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Jornal do Conto

 

 

José Pedreira da Cruz


 


Doze léguas de amor



 

Dizem que Diná nunca tomara uma surra, nem do pai e nem da mãe; e para isso possuía o dengo, o mimo e a bajulação, o que faziam-na a pessoa mais querida da família de dona Filó e de seu Mourão.

O tempo foi passando, passando, e Diná começou a se encorpar, a esbanjar uma graciosa feminilidade, de tal forma que os garotos se babavam ao vê-la passar. Ela era a razão da perplexidade sexual na cabeça dos garotos dali. Um despropósito aos olhares irreverentes dos homens e um certeiro martírio na mente das mulheres ciumentas.

Em pouco tempo Diná passou a ser odiada por todas as mulheres casadas daquela cidadela. Parecia até, que, ali, não mais haveria lugar para aquela menina-mulher.

Tudo estava costumeiro, quando a cidade é inesperadamente acordada do sossego e invadida por uma turba de operários da exploração de petróleo. Eles surgiram do nada, esbanjando dinheiro, galanteios, conversa-mole, muita conversa-mole, e fartas promessas às sonhadoras donzelas do lugar, que, encantadas com as belezas daqueles forasteiros, cediam facilmente às suas fantasiosas seduções e, foi nesse clímax de apelos que os ouvidos de Diná foram bombardeados de promessas oriundas de um rapazola sonhador, que por bilhetes prometia-lhe mundos e fundos em troca de um amor, um namoro, um aperto de mão, um beijo ou qualquer cousa de si.

A tudo isso o pretendente exigia pressas, pois teria que em breve levantar acampamento e partir mundo a fora na incansável exploração de petróleo.

Diná sonhava, e através de bilhetes correspondia aos apelos do jovem. Mas tudo não passava de românticos e meros bilhetes.

Um amor em recados.

Um romance oculto.

Os momentos foram sucedendo-se cheios de felicidade e encantamento até o dia em que o jovem teria que ir embora com os seus amigos de trabalho.

E o namoro assim se fez: bilhete prá lá, bilhete prá cá; recado prá lá, recado prá cá, e… por fim um encontro. Um olhar de perto, bem de perto; um beijo-relâmpago; um suado aperto de mão e o nascimento de um grande amor num enlace da paixão.

O primeiro encontro, à luz do dia, banalizou-se na boca-a-boca de tal forma, que, rapidamente alcançou os ouvidos de dona Filó, pois as incansáveis ciumentas, de plantão, não lhes davam trégua e precisavam dar uma extraordinária lição naquela que acreditavam ser a destruidora de seus turbulentos casamentos, assim, maldosamente denunciaram-na a seus pais.

Era a véspera da partida do jovem. Ele iria para muitas léguas dali e há poucos instantes, cara-a-cara jurara-lhe um grande amor.

O acampamento estava desfeito e o coração de Diná apertava no peito.

Aquela noite de insônia parecia nunca ter fim e quando, por fim, raiasse o dia, não mais teria bilhetes românticos, nem apertos de mãos daquele garoto galante e sonhador, mas, antes que a cidade acordasse Diná já estava de pés, pois precisava chorar a despedida do amado ao vê-lo partir. E foi nesse instante que seus pais ouviram barulhos na casa e também se levantaram e tomaram ciência da atitude da filha.

Era preciso salvar a honra e acabar com o fala-fala da boca do povo.

– Precisa me ouvir. Sente-se ai – áspera, disse-lhe dona Filó mostrando-lhe uma cadeira.

– O quê é, mamãe?

– Quem é esse sujeito dos bilhetes?

Isto lhe caiu como um raio. Diná avermelhou-se. Não esperava por aquela repentina inquirição. Menos agora que tudo estava acabado. A mudança já havia saído. Seu pai, teso em sua frente, era só ouvidos. Permanecia calado, nervoso, aguardando o desfecho da cena, para depois se pronunciar. Ali, naquela casa, não tinha lugar para filha mal-falada. Era esse o sórdido pensamento de seu Mourão. Um homem metódico, abastado de idéias próprias e de preceitos religiosos que não lhes permitiam nenhum tipo de libertinagem.

– Que sujeito, mamãe? – e entremeio murmurou quase inaudível: malditas fofoqueiras!

– Quem é o tal sujeito? Fale! – Bradou seu Mourão num tom ríspido e autoritário exigindo uma resposta concreta.

– Não tem nenhum sujeito, oras! – Respondeu-lhe num tom insolente.

E mal acabou a fala, foi agarrada por dona Filó que, descontrolada gritava:

– Tome, tome e tome! – irada dona Filó ralhava segurando-a pelos cabelos, ao tempo em que lhe despachava tapas e mais tapas pela cara, enquanto, raivosa, desabafava-se dizendo:

– Tu és uma filha perdida. Maldita! Tu me matas de vergonha.

– Deixa isso comigo, mulher! – interveio seu Mourão, armado com uma taca de couro cru, para ajuíza-la com o castigo.

A surra lhe foi violenta e impiedosa. Essa, segundo seu Mourão, era a única maneira de pagar a honra e fechar a boca do povo.

Diná trancou-se no seu quarto, e da surra nem uma lágrima sequer chorou.

Seu pensamento vagava pela estrada por onde a mudança ia, e ela desejava estar entre os pertences do amado, sobre o caminhão.

No silêncio da sua dor e da sua paixão, ela anda de um lado para outro entre as paredes do quarto, quando decididamente abriu um baú e dele retirou algumas peças de roupa, que as enfiou numa mochila, e sorrateiramente saiu pela porta dos fundos, tomando a estrada-de-rodagem por onde seguiu a mudança do seu amado.

Incansavelmente ela correu durante toda a manhã e parte da tarde. Doze léguas em terra batida. Todo percurso ela o fez sobre as marcas deixadas pelo caminhão, até alcançar o lugarejo mais próximo: uma vila chamada Manga. Ali, ela imaginava encontrar o seu bem-amado. Mas tudo foi engano. Ele estava longe e jamais o encontraria. O seu sonho era o de estar com ele eternamente, mas perderam-se de vista para sempre.

Enquanto isso, em sua casa, sua ausência é denunciada, e todos se mobilizam para encontrá-la. Os homens montados em cavalos vasculham palmo a palmo daquele chão, e… nada. Diná não estava por ali. Comentavam que ela tinha se evaporado ou sumido terra adentro. Os minutos passavam morosos e os ânimos se aqueciam na ânsia de encontra-la viva e sã. As buscas já se prolongavam por mais distâncias, e ao anoitecer do quinto dia, todos retornavam sem notícias de Diná.

Para onde teria ido? Era o que mais se questionava.

O desespero começa a se abater sobre seus pais, que, chorosos, diziam tê-la perdido na carne, na alma e na honra.

Oito dias se passam, quando súbita e misteriosamente Diná aparece maltrapilha, debilitada, faminta, fétida e triste, mas a ninguém ela quis dizer por onde andara.

Em seu mundo se fechara, e dela uma só palavra não se ouvia. Todos achavam que o seu pecado já estava pago e que seus pais a perdoariam com o seu regresso. Mas dona Filó e seu Mourão eram pessoas cheias de critérios e rancores e se achavam envergonhados por terem uma filha mal-falada. Então resolveram enviá-la ao exílio. Isolaram-na numa fazenda de parente bem distante dali, para que todos a esquecessem e parassem de falar o seu nome.

Diná foi embora e nunca mais voltou.

Ela carregou consigo as marcas de um castigo por motivo fútil e banal, e foi também uma vítima do preconceito, do tabu, da ignorância e da brutalidade em família.

O melhor mesmo, foi ela nunca ter voltado.

 

 

 


 

28/06/2005