José Luiz Dutra de Toledo
O saco dos mil e um contos de
Nilto Maciel:
suas alegorias, fantasmagorias e
cíclicas
perplexidades literárias
Com as edições envelopadas de contos e
poemas (O Saco – anos 70 do século XX – Fortaleza – Ceará) Nilto
Maciel começou a se tornar notável e valorizado na cena literária
nacional. Além de divulgar outras escritas expressivas e
representativas da sua geração (marcada pelo intento de resistir à
cultura sacralizada pelos governos autoritários que nos cercearam de
1964 até 1985), este escritor cearense refez seus percursos e
resgatou suas fontes literárias (A. Kuprin, Émile Zola, Graham
Greene, Júlio Verne, Menotti Del Picchia, Taunay, Camilo Castelo
Branco, José de Alencar, Lima Barreto, Castro Alves, Honoré de
Balzac, Gustave Flaubert, Marquês de Sade, Blaise Pascal, G. Hegel,
K. Marx, Paul Verlaine, Musset, Machado de Assis, Alexandre Dumas e
muitos mais) e recitou-as em seus casos para desfechos inquietantes
ou desconcertantes (desconstrutivistas e minimalistas) às nossas
fisionomias e olhares boquiabertos. Picasso explica. Com seu estilo
compassado, criativo e conciso, Nilto Maciel construiu pontes/
alusões inusitadas entre o seu imaginário literário e as mais ricas
obras da arte de narrar e especular ao longo dos séculos XX e XXI.
Por exemplo:
Franz Kafka e Nilto Maciel.
“Ah, disse o rato, “a cada dia que
passa o mundo se torna mais estreito. No começo ele era tão amplo
que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz por ver à
distância, finalmente, as paredes da direita e da esquerda, mas
essas longas paredes dirigem-se tão rápidas uma para a outra, que já
estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para onde eu
corro.”
_”Você só precisa mudar de direção”,
disse o gato e devorou-o. (Franz Kafka – em: Pequena Fábula).
“Um passarinho cansou de voar e pousou
num galho. Cantou uma ode à tarde e tencionou alimentar-se. Voou ao
chão e defrontou uma serpente. O guizo dela agitou-se.
_Por que me olhas assim, cascavel?
O pássaro deu um saltinho para trás.
Melhor não esperar resposta. Saltitou, deu pequenos vôos ao redor do
ofídio.
_Tu me odeias porque não sabes voar,
não é? Ora, se voasses, o que seria dos pequenos seres como eu?
Contenta-te com rastejar.
Cantou trecho da ode à tarde e riu.
_Também me odeias porque não sabes
cantar? Eu canto porque não conheço o ódio.
Calada, a serpente mirava o
passarinho. E o seduzia com os olhos. Falando e cantando, a avezinha
também mirava a cobra.
E deu-se o bote.” (Nilto Maciel – Ode
à tarde – Pescoço de Girafa na Poeira – Brasília – Bárbara Bela –
1999 – pág. 30).
Kafka tem a visão do beco sem saída,
Nilto Maciel o vislumbre do fascínio fatal, o primeiro numa linha
horizontal, o segundo com uma síntese vertiginosa entre o vertical e
o horizontal.
Os pesadelos patéticos da contemporaneidade literária na arte
pouco rebuscada de narrar de Nilto Maciel.
Gafanhotos- lagostas venenosos e
disseminadores de pestes (Guerra das Lagostas), menina fugindo para
ser trapezista em circo, biólogo holandês pedófilo morto e enterrado
no quintal porque queria comer o Joãozinho, ave de rapina devorando
vacas, o linchamento do ladrão das cuecas que Carlos comprou e nem
chegaria a usar, Eros e Thanatos copulam na memória do Dr. Paulo da
Santa Casa de Misericórdia (o cadáver da enfermeira amada e o corpo
cortado ao meio da galinha que explorou ainda viva em sua infância),
a Ceia de Emaús pintada por Caravaggio, um neto criado por tios e
avós em meio às diárias rezas e missas, latinórios eruditos
(esnobes?) e em extinção?, o cíclico sono e sonho do homem que não
ouvia qualquer movimento ou ruído numa apocalíptica aldeia (que
ainda não morrera mas não dava mais sinais de vida), a
televisão-jaula, castigos para pecadores, falta de ouvintes para as
notícias, línguas vermelhas lambendo o céu azul e branco, El Greco,
cavalos cegos, o reino de seu pai abarcava o mundo, a vaga luz da
lua, o sumiço das alvas coxas da mocinha, a Sonata Sonâmbula de
Francisco Vitória (1731 / 1800), Barbacena descendo aos precipícios
marinhos dos afogados, calhamaços de manuscritos e clássicos da
Antiga Literatura Egípcia, contatos entre homens de distintas eras e
espaços, o jesuíta beijou a pedra negra sagrada dos muçulmanos,
livros raros furtados por bibliófilos na biblioteca do Vaticano (com
a ajuda de Cardeais corruptos?), Florídio citando trechos do livro
Fundamentos do Canibalismo de Sandór Thökoly, 3 meninos assustados
anunciam: “Brejnev morreu.”, leões de um zoológico devoram Florídio
Mandrano, a entrevista chocha do repórter Guido Mocho com uma
eminente personalidade medíocre francesa em visita ao Brasil,
Vitória roubou algum despojo ou a Sonata de D’Andrieu?, miscelâneas
e ecletismos pictóricos, a entrada de Cristo em Bruxelles, máscaras
e esqueletos em barrocos jogos de espelhos, os passos do mortal
Benedito (filho de Deus e da morte), Florinda Bulcão tinha uma baita
mansão na praia do Joá (zona sul carioca), Ruggero sonhava com
Claudia Cardinale, Silvana Mangano, Mônica Vitti, Virna Lisi e se
via nas películas dirigidas por Vitório De Sica, F. Fellini, L.
Visconti, M. Antonioni, Rosselini, P. Paolo Pasolini, B. Bertolucci,
Virgulino Ferreira: o inesquecível rei do cangaço, Il Lampione nunca
estreou no Cine Acaiaca de Belo Horizonte, Covas – o democrata do
inferno, encenações de Nelson Rodrigues (o Rockfeller do teatro
contemporâneo brasileiro), vasculhando o céu com uma luneta e
sonhando com a Terra, uma colcha de veludo prateado sobre a cama de
um casal que, em pleno perigeu e no cúmulo do apogeu da era
breganeja canta com ardor o Hino Em Nome do Desejo e do Amor
indiferente ao filme O Anjo Azul que a Televisão Continental exibiu
há quase quatro décadas! A estrela era Marlene Dietrich!...
Estrelas cintilantes nas espumas flutuantes da minha banheira.
Quase morri de tanto ler e foi tudo em
vão? Fui um Sísifo? Os tempos nos responderão. Estrela radiante a
brilhar de norte a sul! Nasceu Jesus! Já é Natal!... Mensagem de
Amor e Paz!... E um Ano Novo cheio de felicidade! Varig, Varig,
Varig!... A Idade Média projetou-se sobre o nordeste brasileiro?
Antonio Conselheiro diz-me que sim. Preso, estrangulado e queimado
em guerra santa e suja. O Papa Eugênio III teve uma das mais
terríveis mortes conhecidas!... O Arcanjo esperou em vão pelo
despertar da princesinha. Nem com quatro pedras na mão ou na
vidraça. Vivia sempre a dizer para a sua aia: “Pela lei do desejo
passional, fale com ela tudo sobre sua mãe e ate-me a ela! Minha
carne trêmula torna-se repugnante?” Assustada, quebrou pratos na pia
e tentava fritar carne congelada. Estava desorientada. Decidi pintar
minhas unhas com a cor do ouro solar e ir bebendo uma cerveja choca.
A goles lentos. Gosto se discute. E eu, com a boca salivando/
sonhando com bifes acebolados, gargalhei. Convulsivamente. Em pleno
crepúsculo do macho!... Os dentes de Dalila luzindo na noite como
diamantes em fogos de artifício!... Uma jangada nos leva ao reino do
Deus dará ao encontro de D. Sebastião. E se Deus não der? Como é que
vai ficar? Colombo era Ulisses de Ítaca ou o salvador do Novo Mundo?
Aos gritos a mulher de Colombo acordou e foi fazer renda enquanto
seu marido nadava aos socos e pontapés. O livro Pescoço de Girafa Na
Poeira rachou e agora solta mini-blocos de suas páginas imperdíveis.
Que pecado!... Tarados não ficam só tocando em perninhas de
caronistas desacompanhadas, cuide-se, ouviu? Jogavam a culpa na
vovozinha, nos cachorros de rua, nos vizinhos e até nas lagartixas.
Nenhum cheiro de mofo ou peido no confessionário. Só um certo hálito
de água benta com farinha de trigo. Que bom lugar para descansar e
babar!... Três tristes tigres de Bengala (e com escapulários nos
pescoços) serviam como guardas de honra à Virgem do Pillar de
Zaragoza. Seu nicho azul celeste e dourado era um cubo-elevador com
som-ambiente (in continuum músicas de Cole Porter). Trancamos a
porta já trancada e vimos na televisão crises, abacaxis, pepinos,
promessas e fraudes. Os irmãos perdidos no mundo, cuidando de suas
vidas órfãs. O bonde fora dos trilhos. Eu ainda tenho um chauffer
mas, quando não mais o quiser, chamarei um motorista ou um
táxi-driver amarelo de Nova York. Lá tudo está pesado e sombrio mas
ainda dançam no escuro e na chuva. Não há streap-tease que alivie a
barra. Esquecimentos sucediam-se a memórias anteriores. Dalila
trouxe-me numa bandeja a cabeça de Sansão. Horrorizado, acordei
minha noite passada. Nunca existiram almas gêmeas. Sabichão rima com
salsichão. Nunca voarei num Constelation da Varig. Só o JK e o
Jango!...
Curto Tratado sobre monstros xifópagos.
Maria reclamava de tanta normalidade.
Adorava um porquinho de duas cabeças!... José, unido a Maria, quatro
pernas, quatro braços, duas cabeças. Um monstro. Coisas da
natureza!... Estão todos felizes da vida. Comem e cantam. A ilha da
Utopia nos educa e nos faz saudáveis. Ouvir Gardel só em baixo
astral, claro!... Os homens nos engordaram com música, comida e
prazeres até que crescêssemos e por eles fôssemos diabolicamente
devorados. Somos os frangos assados deles!... Virgem do Escapulário
do Carmo!... Oh vira-latas das ruas enlameadas de Ouro Preto!... Com
eles lati ao mundo: – Nunca fui a Olinda!... Dormindo como uma porca
sobrevoei-a no meu regresso de Lisboa. Horas antes, nos telejornais,
donas de casa metralhavam bandidos como se abatessem moscas com
jatos de spray inseticida. Elas arrasavam-me e dentre elas seria
escolhida a nova chefa do departamento que por tanto tempo chefiei.
O presidente da Câmara Distrital nunca ouvira falar de Sepé Tiarajú,
o mártir da bugrada gaúcha, mas vestia terno e gravata e exibia
visual de estadista. Será que terei uma vaga no asilo
Sociedade-dos-Cães-Sem-Dono? Muitos foram considerados doidos e, por
isso, mortos.
É o fim!.... da picada.
Pio XII, péra aí, Eugênio Pacelli, tá?
Adão rimando com trovão, Eva com treva, et caterva, Miguel Aceves
Mejia mijava, tapuias, cuias de carijós com piolhos coçando em suas
cabeças, Pinzón comendo pinhões debaixo de araucárias paranaenses,
Mucuripe? Onde é isso? Lá, aos pés da Sancta Cruz, repousava Alfonso
Ordóñez há 458 anos. Garrincha comia bolachas, Mazola deu nome a um
azeite fino de milho para cardíacos e Pelé já era rei. Nunca me
falaram nisso!... Sua língua parecia presa aos dentes. Muitos nesses
contos só acordam perplexos para o ponto final. Ícaro colidiu no
espaço sideral não com um meteoro, mas, sim, com o próprio 14 Bis
guiado por Alberto Santos Dumont. Napoleão Bonaparte caiu das coxas
peludas do general Wellington e acordou tentando agarrar-se ao nada.
Hans Staden será comido por um tupinambá ou sacrificado numa missa
de jesuítas?
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