J.M. Leitão
O velório do Velho - Boca
1o Prêmio Internacional Plural 1985
– México
O morto,
esticado a minha frente, tem a inescrutável idade dos velhos mortos.
Eu diria setenta, setenta e cinco anos, se me atenho apenas ao olhar
fixamente perdido, às rugas e aos ralos cabelos brancos - plantados
nas laterais da cabeça - de um branco fosco-amarelado. Em
comprimento não ultrapassa, com desenvoltura, o metro e meio, se
tanto. É largo de corpo e de uma magreza encorpada. E noto-lhe as
mãos. São mãos enormes para o mirrado tronco. Mãos grossas,
nodulosas e, deixam entrever, acostumadas ao trabalho rude.
No mais, chamam
minha atenção: a pele cor de champanha, levemente queimada pelo sol,
se isso é possível, os olhos e a boca. Uns olhos miudinhos e
incrivelmente azulados (ainda visíveis), e a boca deixando escapar
um meio sorriso como antes, em vida, a qualquer motivo ou sem
nenhum. Sorriso formado em finos e bem delineados lábios, e expondo
à minha curiosidade o dourado dos dentes. O conjunto reafirma o
acerto de seu apelido: Velho-Boca. É, exatamente o Velho-Boca, sem
outro nome tão facilmente conhecido. E certamente ele o tinha, mas
os dentes ofuscaram eventuais interesses pela descoberta do
verdadeiro, o de batismo, o oficial. Faria diferença? Não, concluo
sem procurar saber a opinião de curiosos no homem, se algum houver.
Deixo a memória
perder-se no passado, enquanto procuro descobrir o motivo de estar
aqui, na casa do morto. Um morto deitado como todos os mortos e
quase solenemente florido, exceto pela qualidade das des-coloridas
pétalas a arrodeá-lo. Murchas copas que mal completam o enorme vão
livre do espaçoso caixão reservado ao pequenino defunto que, nas
mãos, leva o inexorável terço de volumosas contas cuidadosamente
entrelaçado nos dedos. E por um momento chego a crer no mágico poder
de tal coisa influenciar sua entrada num inexistente éden; ele bem o
mereceria.
O ambiente é
arruinadamente simples e os poucos circunstantes permanecem calados
e imóveis. Mantêm um respeitoso e exagerado silêncio e, desconfio,
dirigidos mais à minha presença do que ao falecido. Apenas um
presente mexera-se ante a ordem de arranjarem "uma cadeira pro
doutor", e vejo-me compelido a aceitar a oferta.
Assim, permaneço
sentado e ignoro o porquê de não me levantar, de não abandonar o
casebre abafado, de não escapar do incômodo cheiro das flores. E
permaneço indiferente aos olhares, ao zunzum discreto e aos
intimidados e raros dedos apontados na direção do estranho, de mim.
Ouço o cochicho:
"É um amigo do Boca", e proíbo à minha curiosidade identificar o
palrador. Mantenho-me estático, a recordar vivo o agora morto.
Ele vendia
doce-gelado quando o conheci. Eu teria uns cinco ou seis anos e
morava no começo da cidade, bem antes dos longos e irregulares
quarteirões de casinhas desalinhadas e ruas desprovidas de
pavimentação, cobertas de areias. Digo começo da cidade quando hoje
inexiste o esquecido e antigo logradouro. A febre de construções a
tudo destruiu e lá, exatamente lá, ergueu-se uma monstruosa e imensa
praça de concreto absurdamente desprovida de verde; nada mais que um
mar de pedras pontilhado com tubos de cimento enxertados de mirradas
árvores; infrutífera tentativa de replantar a vida: eis a praça e o
crime.
A rua sombreada
de oitizeiros e retorcidos e cabeludos fícus-benjamins; os
retilíneos e paralelos braços de aço por onde corria o vagaroso
bonde; os gritos da meninada batendo-se em renhidas partidas de
futebol; a casa onde eu nasci e o pesado prédio do colégio estão no
ontem. Foi-se a rua do começo da cidade e a cidade virou metrópole
sem início e sem fim. Mas quando eu tinha meus cinco ou seis anos
havia tudo e havia a rua. E foi nela que o Velho-Boca se fez
conhecer aos berros do anúncio do seu "Doce-gelado, queeeem vai
querer?".
E eu quis e nós
quisemos. Quisemos seus picolés alegremente oferecidos, da mesma
forma que quisemos uma infinidade de guloseimas surgidas no seu
rasto de bandeirante do comércio ambulante e bem sucedido.
Vivia-se, então,
a época do merxandáisin do grito. Gritava o Boca, gritava o
seu Cruzeta-tá-na-hora, gritavam os anônimos e sujos vendedores de
tripas e os desconhecidos mercadores de peixes. Gritavam e passavam
os doidos da cidade, que eram muitos e corriam atrás da gente,
passavam todos os que queriam, passava a vida, passava o mundo.
Ouço uma
insistente ladainha e acabo emergindo de minhas lucubrações.
Enquanto eu permanecera em profundo devaneio, os amigos do defunto
haviam iniciado a tirada do terço. A cadenciada cantilena, repetida
e repetida dezenas de vezes, não me anima a participar da oferenda
religiosa e, de súbito, vejo-me frente ao Velho-Boca.
Deliberadamente fecho olhos e ouvidos ao presente e permaneço no
antes. No antes do comércio das chegadinhas, quando o extinto
de agora ainda atravessava muito vivo a minha rua, levando à cabeça
sua caixa de sorvetes - só depois, por ocasião de meus doze ou treze
anos, ele se bande¬aria para as chegadinhas,
comercializando-as ao toque encantado do triângulo.
- Copinho ou
picolé? - ele perguntava.
Eu verificava
escrupulosamente meus minguados tostões e optava pelo que desse.
Assim, o Velho-Boca, àquela época bem mais jovem, porém nunca
Jovem-Boca, foi ficando meu amigo. Punha o copinho mais cheio, uma
mistura de sabores, fiava-me um picolé. Tudo isso, indiferente se
meu bolso seria capaz de saldar a dívida das comilanças. Eu era o
"doutorzinho" e ele, formalmente, o "seu Zé". Claro, eu não conhecia
o apelido do homem, então, e o "seu Zé" saía espontâneo; por uma
questão de respeito natural ao mais idoso, ao que me atendia
obsequioso e me dispensava seu sorriso de dentes de ouro e
desinteressada amizade.
Dessa forma,
cada um a seu modo, fomos crescendo e atravessando os tempos. Eu
mudei de casa, subi em altura e conhecimento, ganhei minha primeira
bicicleta, acompanhei as inúmeras procissões teimosamente cumpridas
nas datas certas e mais compridas a cada ano, repletas de penitentes
com pedras na cabeça e enxameadas de anjinhos azuis escanchados no
pescoço ou no colo dos pais, e seguidas pela lutuosa banda de música
da meganha puxando pungentes dobrados em homenagem ao santo e ao
bispo.
"Sua Santidade",
como éramos obrigados a dizer, desfilava impecavelmente paramentado
numa batina colorida e, abrigado sob o pálio, insolentemente
refletindo os raios do sol no bruto anelão de pedra arroxeada
enfiado no dedo cutucador da mão abençoadora, nos convocava à
decência, ao temor à Divina Providência e à obrigação de sermos
eternamente obedientes à Igreja Romana. E mesmo enfeitado desse
jeito, num atravancado de tantos badulaques e penduricalhos, o bicho
ia andando e balançando a cabeça ao feitio de vaca-de-presépio!
Logo atrás dele,
da eclesiástica autoridade, por seu perfil de socó, à boca miúda
chamado de "envelope aéreo", vinham o governador e o prefeito, os
edis! - aprendi a palavra acompanhando as procissões -os opados e
ricos senhores da Ordem Terceira de algum santo que não me lembro e,
por último, depois da banda da meganha, o povão, o canelau. Aí,
justamente aí, íamos nós e o Boca. Contritos o quanto pudéssemos,
nós íamos namorando as menininhas e o Boca, aproveitando-se das
paradas à frente das casas previamente escolhidas para as bênçãos e
a descansada dos carregadores do pesado andor do santo reverenciado,
ia tratando de vender seus doces-gelados. Em cada parada, às custas
dos donos das casas premiadas, esmeradas na apresentação, a
ostentação dos parapeitos das janelas recobertas com finíssimas
rendas e bordados: uma beleza de se ver!
E no inopinado
das más surpresas o Velho-Boca desapareceu. Pensamos que o homem
havia sofrido um acidente, fora atropelado ou morrido; enfim, algo
trágico sobreviera-lhe. Felizmente, enganamo-nos todos. Ao Boca
ocorrera apenas uma ocasional débâcle no seu ramo de negócios
até então firme e suadamente estabelecido. A entrada de grandes
empresas no mundo dos gelados rompera seu monopólio e abalara suas
vendas. A novidade atacou célere e o sorveteiro meu amigo perdera a
freguesia.
Mas, sem
tardança, ele retornou à luta arregimentando competente arma e nova
guloseima: o toque do triângulo apregoando as chegadinhas.
Tiro e queda. Seu Boca passou a viver oferecendo o novo produto, os
sequilhos, mantendo a mesma filosofia de trabalho, as mesmas
amizades e passando pelos mesmos lugares. E venceu. Até pessoas
completamente alheias ao antigo produto, os sorvetes, tornaram-se
consumidoras dos finos cones sequinhos e estalantes às mordidas.
Do séquito de
recém-conquistados fregue¬ses, nem um misterioso inglês,
especulativamente controlado à distância pela vizinhança ansiosa e
bisbilhotante à presença do insular personagem na nordes¬tina
cidade, escaparia de se tornar contumaz comprador da delicada
iguaria do Boca. Mister Riu (certamente Hill, desconfio, é
mais provável), como se chamava o súdito do rei - a atual rainha
ainda não havia assumido -, teria descoberto o inigualável sabor das
chegadinhas, degustando-as no chá-das-cinco; no caso de
mister Riu tomado em hora mais avançada, às seis e um pouquinho,
após sua vinda do serviço febrilmente pesquisado e jamais atingido
pelos curiosos.
Depois
escoaram-se os anos, eu continuei a vingar e acabei entrando na
faculdade. Foram anos em que a cidade recebeu miríades de migrantes
enxotados dos campos por inclementes, rotineiras e duradouras
estiagens, começou a inchar, expandir-se e desaforadamente invadiu o
leste, o oeste e o sul. O norte escapou da mania de grandeza e da
especulação imobiliária por ser, afortunadamente, domínio do mar.
Com tudo isso
acontecendo, seu Boca manteve-se frutificando. Ora das
chegadinhas, ora aproveitando-se de uma recidiva no consumo dos
açucarados pirulitos por ele levados espetados numa tábua
equilibrada sobre uma vara e embrulhadinhos um a um. E mudando o
produto ele trocava seu grito de guerra. Do "Doce-gelado, queeeeeem
vai querer?", passara ao suave e ritmado toque do triangular
instrumento de aço, para finalmente nos apresentar algo novo e
baritonalmente cantado: "Olha o piiirulito, piiiii-irulito,
piiirulito."
Vejo-me
interrompido.
- Um cafezinho,
doutor? - perguntam-me.
Desse jeito,
acordam-me, bloqueiam minhas divagações e, alheado e aborrecido,
retorno ao velório.
As flores estão
murchando rapidamente e resol¬o arriscar uma visada no falecido, no
corpo do Velho- Boca. Comprovo, ele não mudou e, parece-me, a
qualquer instante vai se levantar. Dorme ou finge que está morto,
penso, enquanto olho a plácida face estampada, os lábios levemente
entreabertos e as grandes mãos ásperas e nodulosas. Permaneço
estacado, antevendo minha exasperante esperança esvaecer-se, e, é
óbvio, nenhum mínimo movimento vem alterar a posição do ex-ágil
ambulante. Estivesse vivo não continuaria tão duro e muito menos
deixaria, como lhe era peculiar, de comunicar-se comigo, o
"doutorzinho", no seu linguajar, nas raras vezes em que antes vim
aqui.
É, aqui onde
estou e onde viria um dia encontrá-lo doente. Já eu na profissão,
apesar de somente quase-médico, enquanto ele, meio bambo das pernas,
insistia na pirulitagem. Eu morando noutra rua e noutro bairro,
atacando-me a novas amizades e mais vivido, ele teimoso e repetente
em mercadejar os doces espetadinhos nos palitos, e percorrendo seus
ziguezagueantes caminhos de dantes.
Surge uma
desarrazoada movimentação, frenético arrastar de pés, e termino
sabendo: é hora da despedida e os familiares aprestam-se a fechar o
caixão-morada-final do "seu Zé", ouço dizerem; do Velho-Boca, para
mim. Por uma fração de tempo, infinitamente pequena, sonho em
desvendar o derradeiro enigma, perguntar o verdadeiro nome do meu
amigo. Para quê?, interrogo-me e descubro-me sem justificativa,
sequer uma. Desisto e aceito: ficará sendo, pela eternidade, o Velho-Boca.
Infelizmente sou
lembrado. Múltiplos rostos súplices parecem esperar que eu avance,
faça um gesto, fale. Mantenho-me em silêncio, mudo; desanimo-me de
ajudá-los na fúnebre tarefa e permito aos menos afeitos às
lembranças o amargo trabalho. Escuto, entretanto, um "Chama o
doutor", e imagino o receio do encarregado de me convocar.
É impossível
fugir ao apelo e me levanto, apresento-me. Tomo uma das alças
propositadamente livre e ao meu lado e cumpro a sina: levo à
sepultura mais um pouquinho de minha infância.
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