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José Nêumanne Pinto

 

A mineira Adélia Prado, poesia e prosa com fé no chão
 

Impressionado com a maestria de uma senhora de Divinópolis – “um fenômeno poético”, disse ele –, Carlos Drummond de Andrade indicou-a a um editor. Nascia então para o público um dos grande nomes da poesia brasileira, cujo talento é mais um vez posto à disposição do leitor brasileiro em dois novos livros da autora lançados agora pela Editora Siciliano
 

 

Por José Nêumanne
in Jornal da Tarde, SP, Brasil
17.04.1999


 

Na poesia brasileira, Adélia Prado foi uma aparição. Uma súbita e bela aparição!

Seu editor, o mesmo que agora edita Oráculos de Maio (143 págs., R$ 15,00) e Manuscritos de Felipa (163 págs., R$ 17,00) na Editora Siciliano, Pedro Paulo de Sena Madureira, trabalhava, então, na Imago. Lembra-se hoje, como se tivesse sido ontem: na noite de autógrafos do livro Contato, de outro grande nome feminino da poesia brasileira, Marly de Oliveira, encontrou-se com o poeta Carlos Drummond de Andrade. Ao se despedir, o poeta falou-lhe de uma senhora de Divinópolis, que lhe mandara uns originais. “É um fenômeno poético”, pontificou.

A Imago funcionava numa sala anexa ao consultório do dono, o psicanalista Jayme Salomão. No dia seguinte, ao chegar ao trabalho, o encarregado da seleção dos títulos literários da editora encontrou os originais de Bagagem, acompanhados de um bilhete de próprio punho daquele que era considerado o símbolo vivo da poesia brasileira, à época. Pedro ainda se lembra de haver lido os poemas de um fôlego só.

Eram textos impregnados de religiosidade cristã em todas as linhas. Mas a fé que transbordava dos poemas em nada era semelhante à crença torturada e complexa de outro católico e mineiro, o modernista Murilo Mendes. A poesia de Adélia transbordava de uma comovente felicidade simples, surgida do fazer cotidiano (foi ela quem acabou de escrever “a rotina perfeita é Deus”). É isso aí: seu catolicismo não é o dos doutores da Igreja, mas dos párocos de aldeia, como aquele personagem de As Chaves do Reino, de Cronin.

O cristianismo em Adélia não é um experimento metafísico, mas uma vivência cotidiana, doméstica. Uma poesia, perdoem o trocadilho, de fé no chão. Ela pratica sua crença religiosa à mesa, mas também na cama. Logo em seu primeiro livro, Pedro Paulo, ex-monge beneditino, portanto intelectual por excelência et pour cause antípoda na abordagem da fé cristã, encontrou uma força vital brotada do sexo, semelhante ao êxtase de grandes místicos, como São João da Cruz, que, aliás, como Honoré de Balzac e Chico Buarque de Holanda, tinha uma enorme sensibilidade para entender a mulher, como demonstra em seu “Cântico Espiritual”: “Ali me deu o seio / ensinando-me a ciência saborosa / e me dei sem receio / na entrega generosa / e ali mesmo prometi ser sua esposa.”

Essa (con)fusão entre o gozo carnal e o êxtase espiritual (cuja realização material é a estátua de Santa Teresa D’Ávila por Bernini em Roma) se fazia presente no livro da estreante, uma bela mulher na flor dos 40 e em plena vivência do sacramento matrimonial com José de Freitas. Essa característica ainda permeia sua obra, como demonstra em “Neurolingüística”: “Quando ele me disse / ô linda, / pareces uma rainha, / fui a cúmice do ápice, / mas segurei meu desmaio.”

O editor sentiu que a forte pulsação da vida real naquela poesia transcendia seu valor semântico, aproximando a mineira de Divinópolis mais da purificação pela proximidade do pecado, que marca a poesia do padre inglês Gerard Manley Hopkins do que no esteticismo (ainda que magnífico) da freira mexicana Sóror Juana Inês da Cruz. Tratou, então, de telefonar para a Autora e assegurar a exclusividade, antes que algum aventureiro tentasse dela lançar mão. Nem esperou reunir-se com o patrão para discar os números anotados pela letra caprichosa do Autor de O padre e a moça. Antes mesmo de o dono da Imago ficar sabendo da auspiciosa estréia, Adélia já estava comprometida com ele.

Adélia foi recebida no Rio de 1976 como convinha a um fenômeno literário descoberto por Drummond.

O ex-presidente Juscelino Kubitscheck compareceu ao lançamento de Bagagem. A estreante estava lá autografando um exemplar qualquer, quando uma mão deformada de mulher pousou sobre a sua. “Sou Clarice”, sussurrou a voz grave da dona da mão queimada. Reconhecendo a Lispector, cuja literatura tanto admirava, Adélia Prado tomou aquela mão salvada do incêndio, beijou-a e a pôs de encontro à face louçã. Depois, seria recebida na casa do descobridor com a presença de sua mulher Dolores – coisa rara.

Agora, às vésperas do Salão do Livro do Rio, onde vai lançar seus novos livros, Adélia produz uma obra poética que a coloca na crista da onda literária brasileira. Ao ler as provas de Oráculos de Maio, tive sensação semelhante (guardando-se evidentemente as devidas proporções) dos pastores de Fátima, que viram a Virgem – o impacto epifânico.

Começo pela epifania, porque esta talvez seja a manifestação de fé mais próxima da poesia: o mundo imerso em trevas, um relâmpago iluminando tudo de repente, a sensação de ter visto tudo num átimo e um novo mergulho na escuridão. Repare, caro leitor, como ela iniciou o poema “Nossa Senhora das Flores: “Acostuma teus olhos ao negrume do pátio / e olha na direção onde ao meio-dia / cintilava o jardim.”

Em “Viação São Cristóvão”, Adélia escreveu: “Não quero morrer nunca, / porque temo perder o que desta janela / se desdobra em tesouros.” Os versos finais de “O intenso brilho” são mais explícitos: “antes que eu retorne / ao dia pleno, / à semi-escuridão.” Os de “Exercício espiritual”, ainda mais: “Quero ver o Pai, insisto, / roga a Teu Filho que me mostre o Pai.” Em “Sesta com flores”, ela descreveu: “Os galos sabem, / cantam fora de hora / querendo apressar o dia, / tem deus, tem deus, tem deus / gritam os recém-nascidos / e as dálias / com seu cheiro de morte e virgindade.”

A imagem que me veio a cabeça ao ler estes belos versos foi a dos céus diáfanos das manhãs dos quadros de santos, particularmente das reproduções populares do Coração de Maria, a Virgem com o peito aberto e o coração de mãe exposto. “Quando abri a janela, vi-a, / como nunca a vira, / constelada, / os botões, / alguns já com o rosa-pálido / espiando entre as sépalas, / jóias vivas em pencas”, ela registrou, em “Meditação à beira de um poema.”

Dona de casa mineira, Adélia é eucarística por excelência. A comida está presente em sua poesia desde sempre. Já no primeiro poema de seu mais recente livro, “O poeta ficou cansado”, ela apresenta armas: “Ó Deus, / me deixa trabalhar na cozinha, / nem vendedor nem escrivão, / me deixa fazer Teu pão. / Filha, diz-me o Senhor, / eu só como palavras.” “É pão de mirra, / come”; “louvai a Deus e reparti a côdea”; “Bate um grande desejo / de torresmos”; “Uma vez fizemos piquenique, / ela fez bolas de carne / pra gente comer com pão”; “Comi em frente da televisão / sem usar faca / e repeti o prato, / como os caminhoneiros que falam de boca cheia / e vi um programa até o fim” – é vasto o refeitório na poética de Adélia.

Mas sua eucaristia não se limita ao rito, à liturgia, ao sentido mnemônico que Jesus Cristo deu a sua última ceia. A mineira gulosa, lúbrica e convicta vai às últimas conseqüências, subindo aos céus também pelas catacumbas da escatologia.

Afinal, seu amor por Deus não reconhece limite algum: “Em lama, excremento e secreção suspeitosa, / adoro-Vos, amo-Vos sobre todas as coisas.” Seu poema “Paixão de Cristo” é um antológico exemplo de como leva a fé às últimas conseqüências. Para sentir seu impacto, basta ler-lhe a primeira metade: “Apesar do vaso / que é branco, / de sua louça / que é fina, / lá estão no fundo, / majestáticas, / as que no plural / se convocam: fezes.”

Aqui, o contraste entre o título sublime e a imagem sórdida, descrita sem subterfúgios nem tergiversações, já basta para consagrar o nome da autora desses versos entre os maiores e mais ilustres. Da mesma forma como torna explícito o caráter epifânico da linguagem poética, ela revela na eucaristia exatamente o que há de solene e corriqueiro na vida comum, de gente comum, como ela mesma e seu leitor cativado.

Talvez por isso, ela não se envergonhe da própria felicidade. Ao contrário do padre Hopkins, que queimava seus poemas para eliminar as provas de sua fraqueza ante a sedução sensual demoníaca das palavras, Adélia Prado produz uma poesia confessional, explícita e transparente.

Afinal, sendo leiga, não tem de enfrentar as estruturas rígidas da hierarquia católica, como Sóror Juana Inês da Cruz. Segundo ela mesma, “o mundo é ininteligível, mas é bom”; “e a vida é boa que dói”. A poesia, segundo Adélia Prado, serve para descomplicar o cotidiano complicado: “Tão fácil, um dia depois do outro.”

Para cumprir essa missão, ela pode ser elíptica, ao melhor estilo oswaldiano (como em “Arte”, de apenas dois versos muito curtos: “Das tripas / coração”); ou gaiata, como Ascenso Ferreira (”não como, não falo, não rio, / nem que o Papa se vista de baiana”). É sempre e permanentemente mineira, não uma mineira do pão de queijo, como Itamar Franco e sua patota, mas uma mineira do pão, pão, queijo, queijo, como seu descobridor Drummond. Quem lê um verso como “a obra de minhas mãos / é esta cozinha limpa” percebe logo e com clareza isso tudo. Mas, ao contrário do que ocorre com a obra de 99% dos outros poetas brasileiros em atividade, será impossível encontrar na sua indícios ou sobejos de João Cabral de Melo Neto.

Adélia Prado não tem escolas e, como os cristãos primitivos, não venera ícones, religiosos ou literários. Como concentra sua religiosidade na veneração ao Cristo em pessoa, a seu Pai e à Virgem, sua mãe, não revela preferência por santo algum, embora seja possível encontrar em seus versos referências que a aproximam de São Francisco de Assis, amigo das plantas e dos animais.

De qualquer maneira, não manifesta desapreço à hagiografia popular nem à galeria de intocáveis das letras. O máximo de irreverência a que se permite é quando não admite tergiversar a respeito do caráter místico da rosa, iniciando o poema “Teologal” com a negação ao célebre axioma de Gertrude Stein (”uma rosa é uma rosa é uma rosa”): “Agora é definitivo: / uma rosa é mais que uma rosa.”

Com medo de ser execrado pelo trocadilho infame, posso ir além e dizer que também é definitiva em seu caso a constatação de que a prosa é mais que uma prosa. Prosaica, certamente sua prosa não é, pois, em Manuscritos de Felipa, Adélia Prado situa-se permanentemente na vizinhança da poesia. A romancista também é religiosa e, da mesma forma como no verso, seu texto é sensível, arguto e microscópico na observação exaustiva da paisagem humana.

Sua poesia é enganosamente prosaica. O leitor superficial não sentirá falta de sua divisão em versos, sempre muito descritivos e de um ritmo imperceptível e sutil. Da mesma forma, sua prosa é ilusoriamente poética: ela não descreve, no sentido clássico de repetir o fluxo do tempo como se segue a correnteza de um rio, mas reproduz flashes de instantes. Estes compõem uma espécie de colcha de retalhos de uma forma tão heterodoxa que, também no romance, não é fácil pesquisar o DNA literário da Autora.

Eis um trecho típico: “Menti a Teodoro sobre ir à livraria, meia mentira, porque até fui, queria mesmo é passar no judeu pela milionésima vez e pedir pra ver o que ele tinha. Medalhões de prata, gargantilhas, regateando comigo mesmo: só a corrente. Não, a corrente e o anel. Não, só o anel e o pingente. Pensei em desistir, mas tenho prática, ia ficar trincando de saudade da medalha, criei coragem e deixei meio salário-mínimo lá, sem remorso, uma verdadeira novidade.”

O crítico apressado encontrará pegadas do estilo da Lispector, mas, de fato ela admira, mas não a imita, ao contrário do que, mentirosa e traiçoeiramente, confessa, numa pequena frase perdida no meio do texto. Até não será exagerado dizer que a autora de Manuscritos de Felipa, de certa forma, seria uma espécie de anti-Clarice. Como no de Hemingway, mais importante do que o texto em Adélia é o subtexto, o oculto debaixo da frase, que sempre descreve algo aparentemente irrelevante.

Talvez não seja muito arriscado dizer que Clarice escrevia de dentro para fora. Ela mesma disse que escrevia como se costurasse – só que costura para dentro, e não para fora. Sim, pois, em sua literatura, o mundo externo é um espelho de seu interior. Poucas vezes, um escritor, em qualquer língua, se expôs de forma tão completa, tão direta e tão contundente como ela o fazia, em cada sentença.

Adélia, ao contrário, escreve como se preparasse permanentemente seu interior para receber a bênção da realidade, seja ela o produto sujo e fétido das entranhas ( “Vômitos são protestos”) ou o saldo magnífico da observação do belo (“A beleza cresce quando a entendo? Teodoro acha que sim”). Manuscritos de Felipa prova isso.

Como em sua poesia, em sua prosa o real é uma revelação. Horrenda ou bela, pouco importa, mas uma revelação. A Autora não espera manifestações da interioridade para registrá-la, pois é evangélica. Nada nela é simbólico, tudo manifesta o real. Lembrem-se que, na Eucaristia, a hóstia é (não representa) o corpo de Jesus e o vinho bebido pelo celebrante, seu sangue. Por isso, os antigos gregos não entendiam o Apóstolo São Paulo (que o poeta Bruno Tolentino citou ao escrever sobre Adélia na revista Bravo): na antigüidade politeísta tudo é mítico, simbólico, mas o fariseuzinho de Tarso lhes apresentou em suas epístolas a troca da representação pelo realismo judaico-cristão.

Na fé no chão da literatura de Adélia, o primado do simbólico do cristianismo do grande poeta Jorge de Lima, por exemplo, é substituído pelo primado do real. Ela é submissa à manifestação divina no real e imediato. O que mais deslumbra no que ela escreve é o escândalo da realidade expresso no sacramento.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de Solos do Silêncio - Poesia Reunida
 

 

Adélia Prado

Adélia Prado

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Nauro Machado