José Hélder de Souza
A mistela que comeu o Padre Verdeixa
Sol a pino, o
padre Zé Verdeixa, metido até o pescoço, o cabeção lhe apertando o
gogó saliente, numa gasta e ensebada batina preta; protegido da
canícula por um guarda-sol desbotado, pardacento, a lembrar,
remotamente, ter sido outrora negro, montado numa burra melada –
animal que ele preferia chamar de azêmola –, ia em desobriga pelos
sertões. Escanchado na sua forroia, percorria, farto de calor, quase
sufocado na batina velha, aqueles sertões ensolarados, acinzentados
por longo estio. Ia ele à cata de almas pecadoras, desvalidas,
ovelhas transviadas, fugidas do aprisco do Senhor. Nestas suas
viagens, em troca de alguns cobres que os ia catar naquelas terras
ásperas por via de que sua paróquia era paupérrima, implicância do
bispo que nela o confinara para livrar-se de suas teimosias e
caturrices, Verdeixa confessava desde meninos a velhos trôpegos,
batizava os pagãos, casava moças donzelas e mulheres amancebadas –
que havia muitas promode que naqueles lugares poucos padres davam
assistência religiosa ao desamparado rebanho do Senhor – como também
assistia aos enfermos, levando-os ao confíteor de seus pecados e
lhes dava os santos óleos na hora extrema. Rezava missa e
acompanhava velórios, orando com o povo em sentinela, ajudando no
entoar da ladainha de Nossa Senhora Rainha Assunta do Céu ou das
incelências.
Viajava léguas
montando a sua burreca. No arção da sela levava uma bruaquinha
contendo o viático para os vivos e os mortos, os sãos e os enfermos,
doentes do corpo e da alma, os pios e os relaxados das crenças. Lá,
na malinha, iam também a âmbula, os santos óleos, um frasco de água
benta, o hissope para aspergi-la, a caldeirinha, o cálice, a
galheta, um turíbulo e sua naveta e o hostiário e até mesmo pequeno
cirial e velas.
Num alforje, na
garupa da besta, carregava os paramentos: a sacra, a alva, os panos
da pedra de ara – que ele improvisava com mesinhas onde tivesse que
oficiar – o missal, a bolsa, o corporal e a pala, todo o guisamento,
enfim, necessário à celebração da missa e outros ofícios religiosos.
Depois de dois
dias na Baixa do Veado, o padre Verdeixa seguia pela estrada do
Córrego da Onça, denominação antiga de um vilarejo que há muito e
muito tempo não via ou sequer sabia o que era onça, apesar de manter
ainda o riachinho onde outrora os felinos matavam a sede. Pois ia
ele desde cedinho em busca deste arruado onde se erguia, desde os
tempos coloniais, modesta capelinha onde se cultuava Nossa Senhora
da Penha. Já era pela altura do sol, quase meio-dia e nada de
aparecer a ponta da torre da igrejinha montada em cima do morro do
Tejuaçu. Por certo perdera-se, entrando em estrada errada.
Andou mais,
debaixo daquele sol e, na quebrada de um monte, viu, embaixo, no
meio de um chavascal, uma casinha de beira e bica, com uma cajazeira
no terreiro da frente e um frondoso mulungu no quintalzinho, junto
com umas carrapateiras. Estugou o passo da burrica batendo seus
sapatorros nos vazios do animal. Com pouco mais estava diante da
morada humilde. Apeou-se, amarrou a montaria na cajazeira e bateu
palmas à porta: – Ô de casa.
Atendeu-lhe uma
velhusca magra, metida num vestido grosseiro de garraz. Ao ver o
formigão em sua porta, a mulher que não era propriamente uma papa
hóstia, porém uma fervorosa devota da Sagrada Família, como que
assustou-se e, passado o pasmo, procurou cumular de gentilezas e
mesuras a inesperada e inaudita visita. – Entre, seu vigário, se
arranche, saia do sol. Não precisou chamar duas vezes, entrou na
salinha e deixou-se cair num vasto banco de madeira encostado na
parede, junto à janela, em busca de descanso da jornada em que vinha
e a fresca da rala brisa vinda da sombra da cajazeira. A mulher
confirmou suas suspeitas: perdera o caminho do Córrego da Onça; a
estrada a passar na sua porta ia para o Tanquinho das Moças,
singular nome de lugar onde, nas águas, tinha um banho de rio muito
popular, freqüentado por moças nuas.
Padre Verdeixa,
vendo-se a braços com terrível fome, desde a manhãzinha, depois do
café ralo no arrancho da Baixa do Veado, nada comera, e – lembrando
o provérbio: quem tem boca não manda soprar – entrou direto no
assunto que mais o interessava no instante: queria comer, almoçar e,
de imediato com certo autoritarismo, mandando logo a mulher lhe dar
um pelebreu assado ou uma galinha cozida, morria de fome. A velha,
como diz o povo, até que gostaria de dar mel pelos beiços ao faminto
clérigo. Mas não tinha nada em casa. O marido saíra para um trabalho
longe de casa e não voltara, fazia semanas. Ela já comera a
bacorinha, umas três galinhas do terreiro e o feijãozinho, resto da
parca safra de vazante no riacho. – Seu vigário – disse por fim –
não tenho mais nada, só uma quarta de maxixe.
Diante da má
notícia, o padre mordeu os beiços, levantou-se meio agastado,
famélico, perdido naquele calcanhar-do-judas e, meio sem acreditar
na bruaca que conhecia o pensar do povo na palma de sua mão no muito
tempo de sacerdócio e de convívio com o povaréu, sabia das
cavilações e espertezas de velhotas como aquela, foi espiar o
terreiro e seus arredores para ver se via algum animal ou coisa mais
degustáveis que insípidos maxixes. Andou, percorreu o eirado, passou
por baixo do mulungu do quintalejo, pelas mamoneiras onde viu, pelos
restos de excrementos sobre suas sombras, vestígio de antigos
poleiros de galinha e nem sinal de bicho algum por ali. A mulher que
o acompanhara, cerimoniosa, naquela verdadeira inspeção, explicava
ter colhido os maxixes naquela manhã, no roçado feito pelo marido na
beira do riacho. Com a chuva pouca, o milho estava se perdendo, as
melancias não vingaram, ficaram só os maxixes. O padre passou pelo
assunto da velha como gato por brasas, procurando insistir em
arranjar comida melhor, nem que fosse nos vizinhos.
– Não tem –
disse a mulher –, o mais pertinho fica daqui a três léguas e meia e,
já meio-dia, para chegar lá, seria de noite.
Desalentado,
cansado, faminto, o padre Verdeixa voltou para a casinha. Junto da
mula mexeu na bruaca a ver se encontrava algo e só encontrou meia
dúzia de hóstias, não valia a pena. Não tinha remédio. Voltou para o
banco onde ficou a cismar, a mulher a espiá-lo desde a porta que
dava para a cozinha onde já acendera um foguinho. Depois de uns
minutos, como convencido da precária situação alimentícia em que se
via junto com a pobre velhota, ele aventou: – Este maxixe é do
miudinho? Ao que lhe respondeu de pronto e categórica a mulher: – É,
seu vigário. Então bote na panela este diabo – afirmou, blasfemo, o
jejuno sacerdote. Ao cair da tarde, branco de fome, o padre comeu à
tripa forra – se é que se pode dizer que uma panelada de maxixe
forre as tripas de alguém – a pobre mistela dos maxixes cozidos na
água e no sal.
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