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José Hélder de Souza

 

O estouro do homem faminto

 

Ora se deu, conta dona Zefa numa história difícil de crer, mas que é veraz, jura ela de pés juntos por tudo que lhe é sagrado, ter um homem sem nome morrido espocado no copiar de sua casa, nos Gerais dos Buritis, depois de passar fome e ter comido um sapo.

Era no tempo seco, os cerrados estorricados, já pela secura de agosto, já pelo fogo mesmo que se alastra na macega e vai devorando tudo: as cobras, as muçuranas, as cascavéis, jararacas e jararacuçus que as muçuranas não haviam comido ainda; os gambás, os tiús, os ratos, os guaxinins-da-mão-pelada, até guará e tamanduá, tudo que é inseto, bichos viventes dos descampados dos cerrados e campos. Menos os sapos, bicho tinhoso, fugidor das labaredas, capaz de se esconder numa loca, num socavão quando vêm as línguas de fogo comendo o capim alto e tostando a folhagem dos pequizeiros, sucupiras e jatobás. Passado o fogo, no rescaldo das cinzas ficam os restos das plantas e dos bichos e o gavião, tudo que é versidade deles, fica nos ares, no alto, penerando devagar, catando os restos dos bichinhos, descem rápidos quando avistam o morto. Só não comem os sapos, parece que têm ciência e sabem que o bicho é envenenado. Só o carcará se atreve a comer sapo, assim mesmo só a barriga.

O fogo tinha vindo de todo jeito: da trempe do terreiro do rancho onde a sinhá dona fez um cozinhado qualquer; do distraído que deixou largado pra lá o pito e a brasinha do fumo passou seu quente para as folhas secas donde nasceu o fogaço; do sol que bateu seu raio num vidro branco, num cristal, e fez, num prisma, espargir aquele feixe de luz colorida que esquentou a folhagem estorricada do barba-de-bode e levantou um fogaréu doido e, mais ainda, do próprio homem botando tudo que é fogo no pasto para ver nascer das cinzas a rama nova, nas primeiras chuvas.

O dito homem que espocou, da história de dona Zefa, era um coitado que vivia só, metido debaixo de um rancho de capim, na beira dum capão seco, nas lonjuras das chapadas, num lugar chamado mesmo Chapadão dos Neris, por conta do povo desse nome e dono daquelas terras ruins. Sua mulher, ao que se soube, foi se embora, fazia tempo, pois que o marido mandrião não queria muito saber de trabalho e só botava a coitada para roçar mato, fazer plantação e cuidar de encontrar bicho para ele comer. Comia não só os bichinhos que todo cristão devora quando está com fome: galinha, porco, pato ou boi, como também tiú, gambá, tatu, e esses outros viventes dos matos que ela caçava, principalmente paca e cotia, caçadas com bodoque ou armadilha, no meio dos capões de mato.

A mulher largou para lá o homem filho da preguiça e ele ficou com pouca coisa para matar a fome. Quer dizer, não teve milho, nem capim, nem abóbora plantados no terreirinho e muito menos o arroz que plantava no brejinho perto do rancho, para comer no resto do ano. Ele ainda andou jogando na terra uns caroços de feijão e de milho, cavando com um caco de enxada, mas deu pouco.

Por uns tempos ele andou catando o de-comer no mato. Além dos bichos mais impróprios para comida de gente, ele catava umas frutinhas, até lobeira e principalmente as guabirobas, os palmitos e os buritis. Amassava os cocos do buriti, fazia um caldo e passava dias comendo a gorozoba.

Às vezes andava pelas fazendas das vizinhanças. Procurava um servicinho leve que, dizia, estava sem saúde. Com essas tarefas bobas nas casas dos vizinhos, arranjava o que comer e com alguma bondade do povo, umas roupas velhas para se cobrir quando andava andrajoso, aos trapos. Deu de passar, quando ia deixando os trabalhinhos maneiros nas roças e indo embora para seu ranchinho, pelo galinheiro ou pela pocilga e levar, de furto, um franguinho, um bacorinho. Com o sumiço dos bichos o povo foi desconfiando e deixando o preguiçoso sem nome, sem servicinho, sem comida e sem roupa. Se queria tinha mesmo é que trabalhar no eito, como os outros, de sol a sol.

Mesmo querendo arranjar um trabalho para poder ter o que comer, o homem não encontrava abrigo em fazenda nenhuma, as lavouras paradas, o trabalho com gado sem serviço, tudo esperando as chuvas de setembro e o homem, com fome, catando o que comer. Protegeu-se debaixo dum pé de cagaita e lá ficou comendo o docinho das frutinhas amarelas. Comeu tanto que quase se acaba de tanto ir ao mato cagar. Mas não se acabou e continuou sua fome pelos campos, catando o que comer.

Já fazia uns três dias que o homem não comia nada que prestasse, só folha e água, naturalmente. Numa das andanças viu um sapo pinchando na terra seca de um carreirinho de formiga. Se lembrou do carcará que come sapo sem se engasgar, só deixando o couro nas cinzas dos campos das queimadas. Se carcará podia ele ia poder também. O sapo pinchou outra vez e ele pegou um pau e matou o bicho. Pegou da binga, faiscou, fez um fogo de graveto ali mesmo, sapecou bem o sapo, principalmente na barriga. Com um quicézinho, abriu o bicho e comeu uns nacos. Depois disto encostou-se numa sucupira e descansou daquela sua lida de procurar comida. O sapo enchera um cantinho do seu bucho faminto espantando um tanto a roedeira lá dentro, e ele dormitou encostado no tronco.

O sol já ia baixando quando acordou com uma sede dos diabos, como se tivesse comido o sapão com sal ou então sal com sapo. Levantou procurando grota, e grota por ali não havia. Andou já meio derrubado de sede, uma gastura danada na barriga e viu lá adiante uma casinha. Se achegou, chamou ô de casa. Veio uma mulher, a dona Zefa contadeira de histórias. Pediu água, ela deu. Pediu mais, ela deu mais. Como o homem sem nome quisesse mais água para matar sede grande e ela estivesse muito ocupada na cozinha, dona Zefa mostrou o pote, deu o caneco e mandou-o beber à vontade que ia cuidar da sua vida.

O homem encostou-se num canto, perto do pote e bebeu, bebeu – diz ela -, bebeu tudo que podia. Lá para as tantas ela escutou ele dizendo: - Dona, estou indo. Ao que ela foi e respondeu: - Vá com Deus. Ele se sentindo esmilinguido, perrengando, demais da conta, disse de novo com voz fraca: - Dona, estou indo. – Vá com Deus – respondeu ela de novo, acrescentando para não largar da sua ocupação: - Quando sair feche a porta. Ele ainda disse mais uma vez, com voz sumida, de agonizante, que estava indo, quando ela ouviu um estouro. No que correu para ver o que era, viu que o homem tinha espocado todo, a barriga aquele oco e no meio dum aguaceiro espalhado no chão perto do homem morto, numa sujeira de tudo que é porcaria, pedaços inchados de sapo por tudo que era lado ...
 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Eduardo Diatahy B. de Menezes