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Jornal do Conto

 

 

José Pedreira da Cruz



 

Tocha humana


 

Para aquelas pessoas, aquele não seria um dia comum como um outro qualquer. Havia muita tristeza entre elas e o motivo era dolorosamente visível: a despedida de mais um que partia para terras distante; somando-se, com ele, o terceiro a se ir.

Não chore, minha gente! Eu voltarei são e bem de vida. Garanto! – foi o que todos ouviram daquele filho que ora repetia a mesma fala antes dita por outros irmãos na hora do adeus.

- Antenor, se avexe! Temos que ir embora. - disse-lhe o irmão Cícero, acrescentando um aconselhamento de irmão para irmão: não foi fácil eu viajar mais de dois mil quilômetros só para vir te buscar, meu irmão! A vida, aqui neste lugar, é mais difícil do que em qualquer outro lugar do mundo. Aqui não tem nada, minha gente! Lá onde eu moro, tenho de tudo que se possa querer. Você viverá bem, meu irmão, pois o dinheiro para quem trabalha, jorra, entendeu? - e concluiu proferindo: mano, você terá sucesso!

A cabeça de Antenor estava feita. Ele enfeitara-se com as palavras do Cícero - o irmão mais velho -, a quem cabia-lhe obediência e respeito, e decidira ir embora custasse o que custasse. Até o grande amor por Juliana - carinhosamente chamada de Ju -, que ele mantinha lapidado desde a mais tenra infância, agora estava fragmentado em outro plano: primeiro, ele iria ganhar bastante dinheiro no Sul e depois voltaria para casar com ela. Esta, agarrada a seu braço desmoronava-se em soluço e lágrimas.

- Sim Cícero, estou te entendendo! Aqui não tem nada. Mas uma coisa eu prometo: tudo de bom nossa mãe terá. Assim que eu me empregar ela receberá o conforto merecido - e virando-se para a namorada, carinhosamente sussurrou - e… Ju também. Depois, com um radiante brilho nos olhos, fitando-a, confidenciou-a com carinho, dizendo:

- Ju, eu te prometo: voltarei para me casar contigo, custe o que custar. Espere-me.

Num gesto de afagos ela respondeu-lhe entre dois veios de lágrimas: promessa é dívida. Eu te esperarei!

- Deus que te ouça, meu filho! – Interveio sua mãe num tom de aprovação, dando-lhe um forte abraço entre os murmúrios de “adeus; vá com Deus”.
 

*

 

A conversa entre ambos os viageiros foi longa e cheia de muitos planos. O percurso assim se fez, até pisarem na rodoviária do Tietê. Ao que o Cícero demasiadamente contente com o seu grande feito, e sentindo-se aliviado do cansaço da jornada, assim exclama:

- Chegamos. Enfim… São Paulo.

- E agora, para onde vamos? - encabulado com o gigantismo da metrópole a seus pés, aquele roceiro se vê agoniado com o frenesi que lhe rodeia e quer uma explicação lógica: - Pra que lado?

- Para nossa casa em São Caetano do Sul.

- Deve ficar aqui por perto, não é?

- Há mais ou menos uma hora de ônibus!

- O quê? Uma hora? - e concluiu rindo e prazeroso - Lá em Maçaranduba, em uma hora de ônibus a gente corta o mundo. Por isso, eu acho que esse tal de São Caetano fica lá pra bandas do além, não é mesmo?

- Não Antenor! Aqui tem muitos carros e as ruas vivem entupidas deles, de forma que demora muito para se chegar em qualquer lugar, entende?

- Tá bem, tá bem! Desde que eu chegue inteiro, tire uma boa soneca e arranje logo um bom emprego, o resto a gente agüenta. O que me preocupa é minha cunhada e meu sobrinho que nem me conhecem. Espero que gostem de mim.

- Fica frio Antenor! A Lurdes e o Carlinho vão gostar de você, sim! São gente fina. Eles sabem do por quê você veio.

- É… mas tudo isso preocupa-me. Não sei como eles são e nem eles sabem como eu sou. Se você tivesse casado com uma maçarandubense seria diferente, mas a Lurdes é mineira, não é?

- É tudo gente boa, meu irmão! Fica frio!
 

*
 

Entra rua e sai rua até que chegaram em casa.

Já era noite.

Os receptivos cumprimentos foram muito calorosos, e Antenor sentiu-se bem acolhido pela cunhada e pelo sobrinho que não paravam de perguntar pelos outros parentes - que não conheciam - que ficaram em Maçaranduba.

Um amistoso diálogo instalou-se entre todos, ao tempo em que o pequeno Carlinho se apegava afetiva e fervorosamente àquele tio recém-chegado, também… era ele o primeiro tio que o menino conhecia e que o presenteara com um carrinho – onde se lia “Lembrança de Maçaranduba” – feito pelo próprio tio.

O menino, de tão contente, retribuiu o presente com um outro: um velho anel que achara na rua, e que, com grandioso esforço conseguiu enfiá-lo no dedo mindinho do tio Antenor, e… todos riram a valer.
 

*
 

Antenor mirava tudo à sua frente e calado tentava entender o por quê Cícero mentiu tanto com relação à sua real condição de vida. Ele jurou, de mãos postas, à todos da família - por várias vezes – que não era rico, mas… remediado, e que vivia muito bem em São Paulo; o que dava a entender, ter ele, no mínimo, uma boa casa para morar. Mas o tipo de moradia que o Cícero tinha, era muito ruim. Ele e a família moravam num cortiço - uma espécie de microfavela, ocupado por várias famílias -; num único cômodo: um cubículo úmido, nos fundos de um quintal; tendo uma dimensão de… não mais que seis metros quadrados; ocupado por uma mesa velha, um baú onde se guardava suas roupas, duas cadeiras, um fogão de querosene, um pequeno armário pregado na parede, uma cama de solteiro (onde os três dormiam) -, e… nada mais. Não sobrava espaço para mais nada, na casa. Ali estava todo o cabedal da família.

Em silêncio Antenor ficou a se questionar:

- Aonde eu vou dormir? - mas não se atreveu a perguntar. Esperou que eles tomassem a atitude de lhes mostrar os seus aposentos, afinal, ele era um visitante e não lhe cabia intromissão.

As prosas e as brincadeiras regadas a risos avançaram noite adentro. Conversa vai, conversa vem, e finalmente o sono e o cansaço se apoderam de todos.

- Vamos dormir gente? - a voz do Cícero vibrou nos tímpanos de Antenor como se fosse uma verdadeira condenação.

- Vamos! Mas… eu vou dormir aonde? Cadê minha cama? - Antenor inquiriu indignado, quase aos gritos, e furioso levantou-se bruscamente da cadeira, encarando ao irmão com um olhar irônico e de expressão agressiva; numa mesclagem de espanto e raiva como que a refutá-lo e destituí-lo das qualidades de bom irmão que era, enquanto o colocava num impiedoso julgamento. “Dormir aonde, Cícero? - foi a interrogação mais questionável de sua vida.

Cícero, Carlinho e Lurdes, rapidamente pularam para a cama de solteiro - a única existente - e se enrolaram sob suas cobertas, enquanto Antenor friccionava suas mãos geladas e permanecia ereto, boquiaberto, impaciente e incrédulo com o que presenciava.

- Não acredito, meu irmão! Não acredito! Você trouxe-me de Maçaranduba somente para me humilhar e me fazer dormir numa cadeira. Que diabo você tem contra mim?

Inaugurava-se a primeira discórdia.

- Antenor, vá dormir! Já é tarde e… boa-noite!

- Dormir como, e aonde, meu irmão?

- Com os seus olhos, e na cadeira, oras! E… não me amole e não me encha o saco! Entendido? Faz mais de um mês que não durmo com Lurdes. Dá pra nos deixar em paz?

Antenor sentia-se, agora, o pior dos indivíduos da Terra. Se pudesse voaria e cairia na sua cama em Maçaranduba e… quem sabe, nos braços da sua querida Ju. Mas a realidade lhe era trôpega, pois nem uma cama, sequer, dispunha-lhe para dormir. O primeiro arrependimento tormentava em sua mente e nele uma espécie de raiva, de ira, de ódio do mundo, de tudo. Sei lá?! Isso borbulhava-lhe pele afora. A primeira vontade de voltar instalara-se em seu pensamento e a inaugural noite maldormida, o fez pensar em muitas outras que viriam.
 

*
 

O tempo passa e Antenor não desanima em procurar um bom emprego. Mas a sua situação é muito dificultosa: sem estudo, sem amigos e sem conforto. A única maneira de ganhar algum dinheiro foi submetendo-se ao penoso trabalho de demolir casas desapropriadas na avenida Goiás. Um serviço bruto, duro, penoso, arriscado e difícil. Ele ganhava metade de um salário mínimo pela a demolição e desocupação total de uma casa; fosse ela do tamanho que fosse - assim rezava o contrato com o patrão  e, para isto deram-lhe uma gigantesca marreta com a qual executaria as penúrias de suas necessidades.

Seu pensamento vagava diuturnamente entre si e a Ju, a quem amava em demasia, mas nem uma carta, sequer, recebia da amada, que há mais de dois mil quilômetros, ansiosa, o esperava são, salvo, e bem de vida tal como lhe prometera.
 

*
 

- Maldita hora que deixei Maçaranduba - em seus solilóquios, ele resmungava no intervalo de cada marretada -, lá é que eu tinha de tudo e não sabia. Aqui sou um simples demolidor de paredes que viram lixo, e eu sinto-me parte dele. Grande emprego arranjei para viver! Como eu fui burro! - insistia monologando e lamentando-se de suas mazelas. Agora não tinha como dar suas noticias a ninguém, pois sentia-se envergonhado da derrota e não mais pensava em voltar para a sua Ju. O peso da marreta era inferior ao da sua vergonha. Seu irmão, a única pessoa conhecida nestas plagas, dera-lhe as costas e, por fim, enciumado, o atirou de porta afora esconjurando-o caluniosamente de querer seduzir a sua própria cunhada.

Defendia-se dizendo:

- Tenho Deus por testemunha.

Agora sem ter casa, comida, dormida e família, o solitário demolidor passa a morar com ratos e baratas entre os escombros das demolições e autocondena-se, dizendo ser um estrume vivo.

Sua vida perde o sentido e deteriora-se. Seus eventuais conhecidos, de rua, não mais o viam, e ele faminto, maltrapilho e fétido, esquiva-se entre os detritos das demolições quando é avistado. Vira um ralé, um insociável sem família.
 

*
 

O tempo passa e a mágoa persiste, até que, em uma linda noite de verão, num corriqueiro domingo, o Cícero retorna de um passeio com a mulher e o filho e, de longe avista um corpo em labaredas correndo em ziguezagues e rodopios pela avenida Goiás. Os populares, em polvorosa, gritam desesperados frente àquele macabro espetáculo luzente, mas em breve instante o dito corpo contorce-se e tomba fumegante no meio do asfalto. Uma cena estúpida aos olhos de todos. Imediatamente uma multidão circunda-o e observa espantada e estupefata aquela fétida fumaça a desprender-se dos trapos e lentamente subindo em direção ao Céu, mas, logo volta-se ao solo como que anunciando: lá suicida não entra.

Espantados e com as mãos tapando o rosto, os curiosos perguntam-se concomitantes:

- Quem é ele? Alguém o conhece?

O silêncio era a resposta.

- Agorinha mesmo, ele comprou um litro de gasolina. - trêmulo e incrédulo, comentou o frentista do posto de combustível existente ali próximo.

- Alguém o reconhece? - indagou o polícia.

- Não, não, e não. - foram as respostas concisas.

- Coitado! Nem um documento sobrou - Disse o policial.

- Pai, Olha! Olha aquele anel no dedo dele! Ele é o tio!

- Cala essa boca, menino!

A indigência lhe foi inevitável.

 

 

 

 

28/06/2005