Jorge Pieiro
A luz da brasa
Luzardo se
remexe no côncavo da rede. Abana-se. E estira o pé em direção à
mancha da parede.
“As moscas devem
estar loucas!”
Homem crente,
dado às orações, Luzardo redescobre as contas certas do terço para
os cinco mistérios, para o credo, para as três ave-marias e para os
dois pai-nossos, até a salve-rainha. Ele, meio moscona, gasta as
contas do terço, catando nesse debulhar uma esperança, que nem ele
sabe precisa. Os dedos compridos de devoto. Ninguém pode discutir
que ele se devota por instinto, como se para acender a luz dos
mistérios, para espantar manchas de escuridão que existem junto
dele.
Seu Manuel e
dona Antônia já são de um tempo antigo. Ossos sob cruzes no alto do
monte. Marina escolhera se destinar. De pronto. Berenice resolvera
atenuar o viver. De antecedência. Só Jeremias ficou, cuidando de
Luzardo, e tratando das feituras da casa e do pouco rebento de
sustento do chão.
De vez se pensa
que Luzardo é doido. Pelos gestos de palavras que ele desenrola para
suas interlocutoras, exatamente aquelas com quem resmunga afobado:
“As moscas devem
estar loucas!”
Às vezes, porém,
Luzardo estagna a água de seu corpo. O pensamento se indecifra...
abafado de silêncio caramujo. A vida tem desses preceitos de
acontecer. A mancha na parede se rende à procissão de formigas,
enquanto as contas do terço se pujam a carrapato no amaranhado de
cabelos do peito de Luzardo. Ele fica tão quieto que é um assombro
naquele vão.
No dia do
destino de Judas Iscariotes, Luzardo se remexe, mais incomodado do
que nunca, no côncavo da rede. Ele se repete. Abana-se.
“As moscas devem
estar loucas!”
E se balança
vertido num estranho incômodo. Sente, porém, que isso é esbarrar na
esperança. Ele acha que é aviso ou chamamento. E ergue-se da rede,
caminha tateando a parede. Sente cheiro de janela e se debruça nela.
E ali, ele completa uma cara de muitos anos, uns vincos se
pronunciam nos cantos da boca.
II
Esperar é ato de
resignação ou desejo. O sol se finca por aquele lado, e a luz propõe
pensamentos. Mas não é luz o que Luzardo vê, é o abafado de terra
que ele sente no cheiro. A luz é só um desejo e ele encara-a,
desconfiando da vida, sem desprender lágrimas. Nem pela luz, nem
pela dor de resignação.
A janela explora
o hálito do mundo. Hálito de capim, de mato, de curral, de
passarinhos riscando a imaginação. Luzardo se ressente de cheiros.
Agora, repito.
Ali ele completa uma cara de muitos anos, uns vincos se pronunciam
nos cantos da boca.
O terço repetido
se ilumina. De vez se pensa que Luzardo é cego e beato. Pelos gestos
de palavras que ele desenrola analisando cada conta do terço, o
movimento dos olhos para a luz que só há ali debruçada na janela. O
homem crente não precisa de olhos para ter fé. Estranhamente, as
moscas já não estão tão loucas...
Seu Manuel e
dona Antônia já são de um tempo antigo. Ossos sob cruzes no alto do
monte. Marina escolhera se destinar. De pronto. Berenice resolvera
atenuar o viver. De antecedência. Só Jeremias ficou, cuidando de
Luzardo, e tratando das feituras da casa e do pouco rebento de
sustento do chão. Mas agora ele não está por perto.
Mesmo assim,
Luzardo começa a pensar em Jeremias cuidando dele, desde pequeno,
Jeremias recebendo a missão ao pé da cama da mãe se indo, Jeremias
chorando e guiando os passos deles pela casa, Jeremias contando
histórias debaixo do pé de tamarindo... Luzardo aperta as contas do
terço e do penar. Sem luz nos olhos, Luzardo rememora Jeremias
explicando o espetáculo dos sapos engolindo brasas, e imagina-os
sumindo, encantando-se mato a dentro, a brasa na barriga, Jeremias
falava dos sapos de luz...
O sorriso vago,
vagando a felicidade, Luzardo ouve uns pássaros da janela. São os
mesmos, todos livres. Resolve que é momento de agir.
Esperar, ato de
desejo, pronto a se realizar, Luzardo, sem Jeremias por perto, sobe
na janela e inclina-se ao sol. Uns raios banham Luzardo. Ele agarra
essa esperança de sentir-se mato a dentro. Estica-se e imagina
engolir o sol. Luzardo de luz...
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