José Nêumanne

 
 

 

Fundação do pai
 

Desembarquei na vida a bordo de teu corpo. Em algum lugar incerto do passado mais remoto, antes de ser este pedaço de carne inquieto e buliçoso, intranqüilo e belicoso, fui um naco de algum sonho teu. Eras meu elo com o passado, o cordão umbilical que me ligava às origens do planeta e das estrelas.
Perdi a memória ainda no útero de tua amada, pai. Não me lembro mais das priscas eras em que navegava em teus neurônios. Nem sei das vezes sem conta em que fui engendrado na cerveja que bebias e fui expelido no trovão de teus arrotos e reincorporado a ti no ar fresco da manhã, que sorvias. Ah, eu não me lembro mais, mas sei que estava lá. Antes de estar contido na gosma que expeliste num espasmo de amor sem fim e de prazer sem início, eu era um tique teu, um tico teu, um taco teu, existindo plenamente na minha inexistência. Sim, inexistente ainda, eu existia em ti, era teus planos, cometi teus enganos, me dissolvi em teu pranto, me perdi em teus passos.
Tu não me sabias ainda, mas eu já era teu, então, quando ainda nem havia. Era o ainda não, mas já era, sim, o prolongamento de tua vida, a seqüência de tua morte, o produto de teu orgasmo. Eu não te via, então, meu pai, naquele tempo, o tempo em que eras apenas filho. De certa forma, um filho meu, que havia chegado antes de mim. Pois, sim, eras fruto de meu ventre estéril, única testemunha, então, de meu futuro. Não havia ainda eu, era impróprio, assim, chamarmo-nos de nós e, no entanto,
eu já era o sentido de tua existência. Um entre tantos. Um sentido entre todos os significados que uma vida pode ter, para que a morte não venha a ser apenas o vazio, como sabia Otávio Augusto, imperador e soldado, e escreveu outro Octavio, o Paz, guerreiro da luz. 
Quando desembarcaste da matéria, foi aí que percebi, eu mesmo, que antes nada havia percebido, que eu fui tu, antes de ser eu mesmo. Só que não me multipliquei, eu mesmo, em tantos, como tu fizeste - tu mesmo, eu e todos os meus irmãos. Tu mesmo, eu e os filhos. Eu mesmo, tu e os filhos de meus filhos, os que virão e os que ficarão apenas no projeto, no
desenho caprichoso da vida, esta vida de caprichos.
Quando te fizeste matéria, na consubstanciação definitiva, nesta
comunhão mineral da origem e do perecimento, foi de repente que me senti só. Eu, sozinho, e tu, também sozinho. Tu, mineral a meu lado, teu rosto imperturbável, no rictus definitivo. Eu, animal a teu lado, eu, mais morto, e tu, mais vivo do que nunca. Tu, vivo em mim, manifestando-te no oxigênio que eu inspirava. Eu, morto em ti, tornado fluido, o gás carbônico, que nem mais expiravas.
Naquele momento, veio-me uma imagem da infância. Andávamos nós dois - e, então, já podia usar este pronome pessoal direto plural, pois existíamos mesmo, éramos matéria em movimento, almas em harmonia -, pisávamos a calçada de pedras, como se fosse um tapete. Seguravas-me pela palma da
mão. Vinha dela uma tepidez de útero, um calor vital, uma temperatura profana, como só a cumplicidade incestuosa daquele instante poderia propiciar. Tu pisavas nos ladrilhos, distraído, e eu prestava atenção em tudo. O mundo, em meu redor, ganhava uma ordem, capaz de superar qualquer caos, um caos qualquer. O mundo em meu redor não admitia desordem alguma, nem a dos teus passos desiguais, nem a da luz difusa do
sol, esmagando letras pintadas em placas de rua.
E, de repente, fez-se o caos, no instante exato, no qual a mão que me guiava se soltou, me soltou. Pousou em mim a sombra fria de Hal, o computador enlouquecido de Arthur Clarke, tornado imagem por Sanley
Kubrick. Sim, a imagem de Hal, a máquina doida, na aurora do século 21.Tu não te lembrarás de Hal, personagem de Clarke e Kubrick. Não leste o livro. Não viste o filme. Li o livro por ti. Vi o filme por ti. Mas me soltaste, como Hal. Mergulhei no vazio do caos, no mundo desordenado que meus filhos, nossos filhos, herdarão. Os meus, os teus, os nossos.
Perdi-me de Neanderthal. Faltei ao encontro com Cro Magnon. Sem ti, como chegar ao paleolítico? Hoje, sem ti, ou seja, sem mim mesmo, sem o eu, que existia antes de existir, o passado é mais misterioso do que pode ser o futuro. O passado é um poço escuro, sem água. Um poço vazio. Sem ti, meu pai, gênese e deuteronômio, fui deserdado da genética.
E, agora, tua inexistência é que existe em mim. Sísifo, dobro-me ao peso inexorável da pedra de viver, da pedra de rolar, da pedra de deitar a cabeça para dormir, encostar a cabeça para chorar. Encosta tua cabecinha
no meu ombro e chora! Sinto-me um estranho médium, te transportando em minhas veias adocicadas, minhas veias erodidas pelo açúcar, a usina de tua herança. Assim como, antes de eu existir, tu me transportavas nas tuas, também açucaradas. Agora, sim, eu carrego, sem ônus, o peso leve de tua inexistência. És o sal de minhas lágrimas, o timbre de minha voz,
o ritmo de minhas gargalhadas. Testemunhas meus erros, acompanhas meus passos, os nossos, te perdes nos becos escuros de minhas perplexidades, as nossas.
Encaras-me sem rancor. Não vês, mas as maçãs de meu rosto estão dependuradas nos galhos de tua macieira, no Éden perdido. Não ouves, mas meus gritos de dor percutem nos tambores de tuas angústias. Se gozo, ris. Se gemo, soluças. Quando me resfrio, espirras. Agora, que não estás mais aqui, és a mais acabada presença de minha ausência. Quando chegaste, eu não te esperava. E, no entanto, de certa forma, de todas as formas, das formas mais primitivas, eu cheguei contigo, desci contigo das trompas de minha avó, dos canais lacrimais de
minha avó, dos braços alvos de minha avó, do sorriso furtivo de minha avó. Eu cheguei contigo, eu chorei contigo, eu chamei contigo. Chegaste e eu vinha chegando, esboço inacabado, esbulho tramado, esforço clamado.
Berraste e este foi meu berro mais primevo, meu primeiro berro, meu berro primal. Se Freud não explicasse, Darwin explicava. Choraste, eu berrei. Bebês, os dois, mamamos, fartos, nas tetas de minha avó, tua mãe.
Agora, que não estás mais aqui, sou a mais primitiva ausência de tua presença. Quando cheguei de vez, tu me esperavas. Tu esperavas tua vez. Eu fui a vez que esperavas. Chorei e riste. Berrei e suaste. Quando sorri, aquele riso, um sorriso todo de gengivas, tomaste cachaça com mel de jandaíra, cuspiste no chão e me chamaste de maganão. Beijaste o rosto iluminado de minha mãe, como se ela tivesse parido o menino-deus
naqueles ermos da geografia e da história do Brasil, naqueles capítulos sem número, naqueles textos sem autor. Aí, balbuciei sílabas sem nexo e tua vida ganhou um nexo inesperado. Meu primeiro dente te garantiu a eternidade. A primeira palavra que falei te brindou com a consciência de que até mesmo o infinito não dura para sempre, mas é apenas um lugar incerto, onde se encontram as palarelas na geometria.
Agora, que não estamos mais aqui, somos apenas presenças ausentes ou ausências presentes, já que a ordem dos fatores não altera o produto. O produto, este produto, foste tu, tocando trompete nas tardes emboloradas de calor do sertão distante. Tu, sim, foste produto de teu pai, o sátiro meu avô, o língua de trapo, o boca de sapo. E eu, produto de teu produto, sangue de teu sangue, osso de teu osso, carne de tua carne.
Agora, que tua carne já não cobre mais teus ossos, transpiras pelos meus poros, suas uma velha camiseta do Flamengo, o manto sagrado, que não visita mais minha tia, que não visita mais os estádios de futebol, que não visita mais a sede da banda de música, que não visita mais quem havia de visitar. Percebo-te no espelho, toda manhã. A espuma de barbear descortina o brotar disforme dos pelos sobre meu queixo. Percebo-te no
ângulo do mesmo queixo. Se me irrito, é uma forma de te imitar. Se faço mal feito, um jeito meu de criticar teu perfeccionismo ultrapassado, obsoleto. Minha garganta emite sons, constrói palavras, que já pronunciaste, sem nunca as ter falado.
Sim, senhor, aqui estás, rei de minhas idiossincrasias, começo e fim de meus afetos. Ainda me repreendes, quando dou passos em falso, e me incentivas, quando caminho para frente, como sempre gostaste que eu fizesse. Sinto-o na própria pele.
Quando Dudu morreu, o pai, Toninho, mistura de terno e mau, disse que, com a partida do filho, ele passava a ser mais, a ser dois. Isso também vale para a partida do pai. Quando parte o pai, o filho passa a ser o dobro de si mesmo, o primeiro elo da cadeia, a corda jogada sobre o precipício, o nó górdio, que envolve o pesado fardo de viver. Minha mão, estendida sobre o abismo, é extensão da tua. Minha pele, esticada no curtume, é o mapa de tuas trajetórias, entradas e bandeiras, percursos e
paradas. Quando sigo, arfas. Quando paro, repousas. A ponte, que lançaste sobre o canyon, ainda está lá, rija e flexível, pronta para me amparar, mas só se eu ainda tiver forças para seguir pendurado nela.
Lembro-me do nascimento de meu filho, teu neto, teu filho com açúcar, teu filho dobrado. A enfermeira o exibia. Pela vidraça do berçário, seu rosto encarquilhado fazia uma careta disforme e profana. Mas eu não pensei em meu filho, teu neto, teu filho vezes dois. Pensei, sim, foi em ti, nas noites em que as incertezas da vida roubaram teu sono. Aquele talvez tenha sido o dia mais importante de minha vida incomum, e da nossa comum, que começava ainda ali a viver por ti, pois o bebê, ainda meio melado de placenta doce, me transmitia, em seus esgares, laivos de lucidez sobre este nosso imperdoável, este nosso inexorável exercício de guerrear à sombra, nesta Termópilas de cadáveres empilhados, secando no solo, tradução inexata da falta de sentido de nosso trajeto pelo planeta.
Entre pai e filho não há segredos nem mistérios. Entre pai e filho há uma relação de fundadores. Falamos a língua da gênese. Fundamos lares, cidades, destinos. Somos todos primogênitos, não nos vendemos por um prato de lentilhas. Nós dois, nós três, nós mil, nós milhões - e mais Paul Auster, mais Philip Roth, mais todos aqueles que escreveram sobre ti e sobre mim e sobre nosso filho comum, meu filho, teu neto. Nós todos, os pródigos do mundo, voltamos à casa avoenga e debatemos o destino e a política, a valsa e o fado, a economia e a monotonia, sentados em cadeiras que giram, com o rosto cheio de espuma e o coração gordo de esperança, esquálido de medo, músculo que se contrai e se distrai, carne de abrir e de fechar, chave de viver e de dançar o tango argentino, no cofre do peito.
Estamos congelados, pai, nós, os sem-mistério, os gozados gozosos. Vamos voltar, quando Hal for sucata. Vamos estar aqui novamente, nós dois e o mundo, nós três e as cidades povoadas de pais solteiros e filhos casados, pais vários e filhos únicos - como Aquele que bebeu o fel servido pelo centurião, como Aquele que debateu com os doutores no templo, como Aquele que sabia que eles não sabiam o que faziam. O mundo, este grande deserto de caçulas, será, uma vez mais, um ponto de partida e de parada, nosso porto de desembarque, amanhã, quando, de novo, nossa matéria mineral se tornar orgânica e o calor derreter a gordura de nossos ossos.
Nós estávamos aqui, com os polegares erguidos, a exigir pão e circo, quando Marco Aurélio, o imperador-filósofo, engendrou Cômodo, o monstro, o gladiador. E estaremos rondando por aí, quando mundos novos se dispersarem numa poeira de estrelas, que se fundirem num gás, engendrando novas galáxias e um universo novinho em folha, novinho em fé, novinho em falhas. Presenciamos Paulo, o apóstolo, parir a Europa inteira - aquele judeuzinho quase sírio e helenizado, cidadão do império, cidadão do mundo, cidadão da Ásia Menor, a criar toda uma
civilização. E não faltaremos ao encontro marcado com o futuro - nós, que voltaremos a inexistir, exatamente por termos existido, já que a única condição para a inexistência é haver existido. Cada qual na hora de cada qual: Guilherme Tell espetando a maçã na ponta da seta; Heitor defendendo a ara, a tribo, a cidade; Abraão conduzindo Isaac pela mão ao altar dos  acrifícios; o pai da fábula matando um boi para alimentar o rebento estróina de volta ao lar.
Chegaste para fundar destinos: chegamos. E partiste, partimos - eu mesmo fundado, tu mesmo fundando, ambos fundadores de nós próprios e dos outros, o inferno, o inverno de nossas vis desesperanças. Freqüentas meus sonhos, porque velas meu sono. 

Não descansas, enquanto eu mesmo velar. Adeus, pai. Até a volta.

 

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  03  de Maio  de 1998