Antonio Carlos Secchin, poeta,
crítico, membro da Academia Brasileira de Letras, está prestando um
serviço inestimável à memória de seu colega na poesia e conterrâneo
romântico - ambos nasceram no Rio - Fagundes Varela. Vítima do pouco
caso dos críticos e historiadores, por conta de um capricho
cronológico (sua obra ficou espremida entre o fulgor dos
antecessores Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo e Gonçalves Dias
e o genial clamor de seu sucessor Castro Alves), este passou a
pairar num limbo em que a glória alheia ofuscou o próprio brilho,
fazendo com que os desavisados o julgassem de pouca intensidade. No
entanto, seria uma injustiça reduzir o artífice do Cântico do
Calvário, que nos habituamos a recitar nas festas escolares, ler nas
antologias ginasiais e analisar sob as ordens severas dos
professores de português, à condição de mero versejador de salões e
tribuno panfletário, que recorria aos versos para melhor pregar suas
idéias politicas, antecipando o baiano Antônio Frederico de Castro
Alves na labuta abolicionista.
O que Secchin acaba de fazer é digno
de nota. Convidado por Edla Von Steen para selecionar e apresentar
uma antologia de seus poemas para a coleção Melhores poemas, da
Global Editora, o poeta e crítico carioca partiu do pressuposto
oposto, ao “perceber na sua poesia a mais complexa construção
literária do romantismo”. E descobriu no maior equívoco atribuído
pelos críticos a Varela - o afã de não deixar tema algum com que
tropeçasse fora de seus versos - a virtude maior de corporificar
nesses excessos (“em grau máximo”, como destaca na original e
provocativa introdução que escreveu) “a tensão entre a vivência
inexorável da precariedade e a sede inextinguível do absoluto”.
Os escravos e o mestiço - Para dar ao
leitor conhecimento, de forma organizada e clara, da variedade
espantosa, mas nem por isso anárquica, do estro de Varela, Secchin
não escolheu a trilha batida da seqüência cronológica, optando por
situar os poemas que selecionou em oito temas recorrentes: a musa
cívica, quem sou?, em busca do Cristo, em nome do amor, cidade
versus campo, paisagens, a poesia no espelho, a morte e depois.
No primeiro item, destaque-se seu
libelo contra a ignomínia escravagista (“A escravidão não cinge-se
unicamente aos ferros! / Há uma inda mais negra, a escravidão dos
erros!”, em Aspirações), antecipando a pregação condoreira de Castro
Alves, com uma lucidez digna de ser lavrada nos melhores discursos
de Joaquim Nabuco. E a saudação entusiástica ao mestiço mexicano
Benito Juarez, símbolo do sonho da liberdade e da autonomia do povo
(“Juarez! Juarez! em toda a parte / Teu espírito vaga!...”, em
Versos Soltos) soa premonitória às palavras de ordem da revolta que
eclodiu um século após sua morte em lemas como “É proibido proibir”
ou, mais diretamente ainda, “Elvis vive”. O precursor de Castro
Alves e dos jovens zangados dos anos 60, também foi beatnic
avant-la-lettre vagando por aí ao léu, sempre com uma garrafa de
cachaça e sem profissão definida (a vida toda foi sustentado pelo
pai). Poucos colegas puderam como ele vivenciar a inadaptação
completa a uma rotina burguesa e levar às últimas conseqüências a
vocação “maldita” da poesia.
A musa no espelho - Infeliz nos dois
casamentos - com Alice Luande, filha do dono de um circo, e com a
prima Belisária -, Varela viu dois de seus filhos morrerem antes de
completarem um ano de idade. E teve na própria vida motivos para
decretar: “O exilado está só por toda a parte!”, no último verso de
cada estrofe de O exilado, um dos poemas selecionados por Secchin
entre os que compõem a significativa parte auto-reflexiva de sua
obra. Em outro da mesma série, Noturno, o vate comparou a própria
alma a uma “douda que dança / Sem mesmo guardar lembrança / Do
cancro que rói-lhe o seio!”
Há, também, em sua obra lírica uma
pureza de cristal sem jaça, refletida em versos como os desta
estrofe de Estâncias: “O que eu adoro em ti, ouve, é tu’alma / Pura
como o sorrir de uma criança, / Alheia ao mundo, alheia aos
preconceitos, / Rica de crença, rica de esperança”. E uma enorme
capacidade de calar fundo na emoção do leitor, falando da própria,
como na abertura do pungente Cântico do Calvário, dedicado à memória
do filho morto a 11 de dezembro de 1863 e o mais célebre de todos os
seus poemas. Quem não turvou a voz ao ler ou dizer de cor “Eras na
vida a pomba predileta / Que sobre um mar de angústias conduzia / O
ramo da esperança. / - Eras a estrela / Que entre as névoas do
inverno cintilava”?
Louvados sejam Secchin e a Global por
resgatarem um poeta da altura e da força do romântico Fagundes
Varela nesta era da insensibilidade crônica e do imediatismo
consumista e comodista burguês.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da
Tarde e autor do romance O silêncio do delator.
Fagundes Varela - Melhores poemas - seleção de Antonio Carlos
Secchin, Global Editora, 2005, 240 pp, R$