José Inácio Vieira de Melo
Francisco Carvalho:
“Poesia é salto no escuro”
A Tarde Cultural
Salvador – BA, sábado, 16 de abril de 2005
Aos 77 anos, cinqüenta dedicados ao
fazer poético, o poeta cearense Francisco Carvalho lança a antologia
Memórias do Espantalho, reunião de poemas escolhidos de 19
livros dos 29 publicados. Apesar de ter vencido a 1ª Bienal Nestlé
de Literatura Brasileira, com o livro Quadrante Solar (1982)
e de obter o prêmio da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, com Girassóis de Barro (1997), o poeta da cidade de
Russas é praticamente um desconhecido no País. Nesta entrevista,
Francisco Carvalho fala de como aconteceu sua recente parceria com o
cantor Raimundo Fagner e do descaso geral para com a arte poética:
“É preciso reconhecer que a poesia é hoje um teatro sem platéia. Uma
ribalta às moscas.”.
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Francisco
Carvalho, há 50 anos deu-se a sua estréia na poesia. De 1955 para cá
são 29 livros publicados. Fale um pouco de sua caminhada poética.
FRANCISCO CARVALHO – Visto que não sou uma pessoa com QI
excepcional, minha estréia na poesia foi bastante ruim. Os quatro
primeiros livros (Cristal da Memória, Canção Atrás da Esfinge, Do
Girassol e da Nuvem, O Tempo e os Amantes), escritos numa fase
de aprendizagem, são mais do que péssimos. Há muito tempo os
considero excluídos da minha bibliografia. Não se pode privar o
autor do direito de renegar a má literatura que produziu numa época
de imaturidade, quando lhe faltavam as condições intelectuais
indispensáveis ao pleno exercício da escrita literária. Só os gênios
escrevem grandes livros no início da carreira. Mas os gênios não se
encontram nas esquinas...
JIVM – Em 1982 você conquistou o prêmio de
poesia da 1ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, com o livro
Quadrante Solar. Em 1997, obteve o prêmio da Fundação Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, com Girassóis de Barro.
Premiações dessa natureza consolidam a trajetória de um poeta?
FC – Prêmios literários não passam de estímulos eventuais.
Seguramente não contribuem para consolidar “a trajetória de um
poeta”. Até porque, como se sabe, os critérios dessas premiações não
estão isentos de interferências alheias à natureza da obra
literária. As comissões julgadoras, por sua vez, são bastante
sensíveis a questões ligadas à hierarquia social dos concorrentes,
como também à imagem por eles projetada nos espaços midiáticos. Os
fatores de ordem geográfica têm igualmente peso importante na
decisão final dos membros das comissões. Em artigo publicado na
revista VEJA, certo poeta fez comentários desairosos à minha
premiação pela Bienal Nestlé de Literatura. Criticou o desempenho da
comissão julgadora e limitou-se a citar dois versos de um poema que
não lhe soara bem aos ouvidos de esteta refinado. Por trás disso,
todavia, estava o seu desconforto pelo fato de a comissão haver
premiado um poeta nordestino completamente desconhecido, num
universo de mais de sete mil candidatos.
JIVM – A literatura, sobretudo a poesia
produzida nos estados do Nordeste, não sai de suas províncias. Em
recente entrevista ao Jornal A Tarde, o escritor Ivan Junqueira,
Presidente da Academia Brasileira de Letras, afirmou que a melhor
poesia feita no Brasil está no Nordeste. Qual, então, o motivo do
confinamento?
FC – O grande poeta Ivan Junqueira, também ensaísta e tradutor de
renome, é uma pessoa com autoridade suficiente para dizer que no
Nordeste se faz a melhor poesia do Brasil. Mas os poetas nordestinos
não devem generalizar o ponto de vista desse respeitado intelectual
brasileiro. Acredito que ele quis se referir a um grupo de poetas do
Nordeste que, no seu entender, podem ser colocados no mesmo nível
dos poetas de expressão nacional. No que se refere ao motivo do
confinamento, a explicação é muito simples: os intelectuais do
Centro-Sul partem da premissa de que uma região sem desenvolvimento
econômico e social não tem condições de produzir literatura de boa
qualidade. Repito agora o que já disse anteriormente: as elites do
Sul do país, para o bem ou para o mal, continuam a ditar a moda das
roupas e dos poemas.
JIVM – A antologia Memórias do Espantalho,
sua mais recente produção, reúne poemas escolhidos de 19 livros.
Numa obra tão volumosa e prestigiada, qual o critério para a
seleção?
FC – Não existem critérios metodológicos para uma seleção dessa
natureza, uma vez que no fundo de todas as avaliações prevalece a
subjetividade. Tenho nítida consciência de que não escolhi
necessariamente os melhores poemas dentre os que se encontram no
livro Memórias do Espantalho. Isso é compreensível quando se
trata de uma tarefa desse porte, realizada ao longo de seis meses de
trabalho exaustivo, a podar excessos e reescrever poemas. Com todos
os equívocos que possa ter cometido, penso que consegui passar a
imagem exata do que tenho sido ao longo da vida: um poeta da
medianidade.
JIVM – Raimundo Fagner incluiu cinco poemas
seus, por ele musicados, em seu novo CD, Os Donos do Brasil
(2004). Como aconteceu essa parceria e em que medida contribuiu para
a divulgação de sua obra?
FC – A pedido de amigo meu, jornalista Vicente Alencar, e por
intermédio deste, enviei um exemplar de Memórias do Espantalho
para o cantor e compositor Raimundo Fagner, que manifestara
interesse em conhecer minha poesia. Passado algum tempo, recebi
copia de uma gravação do poema O Bicho Homem, do livro Raízes da
Voz. Algum tempo depois, me foi entregue copia de CD do Fagner,
com cinco faixas dedicadas a poemas de minha autoria. O próprio
Fagner fez a escolha dos poemas, sem qualquer interferência de minha
parte. A partir do lançamento do CD no mercado, o Fagner fez
excelente trabalho de divulgação da minha poesia nos centros urbanos
mais importantes do país. Obviamente, não espero que essa
iniciativa, positiva sob todos os aspectos, me torne num poeta
conhecido nacionalmente. Mas teve, inegavelmente, o mérito de expor
o meu nome e meu trabalho fora dos muros da tribo.
JIVM – Muitos são os motivos da sua lírica. Do
rural ao religioso, do metafísico ao surrealista, assim como você
transita do verso medido ao verso livre. Como se movimentar por
varias temáticas e diferentes formas e manter o estilo?
FC – A poesia lírica tende geralmente para a diversidade temática.
Cada autor tem uma forma peculiar de encarar o fenômeno poético.
Alguns preferem captar o poema em meio ao ritmo avassalador das
sonoridades do cotidiano. Outros, pelo contrário, preferem mergulhar
nos labirintos da subjetividade. Sempre escrevi poemas de modo a
contemplar uma faixa temática a mais abrangente possível. O rural, o
social, o religioso, o metafísico, o erótico, e até mesmo o
surrealismo. Todas essas dimensões, que de alguma forma se
entrelaçam ou se bifurcam na memória cósmica do ser humano, no que
ele tem de mais profundo e abissal. Também sempre usei de muita
liberdade nessa questão de escolha pelo verso medido ou o verso
livre. Uma questão que me parece exclusivamente de ordem pessoal.
Não existe verso livre quando se pretende fazer um bom trabalho. É o
que nos ensina T.S. Eliot, um dos ícones da poesia norte-americana
de todos os tempos. O verso branco, o verso rimado, o verso toante,
o verso medido, o verso assimétrico – todas essas alternativas são
válidas e eficazes se o poeta tem talento e erudição bastante, se
aprendeu as lições dos grandes mestres do passado, antes de fazer
sua opção pelo chamado discurso da modernidade. Também nessa
matéria, “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” (FP). Quando se
tem a “alma pequena” (e como é grande o número de “almas
pequenas”!), o melhor que se tem a fazer é trocar a caneta
esferográfica por um desses brinquedos eletrônicos de fabricar
moedas...
JIVM – Gilberto Mendonça Teles destacou sua
obra poética juntamente com Jorge de Lima, Murilo Mendes e Augusto
Frederico Schmidt. Esses autores são referencias em sua obra? E
quais as outras?
FC – Isso realmente aconteceu. Gilberto Mendonça Teles acha que a
minha poesia, sob o prisma religioso, tem pontos de referência com a
poesia de Jorge de Lima, Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt.
Em certa época de minha vida, os dois primeiros poetas exerceram
influência marcante sobre minha escritura poética. Notadamente o
primeiro. Cheguei a escrever um livro de poemas (frustrado, diga-se
passagem), fortemente impregnado pela estética visionária de
Invenção de Orfeu, livro fundamental da literatura brasileira.
Outras influências, igualmente poderosas, ofuscaram o meu horizonte
de poeta embrionário. Sem formação cultural capaz de impor minha
individualidade literária, fui condoreiro com Castro Alves,
romântico com Alvares de Azevedo, simbolista com Cruz e Souza,
parnasiano com Olavo Bilac, etc., etc. Depois foi a vez de Augusto
dos Anjos, Manuel Bandeira, Camões, Fernando Pessoa, Antônio Nobre,
Cesário Verde, Jorge de Lima, Drummond de Andrade, Saint-John Perse,
Neruda, Garcia Lorca e vários outros... Essa questão de influência
literária é uma patologia que atinge a maioria dos poetas
iniciantes. Com o passar do tempo, vai-se diluindo aos poucos até
que os poetas alçam vôo sem precisar das asas dos outros. De modo
geral, as influências são benéficas, desde que não ultrapassem
certos limites.
JIVM – Tem-se produzido muita poesia no
Brasil, e poucos são os leitores. O que você acha da nova poesia? O
que tem a dizer aos novos poetas?
FC – Nunca se produziu tanta poesia no Brasil como ocorreu a partir
da revolução modernista de 22. Mas é bom que se diga que essa
produção, deflagrada sob a égide do versilibrismo, foi em grande
parte prejudicada pelos excessos e turbulências da primeira hora.
Poetas acostumados à vassalagem do verso medido davam a impressão de
haver descoberto o mapa da mina. O que importava, realmente, era a
implosão do Monte Parnaso, esse lugar mágico onde se concentrariam,
segundo os mais radicais, todos os males e deformações da poesia
brasileira que se desenvolveu desde o final do Séc. XVIII até o
primeiro quartel do Séc. XIX. Mas nem tudo era convincente na
retórica dos modernistas. O tempo se encarregou de corrigir os
excessos. É preciso reconhecer que a poesia é hoje um teatro sem
platéia. Uma ribalta às moscas. Os poetas que se leiam a si mesmos.
A pobreza, a fragilidade social, o desemprego, a violência urbana, a
política de confiscos salariais, as desigualdades regionais – tudo
nos afasta da poesia e da literatura de um modo geral. Pode-se viver
sem poesia, mas não se pode viver sem proteínas. E o custo da
proteína está pelos olhos da cara. Nada a dizer aos novos poetas,
senão que a opção pela poesia é um salto no escuro. Em matéria de
poesia, ninguém ensina nada a ninguém. A poesia é um caminho
solitário que pode não chegar a lugar nenhum. A este assunto também
se ajusta a sentença bíblica segundo a qual “muitos serão os
chamados e poucos os escolhidos”. Os famosos conselhos de Rilke a um
jovem poeta do seu tempo estão completamente fora de moda.
JIVM – Qual a sua definição de poesia? O poeta
exerce algum papel na sociedade?
FC – Penso que a melhor definição de poesia é o próprio poema. De
qualquer forma, respondo à pergunta da seguinte maneira: 1) poesia é
a sistematização de códigos verbais por meio da qual a linguagem
escrita (no caso o poema) é transformada em objeto estético para
usufruto do leitor hedônico; 2) fazer poesia é ver as coisas como as
coisas não são; 3) fazer um poema é estar em conflito com os dedos
da mão. A estas acrescento uma definição de Lawrence Durrel, autor
do Quarteto de Alexandria: “A poesia acontece quando uma ansiedade
encontra uma técnica”. Esta me parece uma das melhores e mais
perfeitas definições de poesia que tenho lido. Que me perdoem a
franqueza nada diplomática, mas o poeta exerce o papel de besta na
sociedade, que lhe nega o devido apreço nem retribui condignamente o
seu trabalho. Mas os poetas continuam resistindo a todas as
tentativas de expulsá-los da República, como pretendia certo
filósofo da antigüidade.
JIVM – Fale um pouco mais sobre os novos
poetas. Quais os seus novos projetos? Algum livro em vista?
FC – É fora de dúvida que existe atualmente uma nova geração de
poetas com bastante visibilidade no terreno escorregadio da
literatura nacional. Poetas de uma faixa etária que vai dos 30 aos
45 anos de idade vêm expressando, com grande determinação, um
discurso lírico compatível com os padrões estilísticos da
modernidade literária. Prova disso é a recente antologia organizada
pelo poeta José Inácio Vieira de Melo (Concerto Lírico a Quinze
Vozes), na qual figuram l5 poetas de várias tendências
ideológicas, a respeito dos quais gostaria de transcrever estas
palavras do prefaciador do livro, Aleilton Fonseca: “A grande
maioria já demonstra o talento, a consciência e a dedicação
necessários à construção de um estilo, de uma poética, de uma
lírica”. Só o tempo, segundo ele, indicará os poetas “que terão a
força e o espírito suficientemente fortes para se impor aos recortes
da crítica e da história” (p.3l). Gostaria ainda de fazer um
destaque especial sobre Vanessa Buffone, carioca radicada na Bahia.
Ela participa de outra antologia (Os Outros Poemas de que Falei),
juntamente com outros seis autores. Sua expressão literária
manifesta-se num discurso de fortes acentos pessoais e de apreciável
densidade lírica. Desconfio que na minha idade seria paradoxal falar
de “novos projetos”. Todavia, como os redatores da Carta não
decidiram ainda que é proibido sonhar, gostaria de publicar, antes
dos oitenta, uma última coletânea de poemas. O ideal é que isso
pudesse ser feito sob a chancela da Academia Brasileira de Letras,
ainda que eu tivesse de arcar com os custos da edição. Mas tudo isso
não passa de uma utopia de poeta marginal.
José Inácio Vieira de Melo é poeta,
autor dos livros Decifração de Abismos (2002) e A Terceira
Romaria (2005). Organizador de Concerto lírico a quinze vozes
– uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004) e co-editor da
revista Iararana.
Leia Francisco
Carvalho
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