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Jornal do Conto

 

 

José Pedreira da Cruz



 

A última serenata


 

Éramos bons amigos, e com música costumávamos fortalecer nossos vínculos de amizade.

Nosso principal hobby era fazer serenatas em noites de lua cheia. Uma brincadeira ingênua que enriquecia o nosso ego e divertíamos os enamorados.

Certa noite, eu e meus amigos João Cosme e Raimundo Torres resolvemos fazer mais uma seresta.

Entre um gole e outro comíamos torresmo e rodelas de salame e a seguir o som do violão quebrava o silêncio daquela madrugada de brisa, luar e poesia.

“ Tanto tempo longe de você
quero ao menos te falar.
A distância não vai impedir,
meu amor de te encontrar….(….)
...... Eu te amo, eu te amo, eu te amo”.

Havia a certeza de estarmos fazendo uma linda serenata. Nossas canções se alternavam, e muitos na cama se deleitavam com nossas cantorias. Já outros, xingavam-nos.

“ Esta noite,
eu queria que o mundo acabasse
e para o inferno o Senhor me mandasse
para pagar todos pecados meus.......”.

A bebida já, já, acabaria. É alta noite. Plena madrugada. Hora dos corococós dos galos, e nós já havíamos cantado algumas canções. Sentíamo-nos contentes e orgulhosos.

Eu, ladeado pelo dois amigos, estava sentado num dos degraus da calçada da igreja, cantando e dedilhando o violão. Pressenti que alguma coisa não ia bem, pois mesmo cantando e bebendo conhaque vinha-me pensamento desagradável: “ali, naquela igreja, todos os mortos do lugar, obrigatoriamente fazem sua última visita antes de irem para suas covas” e, nós estávamos sentados no caminho deles. Isto muito me desagradava e me deixava apreensivo.

A lua descia rapidamente para o poente e sua luz já estava a desejar. Nesse instante, nuvens negras e gigantes passam sobre nós, escorregando sua imensa sombra sobre a praça: o que nos deixava momentaneamente na penumbra, sem o brilho do luar.

Executávamos a última cantoria:

“Não há, oh gente; oh não!

Luar como este do Sertão...”

..... quando o Raimundo toca em meu ombro e diz: - olha gente! Olha lá! Tem gente nos espiando, - e acrescentou: - alguém está fumando na esquina da igreja. Vejam! Vejam!

Parei o violão e calei. Olhamos para lá e vimos uma imensa brasa que continuamente acendia e apagava, acendia e apagava: parecia um charuto ao ser tragado. Mas, só víamos a brasa e nada mais. - Quem seria o engraçadinho? - Com olhares, telepaticamente nos perguntamos.

- Deve ser algum sacana! Um filho da p…. qualquer! - proferiu o João Cosme em tom de zombaria, depois, encorajando-nos, acrescentou: vamos lá? Vamos ver quem é? Vamos ver?

Deixamos nossos pertences na calçada e disparamos rumo à tal luz e, ao chegarmos lá... Espanto! Quase caímos dos degraus. - Aqui não tem ninguém! Não há ninguém! Quem estava aqui? - Nos questionamos boquiabertos, olhando às voltas e atropelando nossas falas.

Eu me arrepiava dos pés à cabeça. - Que está acontecendo, aqui? - Indaguei aos dois.

Voltei a me lembrar que todos os mortos da cidade são levados àquela igreja, e dela ao cemitério. Tive a nítida impressão de estar vendo um cortejo fúnebre arrastando-se pela praça em plena madrugada, com mulheres de véus pretos e homens de chapéus na mão.

Observamos que naquela hora nuvens negras cobriam a praça e um inesperado relâmpago iluminou o céu, certamente para enfeitar aquela cena macabra.

Senti um frio correr nas vértebras e minhas pernas, desgovernadas, pareciam se congelar: era o medo, aliás, o pânico. Minha respiração estava ofegante e meu coração batia-me até na língua. Ficamos inertes no tempo, um colado ao outro como se fôssemos trigêmeos siameses.

Estava decretado o fim da nossa serenata.

Com uma pistola em punho, o João Cosme proclama: - se for vivo leva chumbo e se for morto, que se vá para o inferno. - Cala-se pôr um instante, enquanto nós nos entreolhávamos e a seguir ele acrescenta: - vejam! Vem alguma coisa lá na frente. É um vulto. Quem seria a essa hora?

Não dava para se distinguir, mas víamos que era algo cinza, volumoso, do tamanho de um jipe; vindo lentamente em nossa direção no meio da sombra da igreja. Ele rosnava e fazia um barulho similar ao de um cavalo andando no asfalto, e isso mais e mais nos aterrorizava. Ali não havia calçamento, nem cavalo. A praça era de terra, pedregulho, grama e areia. Por quê aquele barulho?

O vulto veio, veio, veio, e sem ser identificável parou há cinco metros de nossos pés. Ele parecia uma nuvem. Nem eu mesmo sei defini-lo.

A cidade preguiçosamente dormia e os galos não paravam com seus corococós, assustando-nos, ao tempo em que saudavam mais um amanhecer. Enquanto isto, nós fazíamos companhia àquele fantasma, que pôr sua vez deveria estar no céu, no purgatório ou no inferno, menos ali, perturbando o sossego e acabando com nossa pacífica cantoria.

- Vamos rezar um Pai Nosso? - sugeriu o Raimundo, com a voz trêmula, puxando-nos pelo ombro para ajoelharmo-nos no pedregulho da rua. E o fizemos.

- “Pai Nosso que está no céu. Santificado seja o Vosso …..” - antes do fim da reza a nossa voz desapareceu, pois o vulto em nossa frente se mexia e rosnava, o que nos deixara afônicos, atônitos e em pânico.

Instantes depois ele desviou-se para nossa esquerda, indo em direção a uma casa de esquina. Lá, havia um poste de madeira há aproximadamente um metro da parede, aonde o vulto misteriosamente encolheu-se e parou entre a parede e o poste. Ficou ali pôr um instante e a seguir emitiu um ruído similar a um feixe de lenha que é violentamente triturado e junto a esse barulho ele desapareceu terra adentro.

Estávamos semivivos. Só tínhamos tremor o medo.

A lua, nossa velha amiga, nos abandonara. Ficamos sós, amedrontados na escuridão.

Andamos um colado ao outro até o centro da praça, onde teríamos que nos separar. João Cosme, arrogantemente, sacava sua arma e dizia: - quem invadir o meu caminho leva chumbo. - Assim jurava, enquanto dava alguns passos em direção à rua de sua casa e, separando-se de nós dois ele desapareceu na escuridão.

O Raimundo foi para minha casa, já o João Cosme que se dizia destemido, foi novamente molestado pelo vulto que o fez andar de costas até o batente de sua porta totalmente mudo.

Creio que o vulto não gostou da dita encomenda: - se for morto, que se vá para o inferno.

E à todos que me indagam:

- Quem era o vulto?

Simplesmente respondo:

- Não sei! Vulto não fala.

 

 

 

 

28/06/2005