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Jorge Lúcio de Campos




A mesma noite, de Heitor Ferraz (Sette Letras)



 

A mesma noite é a segunda coletânea poética de Heitor Ferraz (a de estréia, Resumo do dia, veio a ser finalista, no ano passado, do Prêmio Nestlé de Literatura). Apresentada por sua Editora como "buscando um diálogo com a tradição modernista de Manuel Bandeira e Ribeiro Couto", compõem-na trinta e seis títulos que quase sempre privilegiam temas árduos como o tempo e a memória.

Digo isso porque, embora muitos já tenham se aventurado a fazê-lo, bem poucos (Proust seria aqui a referência obrigatória, com seu personalíssimo recorte da durée bergsoniana) souberam tratá-los com a necessária acuidade. Enorme é, no caso, o risco da pieguice e do lugar comum. Afinal de contas, mesmo aparentando o contrário, a selvageria do tempo jamais nos pertence (antes nos atravessa em sua doação de sentido)
e a memória-fluxo, por sua vez, não se limita a ser um mero mosaico de instantâneos portáteis, tipo 'álbum de família'.

Por via de regra, Ferraz consegue evitar tais equívocos. Delicadamente, sua escritura desfia o tema-vida, facetando-o num exercício simbólico de tentames e erros aparentados a um culto à ausência do concreto.

Trata-se, a rigor, de um instigante mise-en-abîme ("A janela se abre em abismo/de tanto britar angústia/própria de morituro") em que se desvelam os andaimes de uma interioridade estrangeira fortemente marcada pela insustentável busca de raízes num solo nômade ("Onde o núcleo/que tanto ansiava (…)/que bombeia estes olhos/este sentimento/cada vez mais confuso?").

Em boa parte dos poemas, destaca-se a presença silenciosa da imagem arquitetônica (paredes, balcões, degraus, janelas e molduras) que se faz presente numa surda cumplicidade entre o fora e o dentro, o antes e o agora - fundando, metaforicamente, uma espécie de temporalidade partilhável. Essa relação quase obsessiva com o espaço da pedra talvez seja, de fato, o ponto nevrálgico de A mesma noite. Mesmo nos momentos mais reminiscentes e/ou claudicantes quando Ferraz ensaia uma celebração da infância e seus rituais ("Os primeiros dentes/procuravam sua
sepultura/nos telhados./E lá ficaram/cravados no espaço.") e sobressaltos mágicos (" - o fundo da noite/estampado na memória/me puxa pelos pés."), tal assunção parece 'compensar', com sua rigidez estrutural, a volatilidade da maioria das recordações.

Trata-se, enfim e sobretudo, de uma obra recheada de belos exemplos (caso de 'Galo', 'Signo', 'Sono', 'Noturnos' e 'A velha casa', entre outros) de como o tempo da memória (enquanto uma série de atos de esforço para salvaguardar o esvaecido pelas marcações da vida) pode (e deve) alertar-nos para o que efetivamente conta em termos de uma experiência autêntica: "escuto os sapatos/tocando as pedras/do corredor/numa pronúncia particular". O resto é um enfadonho preenchimento de lacunas.

 


Leia a obra de Heitor Ferraz Mello