José Nêumanne Pinto
Cultua-se
em demasia a palavra. A precisão e a técnica do verso
passaram a ser tão venerados que parece sobrar cada vez menos
espaço para a poesia em si mesma - ou seja, o autêntico
laboratório da liberdade da linguagem que é. Em plena festa
da
comemoração de seu 60o aniversário, o poeta e agitador
cultural pernambucano Jomard Muniz de
Britto detectou esse fenômeno com grande precisão, em
seu poema-manifesto, cantado no recém-lançado CD Pop
Filosofia, "O Poeta e suas doenças". O texto
inteiro fala do fenômeno, mas há um verso que destaco para
resumir o sentimento que acabo de descrever: "Nossos
poetas estão adoecendo de erudição".
Sem
querer interferir no poema jomardiano, mas já inteferindo,
talvez seja o caso de dizer que nossos poetas estão adoecendo
de "cabralismo agudo". Não se trata de um tumor
maligno, mas a doença é transmissível. Se é! Afinal de
contas, João Cabral de Mello Neto é
um grande poeta, o maior entre os vivos, um dos maiores de
todos os tempos, deixando de lado a simplificação grosseira
desse tipo de comparação. Nada mais natural que ele exerça
sua positiva influência sobre os pósteros. Mas, na verdade,
o atual exagero na busca da exatidão tem, de alguma maneira,
engessado a prática poética brasileira contemporânea.
É
por isso, e por muitas outras razões, que se deve saudar, com
entusiasmo, a entrada em cena de um poeta cinqüentão e
estreante, nascido no Ceará e morador na Bahia. José
Francisco Soares Feitosa entra na
poesia pelo cômodo oposto à sala onde João Cabral
pontifica. Eis enfim, um poeta que não se contenta em ser só
epígono do mestre-mor.
Terá
ele entrado pela porta da cozinha, com seus cheiros e sons
característicos? É possível. Seu verso é mesmo liberto e
sonoro. Ele é "um poeta nordestino", como o saudou Wilson
Martins, em letra de forma - um ser surgido à luz do Sol,
o que endurece a lama rachada do solo, não o que beija o sal
das águas marinhas. Assim o é o autor desta estrofe de
"Antífona", que o grande crítico exilado na
Curitiba do vampiro Trevisan classificou como sendo "uma
das mais belas odes jamais escritas em língua
portuguesa": "Por que era que mestre Sol/não botava
todos os dias/aquela roupa nova,/da feira, talvez fosse,/da
missa,/da festa de domingo?"
Mas
ele não é apenas um poeta nordestino, como o místico e
ritmado Jorge de Lima, o falso
simples Manoel Bandeira (na verdade,
um artesão minucioso) ou o debochado Ascenso
Ferreira. Também consegue ser lírico, como o foi o
espanhol Antonio Machado, em "Femina": "Não
lavei o corpo/pois tinha os rastros/dos teus gestos;/tinha
também, o meu corpo,/a sagrada profanação/do teu olhar/que
não lavei".
Aliás,
convém parar por aqui, pois não se deve sequer limitar
Soares Feitosa às 254 páginas de psi a penúltima, brochura
com o resumo aleatório de seu livro verdadeiro Réquiem em
Sol da Tarde, de 750 páginas, todo composto no computador e
do qual o autor só imprimiu, domesticamente, 257 exemplares
para distribuir entre alguns eleitos.
O
baiano do Ceará Soares Feitosa é um militante da poesia
contemporânea, mantendo, a duras penas, uma home page na
Internet com mais de mil poetas brasileiros citados, entre
consagrados e estreantes. Assim, ele se fez transmissor
da boa saúde da poesia. Embora seja, ele mesmo, um erudito,
este poeta é dos bons, livre ("Ninguém jamais se
lhe amonte/ou lhe bote cangalha,/peia-de-pé ou cabresto
curto"), solto e, sobretudo, são, por não ser portador
da doença insidiosa da erudição.
Seu
Chico Feitosa,
Existe
neste poema (Nunca
direi que te amo) uma
comunhão absoluta com a noite alta em que ele foi escrito.
Trata-se de um texto noturno, embora nunca soturno. No sentido
de seu brilho de vagalumes e estrelas e das supresas que as
trevas costumam esconder, só permitindo se vislumbrar o que a
lua mostra. Por isso,
mantenha sempre as indicações da hora e da data em que o
poema foi gestado. Num gesto de amor puro, coito com palavras.
José
Nêumanne Pinto - poeta e jornalista
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