Jorge Pieiro, que iniciou sua
trajetória literária no final dos anos 1980,
é assumidamente um experimentalista. Sua
produção ora irônica, ora nonsense, ora
surreal, é naturalmente malcomportada,
fragmentada e, na maioria das vezes,
hermética, insana.
Bolha de osso, seu oitavo título uma bem
cuidada publicação, com o selo Edição do
Caos, é sedutora já na aparência. A obra se
compõe de 69 contemas, como ele mesmo faz
questão de designar. Contemas porque são
contos curtos, ou ensaios para contos.
Contos que podem também ser considerados
poemas, prosa poética, enfim: contemas. O
gênero é o que menos importa. Importa a
força de sua palavra, sempre lacunosa, mas
extremamente firme, certeira, construtora da
estética do inconcluso. Sim, porque seus
textos iniciam e logo findam sem terminarem
de fato.
A obra começa,
bem a Brás Cubas, com uma ´quase
advertência´ ao leitor: ´Sem iludir nem
permitir falsa luz de obviedades, convém
adverti-lo: prosseguindo, enrede-se e não se
espante com desencantos.
Daltontrevisanizo-me uilconiamente.
Deixe-se, de sentir. Morrer é casulo.
Liberte-se. Torne-se. Nesses textos-contemas
salve-se em espírito de soluços. Procure
tornar-se cúmplice de palavras, sábio. Verá
que natureza e amor se fazem com
inexatidões, perplexidades, alegorias e
prenúncios. Se preferir, desista. Ninguém se
quer mártir em folhas de papel´. O estilo JP
é marcado a partir daí: desafio ao leitor,
equilíbrio na inexatidão, influência
assumida do curitibano Dalton Trevisan,
leituras antigas e permanentes.
Identificação. Também declaradas estão as
leituras de Uilcon Pereira que, no dizer de
Nilto Maciel, é escritor do século XXI, do
futuro, o criador de uma nova literatura. De
fato, JP, como Uilcon, corre um sério risco
de se tornar um de seus insuspeitos
personagens. Foi o Nilto que disse isso do
escritor paulista, comentado que ´em sua
obra ocorre uma sobreposição de realidade,
não se sabendo bem onde começa a ficção,
onde existe a fantasia´. Digo o mesmo de JP.
Seu espírito irônico e corrosivo transplanta
muito da realidade para a ficção. Há
arranjos cáusticos, outros bem-humorados,
homenagens, pequenas vinganças até e há Ele
na transversal de tudo.
No primeiro
contema, ´Prelúdio´, outra influência
escancarada que vai perpassar toda a obra:
Guimarães Rosa. A linguagem elíptica e
inventiva reconta a história de Riobaldo e
Diadorim, mais precisamente, o momento em
que o jagunço descobre que o companheiro,
então morto, por quem estivera apaixonado
era uma mulher: ´Enquanto desviei céu e
olhar, vi longas barbas, era Miguelão
desfazendo de cruz o sinal de ex-pranto.
Vocês, atordoados, correram pelaí. O medo é
uma corredeira. Eu engasguei na cantiga: -
Asas de diabo mais compridas. No alto,
Miguelão beijou Diadorim, enciumando Rosa
entre as pernas de Riobaldo, que no meio de
tanta dor repetiu o gesto´ (p. 13). A
linguagem e o estilo são totalmente roseanos,
como se comprova ainda em: ´Longe dali,
alguém se engoliu de cianureto. Débil.
Cápsula de feliz morte, nele se desvivendo
como sempre´. Note-se que em ´Enquanto
desviei céu e olhar´ é a sonoridade quem
dita o sentido: ´Enquanto desviei seu
olhar´. Rosa todo.
Há histórias
nas histórias. Pode não haver a lógica
tradicional. Ou ela pode estar velada:
´Mania toma seu homem entre mãos, beija-o.
Com o facão parte aquele principal em dois.
E o dá a seus cães. - Isto é o corpo de
nossa última aliança. Anoitece´ (´Beijo de
Anum´) - A mulher decepa o órgão sexual do
marido e celebra a fidelidade então
possível, como se consagrasse um corpo
divino, qual o padre faz com a hóstia no
altar. Assim se fazem todos os textos, sem
digressões, explicações ou... conclusão.
Anoitece. Que conotações partem desse verbo?
Muitas.
Seus
personagens são seres não-felizes,
dilacerados, escassos de existência. É a
dançarina assassinada na boate, é o mendigo
que, na hora do amor, esquece a miséria:
´Primeiro lambe-lhe a coxa alta e olho.
Depois descem de dois até a arena. Íris
conhece aquele chão. Ali ele esquece
vontade, fome, mãos, pés´ (´Kaletzip´); a
prostituta sempre acompanhada e sempre só, o
homem anônimo que anda na contramão do
progresso, a mocinha seduzida, a índia
despersonalizada, o macho devorador,
vampiro, estuprador, o Marquês impotente, o
velho tarado que se aproveita da ausência da
mulher, o necrófilo. Muitas histórias de
sexo contadas com humor, assassinatos e
júris quase imperceptíveis... O sopro
trevisaniano é muito presente, mas a
linguagem de JP, cheia de metáforas (o sexo
da mulher é a azeitona mordida, a hortaliça
viçosa) e subterfúgios, uso consciente das
potencialidades expressivas da língua,
garantem um estilo próprio, ironicamente
lacunoso, emprestando certa safadeza aos
personagens masculinos que muito têm do
Nelsinho d´O Vampiro de Curitiba, embora não
seja essa a obra de Trevisan que mais esteja
presente.