poções, Bahia. Com três meses de idade, passou a residir em
Iguaí, onde permaneceu até janeiro de 1950, quando a família se
transferiu para Poções, cidade do Sudoeste Baiano.
De volta a Salvador, o poeta
freqüentou o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal da
Bahia (UFBA), mas acabou por abandoná-lo. Trabalhou, em seguida,
como guia do Museu de Arte Sacra e repórter do Diário de Notícias.
Trabalhou na Diretoria Regional da Guanabara como inspetor da Seção
de Reclamações da Empresa de Correios e Telégrafos, no Rio de
Janeiro. Enfermo, retornou a Poções, onde voltou a viver desde
novembro de 1974, aposentado da ECT.
Por parte de pai, o poeta é primo em
quarto grau de Castro Alves, devido à sua descendência, por linha
direta, de João José Alves, o alferes, irmão do médico Antonio José
Alves, pai do Poeta dos Escravos.
Publicou os seguintes livros de
poemas: A Cidade Mística (1971), O Colibri, a Cidade Mística e
outros Poemas (1980), O Retrato de um Poeta (1983), No Meio da
Estrada (1991) Canção da Rua da Poeira e outros Poemas (1994), e O
Falso Crente, A Princesa Nua, O Pássaro e o Poeta e O Estranho na
Terra (1995). Participou das antologias A Poesia Baiana no Século XX
(org. Assis Brasil, 1999), A Paixão Premeditada (org. Simone Lopes
Pontes Tavares, 2000) e Sete Cantares de Amigos (org. Miguel Antônio
Carneiro, 2003).
Integrante da Geração Sessenta,
Affonso Manta tinha sua poesia marcada pelo lirismo e pela
construção de uma realidade particular, na qual assumia a postura de
um rei andarilho, que desfilava pelas ruas e praças “Adornado de
estrelas e de luas (...)/ à procura da forma da beleza”. Pois era “O
campeão da originalidade/ o peregrino astral”.
A poeta e ensaísta Maria da Conceição
Paranhos, na apresentação da antologia Sete Cantares de Amigos,
atenta para as múltiplas vozes do poeta: “Seu banquete – assim
podemos denominar seu modo de apropriação da realidade – é servido
por outros eus que dele desabrocham e vão guiando seu passo célere,
a desvendar essências” e conclui “apenas um eu não o poderia”.
Assim, em um mesmo ser, habitam o louco: “Enlouqueci, um girassol
nasceu em minha boca.”; o rei: “Aqui, o Rei Affonso, o Derradeiro”;
o menino: “Eu sou feliz porque já sou menino”; o anjo: “Anjo de luz
do sacrossanto empíreo” e o andarilho: “Vou sair por aí de
cambulhada”.
Outra face da poesia de Manta é a
refinada ironia. Simone Lopes Pontes Tavares, em A Paixão
premeditada, afirma que nos poemas de Manta “O debique é constante,
inclusive do eu poético, numa linguagem cinematográfica a
transformar o cidadão comum em clown, misto de Quixote e Chaplin”,
como se pode perceber no poema “Lá vai Affonso Manta”: “(...) lá vai
Affonso Manta (...)/ Coroa de alumínio sobre o crânio,/ Lapelas
enfeitadas de gerânio/ E flechas no carcás”.
Deste poeta lírico da “Terra das
Cacimbas”, que nas palavras do poeta Ruy Espinheira Filho, seu
amigo, foi um encantado a vida inteira, ficam a beleza de seus
versos, a leveza de sua técnica e, sobretudo, a lição da
simplicidade com que encarava a vida, como no poema “As Luzes do
Amanhã”, em que nos ensina: “Fazer da brisa um traje sem medida/ E
do arco-íris fazer um tobogã./ Amar as mínimas coisas da vida/ E ter
no olhar as luzes do amanhã.”
ENCONTRO COM O POETA
Conheci a poesia de Affonso Manta por
meio do poeta Ruy Espinheira Filho, quando fui seu aluno em uma
disciplina do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.
Fiquei fascinado pelo lirismo do autor de “O louco”. Pedi a Ruy o
seu endereço e falei que, em breve, faria uma visita ao poeta da
Terra das Cacimbas.
***
Chegamos a Poções, às 10 horas da
manhã, era um dia luminoso de novembro de 2002. Estavam comigo o
poeta Edmar Vieira e os amigos Flávio Vieira e Jaider Saraiva,
companheiros da cidade de Maracás. Fomos à Rua Coronel Maneca
Moreira, 154, na Praça da Velha Matriz, e lá estava o poeta, em
frente à casa, a nossa espera. Altivo, convidou-nos para adentrarmos
em seu lar e saiu mostrando todos os cômodos da ampla casa até
chegar ao quintal, onde havia alguns pés de goiaba, manga e
carambola. De volta à sala, pegou o livro da poesia completa de
Manuel Bandeira e falou: “Este é o maior poeta brasileiro. Estou
sempre relendo sua poesia”. Edmar pediu para que recitasse o poema
“Lá vai Affonso Manta”, o que fez de bom grado.
Feitas as apresentações iniciais,
fomos para o Bar do Beto, na Praça Principal, lugar onde Affonso
Passava boa parte de seu tempo, conversando com os amigos, entre um
cafezinho e um cigarro. Informou-nos de que o poeta Elder Oliveira,
que mora em Vitória da Conquista, estava em Poções, então fomos à
sua procura. Elder, além de bom poeta é cantador de categoria. Daí
pra frente foi só música e poesia. A alegria estava presente,
podia-se perceber a felicidade estampada na face do velho bardo de
Poções.
Despedimo-nos na boca da noite, por
volta das 18 horas. Felizes pelo encontro, pelo dia de encantamento
que a poesia havia nos proporcionado.
***
Um ano depois, novembro de 2003,
recebo e-mail de Ruy informando-me de que Affonso estava internado
no Hospital das Clínicas, e que a situação inspirava cuidados. No
dia seguinte fui visitá-lo. A principio fiquei chocado com o estado
do amigo, estava muito magro, vomitava constantemente, mas apesar de
tudo mantinha o brilho no olhar e, ao me ver, fez um sorriso e
exclamou: “Zé Inácio, que bom vê-lo. Como vê, estou comendo o pão
que o diabo amassou!”
Passei a visitá-lo quase todos os
dias, levava sempre algum amigo. Depois, surgiu a oportunidade de
convidá-lo para participar da antologia “Sete Cantares de Amigos”,
organizada pelo poeta Miguel Antônio Carneiro, de cuja seleção de
poemas fiquei encarregado. Mostrei para Manta seus poemas que havia
escolhido para a antologia, dentre eles constava o poema “Anjo de
Fogo”. Pediu-me que mudasse o título desse poema para “Anjo de Luz”.
Observei que se mudasse o título teria que mudar um dos versos
iniciais que era: “Anjo de fogo do celeste empíreo”, para “Anjo de
luz do celeste empíreo”, e aí o verso ficaria quebrado. Affonso,
então, fechou os olhos e disse: coloque aí: “Anjo de luz do
sacrossanto empíreo”. O problema está resolvido”. Perguntei qual era
o motivo da mudança, ao que ele respondeu: “Eu estou morrendo. Fogo
é coisa do Inferno e Luz é coisa do Céu.” Não questionei mais nada,
apenas fiz a mudança. Poucos dias depois, 03 de dezembro, o poeta
viria a falecer. No dia 11 de dezembro aconteceu o lançamento da
antologia Sete Cantares de Amigos, ocasião em que Affonso foi
homenageado com jogral de seus poemas, dirigido por mim, e
depoimentos de Maria da Conceição Paranhos e Ruy Espinheira Filho.
***
Em uma das cartas que me enviou,
datada de 18 de dezembro de 2002, ele diz:
“O “Livro de Celeste”, meu mais
recente trabalho, empacou por inteiro. Tem me faltado inspiração
para continuá-lo. É pena. Do que já está escrito há coisas
engraçadas como este poemeto:
A PISCIANA
Celeste é meio indócil, mas serena.
De gênio calmo. Mas de amor fogoso.
Ela me dá felicidade plena
E surra de cipó de fedegoso.
É o que me consola, a poesia. Povoa
minha solidão e estabelece um elo com os meus semelhantes, eu que
sou meio caladão.”
***
Que alegria a minha. Poder ter tido a
amizade e a atenção de poeta tão singular, de um homem que vivia em
estado de poesia e que, com seus versos, deixava e ainda deixa a
todos nós encantados. Está mais do que na hora de sua obra ser
reeditada. Não é nenhum favor que vai se prestar ao poeta, ao
contrário, é um beneficio que se fará às letras da Bahia e do
Brasil, enriquecendo-as, ampliando o seu lirismo.
José Inácio Vieira de Melo é poeta,
jornalista e co-editor da revista Iararana. Publicou os livros
Códigos do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e A
Terceira Romaria (2005). Publicou também o livrete Luzeiro (2003) e
organizou Concerto lírico a quinze vozes – Uma coletânea de novos
poetas da Bahia (2004).
POEMAS DE AFFONSO MANTA
ANJO DE LUZ
E como um ser de forte claridade,
Anjo de luz do sacrossanto empíreo,
Eu sentia nas asas do delírio
A dimensão da grande liberdade.
Passava nos lugares rotineiros
Colhendo todo mundo em meu abraço,
Confundindo noções de tempo e espaço,
Embaralhando fatos verdadeiros.
Ia nos quatro pontos cardeais.
Andava sobre a linha do equador.
Via o céu de manhã mudar de cor.
Percorria os espaços siderais.
Ia mais longe do que qualquer nave.
Voava mais depressa do que a luz.
Entendia as palavras de Jesus
Como uma criancinha entende uma ave.
Achincalhava todas as mentiras.
Todos os fariseus desmascarava.
Os ídolos do hipócrita quebrava.
A roupa do impostor deixava em tiras.
E como um ser de etérea realeza,
Adornado de estrelas e de luas,
Saía a percorrer todas as ruas
À procura da forma da beleza.
E encerrava meu curso luminoso
Num lugar pelos homens habitado,
Onde era pelos guardas algemado
E preso como um louco furioso.
LÁ VAI AFFONSO MANTA
Com estrelas na testa de rapaz,
Com uma sede enorme na garganta,
Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta
Pela rua lilás.
Coroa de alumínio sobre o crânio,
Lapelas enfeitadas de gerânios
E flechas no carcaz.
Manto florido de madapolão,
Bengala marchetada de latão,
Desfila o marechal,
O rei da extravagância, o sem maldade,
O campeão da originalidade,
O peregrino astral.
JOB
Eu só tenho de meu a noite e o dia.
E a tarde quando morre no poente.
Do banquete da vida estou ausente.
Freqüento as alamedas da agonia.
Eu só tenho de meu o sol e a lua.
E o jardim que contemplo da varanda.
E as meninas que brincam de ciranda
No silêncio geral da minha rua...
NÃO DESEJO MORRER...
Não desejo morrer enquanto houver
No céu estrelas brancas cintilando;
Na manhã clara um pássaro cantando;
Na cama um corpo airoso de mulher.
Não desejo morrer hora nenhuma
E sobretudo no instante presente.
Eu desejo ficar para semente,
Carpindo minhas dores uma a uma.
Leia a obra de Affonso
Manta
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