Jorge
Rodríguez Padrón
A INCONTESTÁVEL PRESENÇA
Diálogo com Jorge Rodríguez Padrón
Floriano Martins
Se falamos de poesia espanhola, é conhecida a discussão
em torno da palavra modernismo, que pode significar ao mesmo tempo uma
escola literária e a definição de uma época.
É verdade que o modernismo espanhol (da mesma forma que o hispano-americano)
apresenta traços distintos do modernismo dos demais países
europeus (da mesma forma que o modernismo brasileiro). Antes de tudo, tua
opinião acerca do sentido exato do modernismo espanhol. Depois,
suas relações com o modernismo nas Ilhas Canárias.
Não haveria motivo de discussão a este respeito se não
se houvesse utilizado essa mesma denominação (modernismo)
para movimentos literários que, na realidade, respondem a propostas
estéticas diversas, ainda que coincidam no fato de afrontarem esse
período histórico, também necessitado de uma mais
justa denominação e que, para nos entendermos, chamamos de
modernidade. Vês? Tu mesmo aludes agora, por exemplo, ao modernismo
espanhol e ao modernismo europeu (que teve muito pouco de literário)
e ao modernismo brasileiro
Poderíamos inclusive complicar um pouco
mais a questão somando a este debate o modernism norte-americano.
Prefiro portanto centrar-me no modernismo em língua espanhola que,
com propriedade, encheria o compartimento vazio do verdadeiro romantismo
que não teve nossa literatura. Verdadeiro romantismo porque implica
ruptura da imaginação e transitividade conseqüente até
esse lugar reclamado com urgência por G. A. Bécquer como o
espaço "onde a vertigem / com a razão me arranque a memória".
E se Bécquer o solicitava como desejo, sua configuração
corporal, sua carnadura em imagem, completa-a o modernismo desde a América
Hispânica. Princípio de uma experiência poética
que é também histórica: a América Hispânica
dá à luz, com o modernismo, a imagem de seu futuro enquanto
que único espaço para estabelecer sua identidade possível.
Por isto será começo contemporâneo; duplo com o qual
lhe era imprescindível dialogar para entender-se a si mesma ,
a identidade espanhola. Deu-se, no entanto, que a situação
histórica espanhola, nesse momento, não era augural como
se passava na América , mas sim final: a resposta dos escritores
peninsulares viu-se assim forçosamente condicionada por uma reflexão
sobre seu passado, que conclui em vontade regeneradora (isto é,
uma volta ao princípio e uma revisão de todo o processo histórico
nacional: memória e razão requeridas para explicar o explicável
apenas poeticamente). Essa foi a contradição dos integrantes
da geração do 98. E sua evidente limitação.
Mais ainda: neles atuou um grande temor diante da liberdade imaginativa
formal e rítmica que o modernismo propunha; e desejosos de dar
com o espírito ou essência do espanhol, viram-se deslumbrados,
mas também assustados, diante do atrevimento modernista. Insensíveis
à sensualidade e à paixão amorosa, seriam escritores
negados ao amor (e ao erotismo), pois entendiam a mulher somente como hospitalidade,
como cobrimento. E por esse mesmo caminho se explica sua difícil
relação com o outro (para Machado, "o outro que sempre vai
comigo"; para Unamuno, a consciência trágica do ser ímpar).
Compreender-se-á, pois, que os escritores peninsulares que se chamaram
modernistas foram apenas imitadores de uma estética; não
viveram a experiência existencial que haveria de obrigar-lhes a subverter
a ordem convencional da expressão literária.
Os escritores do final do século nas Ilhas Canárias, por
sua parte, encontrar-se-ão diante da evidência de sua diferença
quando como resultado do desastre colonial de 1898 este arquipélago
atlântico converteu-se em território fronteiriço que
deve enfrentar o princípio de sua caminhada histórica no
espaço da modernidade, onde seu reconhecimento aguarda entre a incerteza
do possível. Ilhas ao fim e ao cabo, sua condição
dupla reflete-se no debate permanente entre a segurança de seu centro
e a projeção excêntrica, centrífuga, de sua
identidade, somente completa quando se assume a manqueira que obriga a
esse trânsito ao desconhecido. As Ilhas Canárias coincidem
assim com a América Hispânica neste princípio, pois
além do mais esse lugar de confluência e mestiçagem,
que foi o arquipélago desde finais do século XVI, vive em
permanente relação com o mundo. O cosmopolitismo de sua atividade
comercial e portuária, que dispara ao final do século XIX
com a presença singular dos colonos ingleses (homens de negócios,
mas também exilados que esperam curar sua enfermidade irreversível),
facilita aquele reconhecimento por meio do reflexo (e diálogo com)
no outro. E tal experiência, ajudada por sua irreverência lingüística
dialetal, baseada no uso de um ritmo (acento) diferente e de uma riquíssima
capacidade expressiva da fala (gestualidade e silêncio como elementos
básicos de significado), fará com que a escritura literária
finissecular nas Ilhas Canárias constitua-se uma facção
singular do modernismo hispânico, movida por idêntico sentido
que impulsionara esse movimento na América Hispânica, mas
não sem entender-se como subsidiária daquela inauguração.
Desde um precursor como Domingo Rivera (1852-1929) até um pós-modernista
(e algo mais) como é Rafael Romero, Alonso Quesada (1886-1925),
passando pelo escritor paradigmático que foi Tomás Morales
(1884-1921), ausentes quase sempre do debate histórico e crítico
do modernismo espanhol, mesmo que Federico de Onís, Díez
Canedo o Valbuena Prat tenham chamado a atenção sobre eles.
Falando da aventura poética das Ilhas Canárias, recorda
Valbuena Prat suas duas características centrais: o isolamento e
o sentimento do mar. Por sua vez nos fala Pérez Minik de "uns temas
singulares autônomos", a adaptação de umas características
da lírica européia. No cenário da grande variedade
cultural hispânica, qual é o contributo estético que
melhor define a poesia canária?
Já insinuei algo disto no que te dizia antes. Retomo o termo
facção, do próprio Pérez Minik, que o utilizou
para historiar e refletir sobre seu próprio movimento geracional,
o da Gaceta de arte. Penso que facção é a forma
mais precisa para determinar toda a contribuição peculiar
(eu diria a diferença) da poesia escrita nas Ilhas. Mencionas também
o professor Valbuena Prat; com efeito, foi ele o primeiro a advertir sobre
o particularíssimo fenômeno dessa poesia. Talvez seu método
de análise, ajustado em excesso à periodização
histórica peninsular e de caráter exclusivamente histórico,
foi um obstáculo para definir com exatidão o processo seguido
pela poesia nas Ilhas Canárias. Valbuena falou, junto ao isolamento
e o sentimento do mar, de cosmopolitismo e intimidade
Se observas bem,
o que Valbuena propõe, embora não o diga de forma explícita,
é o caráter duplo dessa escritura: uma poesia que, para ser,
necessita enraizar-se em si própria (isolamento, intimidade), porém
entendido como prolongamento ou transitividade naquilo que, como contrário
complementar, necessita para completar-se (cosmopolitismo, sentimento do
mar). Por isto, parece-me mais certeiro o critério da professora
María Rosa Alonso que assinala a tensão entre um impulso
centrípeto e outro centrífugo, que vem a ser o mesmo, porém
sublinhando o sentido dialógico e dramático da relação
entre ambos extremos, o que explica como a poesia das Ilhas Canárias,
desde seu começo, na fronteira entre renascimento e barroco, tem
sempre o caráter de algo inacabado que busca completar-se no inefável
ou invisível, em seu prolongamento até o vazio e na habitação
desse espaço inquietante ou sugestivo. Não tende à
confirmação de algo mas sim à preocupação
pelo ambíguo ou possível. Sempre se explicou (e se explicou
mal) o princípio histórico desta poesia em relação
estreita com os grandes ciclos da poesia pre-renascentista espanhola. Porém
um poeta como Bartolomé Cairasco (1538-1610) não é,
como se diz, um aventureiro do esdrúxulo, mas sim o primeiro intérprete
como sor Juana Inés de la Cruz, na tradição americana
do sentido duplo da diferença insular: descendente de nizardos
instalados em Canárias, sua identidade dupla não somente
lhe permitirá compreender o sentido daquela bipolaridade, mas também
encontrar a linguagem, e os temas precisos que haverão de explicá-la
para acabar lhe dando carta de natureza poética. Seu barroco não
é nem o culteranismo gongórico nem o conceitualismo; é
outra coisa, porque atende a outra realidade. Sua tradução
da Jerusalem liberata é algo mais que uma tradução,
uma explicação de sua identidade nesse contraste, que é
reflexo, com o outro rosto de sua própria identidade. E seu livro
Templo
militante, galeria de rostos que operam em idêntico sentido.
Esse título, além do mais, remete-nos a um espaço
fechado (e sagrado) onde produzir-se-á a revelação
da origem, e a consciência testemunhal que anima a visão que
o poeta dá dessa revelação.
Sua mesma proposta a encontramos, e com paralela intenção,
nos ilustrados insulares (Viera e Clavijo ou Clavijo e Fajardo ou o visconde
de Buen Paso), habitantes do debate europeu do século XVIII, onde
se reconhecem muito melhor que na reduzida polêmica entre castiços
e afrancesados que fecha então o caminho à modernidade espanhola.
Costuma-se chamar o visconde de Buen Paso de plagiário, porque seu
"Soneto ao Teide" vinha a repetir (reflexo no qual reconhece seu próprio
imaginário) o "Soneto ao Tejo", do português Francisco Rodrigues
Lobo. E o mesmo se dá com os modernistas e pós-modernistas
a quem antes me referi. E através deles chegaríamos aos surrealistas
(ou melhor, vanguardistas) que, de 1928 (surgimento da revista La rosa
do los vientos) até 1936 (começo da guerra civil e dispersão
do grupo de Gaceta de arte), estabeleceram-se novamente, embora
com um sentido mais polêmico e agressivo e arriscado, nessa mesma
bipolaridade que os converte em fenômeno singularíssimo da
literatura espanhola contemporânea.
Tuas leituras apontam um grande momento da cultura canária
centrado na presença indiscutível do surrealismo dos anos
30, dos escritores reunidos em torno da revista Gaceta de arte
com seus 32 números publicados, de 1932 a 1936, é indiscutível
tratar-se de uma das mais importantes revistas dedicadas exclusivamente
ao surrealismo em todo o mundo , destacadamente Eduardo Westerdhal, Pérez
Minik e García Cabrera. Contudo, são freqüentes ainda
as negações de existência de surrealismo na Espanha,
da mesma forma que no Brasil. Os argumentos, em ambas ladeiras, são
os mesmos: a não utilização da escritura automática
e a falta de uma formação grupal. É evidente a debilidade
de tais argumentos. Meu interesse refere-se ao motivo real de tão
obstinada negação, verdadeiramente uma obsessão de
certa facção da cultura de nossos países.
Seguindo com meu raciocínio anterior, satisfaria tua curiosidade
neste aspecto. Estou completamente de acordo com o que dizes (sei que o
estamos em muitas coisas). Como dizer que o surrealismo, para ser, deve
ser escritura automática ou consciência de grupo? Tudo o que
seja dever, imposição, é assunto alheio ao verdadeiro
surrealismo. Acontece isto sim que o surrealismo introduz tal grau
de violência no pensamento e na escritura, tal dispersão no
conhecimento e tanto risco na visão da realidade e em sua expressão
artística ou literária (estou pensando agora, por exemplo,
no cinema de Luis Buñuel, que obrigou os escritores de Gaceta
de arte a viver sua anedota mais "surrealista"), que a literatura espanhola
em paralela reação àquela havida ante a inauguração
modernista manifestou um temor e um retraimento que os poetas da geração
de 27 avalizariam imediatamente com sua reverência aos clássicos
e seu respeito pela tradição. Contra isto, a facção
surrealista de Tenerife apostaria pela aventura do inconsciente e pelo
risco da revelação nascida dessa aposta. A poesia surrealista
das Ilhas Canárias (López Torres ou García Cabrera,
Agustín Espinosa ou Gutiérrez Albelo) foi uma manifestação
fugaz no tempo, certo; porém não podia instalar-se como fórmula,
gênero ou movimento, pois seu espírito surrealista o impedia;
se a isto somamos que a repressão com que se inicia a guerra civil
acabou precipitadamente com o vigor revolucionário de seus protagonistas,
tudo fica claro. Resistente foi, e graças a essa resistência
iluminou o caráter inconcluso e duplo de uma diferença indiscutível.
Juan Manuel Trujillo, fundador de La rosa de los vientos e polemista
com Eduardo Westerdhal, afirmaria (e isto em 1934) que "as ilhas seguem
buscando-se, buscando autor. Querem ter consciência de si mesmas
[
] porém sobretudo buscam os poetas. Buscam os poetas desencantados
com os literatos. Somente um poeta poderá fazer o milagre. Melhor
dizendo, dizendo exatamente: somente em um poeta poderão fazer as
ilhas esse milagre." Não é este o mesmo poeta que reclamava,
para a fundação de sua modernidade, o português Fernando
Pessoa?
Uma questão a mais em torno do surrealismo: a afirmação
de Vittorio Bodini de que Juan Larrea teria sido "o pai desconhecido do
surrealismo espanhol". Em tal sentido, como poderíamos situar a
importância de nomes tais como Agustín Espinosa (o "caçador
de metáforas") e José María Hinojosa?
Tens aí um exemplo do que te dizia. Por que Juan Larrea deixa
a sombra protetora da geração de 27 para instalar-se em Paris
e escrever em francês? Porque a iluminação criacionista
que lhe há transmitido Vicente Huidobro será, para o escritor
espanhol, princípio de uma aventura sem retorno. O risco de uma
língua poética que supere as formas obrigadas de sua língua
materna. A afirmação de Bodini é muito certeira. Porém
eu diria mais: Larrea foi esse "pai" do surrealismo espanhol. Agustín
Espinosa é um caso similar. Mesmo que tenha feito alguma incursão
na poesia propriamente dita, sua língua é a prosa à
qual converte em forma da poesia, contradizendo seu sentido natural. Crimen,
sua obra máxima (de 1934), é um romance? Como romance tem
sido difundida; sua leitura, no entanto, convence-nos do contrário:
é a poesia que se derrama além de seu limite extremo. Disse
José Bergamín que a poesia começa justamente onde
acaba o romance. Porém o caso é que Espinosa continua essa
escritura peculiar no terreno do ensaio e da crítica: "Media hora
jugando a los dados" é presumivelmente uma conferência
sobre a obra do Pintor autodidata grancanário Jorge Oramas; a leitura
deste texto singular nos precipita no abismo da sugestão poética.
Uma vez mais o barroco: sua paixão prodigiosa e essa erotização
da palavra que tem defendido, a sedução da escritura, seu
corpo a um só tempo revelação e degustação.
O sentido de ambigüidade e síntese que tomou o barroco na poesia
hispano-americana. As relações possíveis entre uma
lógica conceitual e a vertiginosa lucidez. Até que ponto
teu livro El barco de la luna busca uma releitura do barroco na
escritura poética hispano-americana?
Para ser sincero, não o havia pensado assim. Porém não
é estranho: nunca o projeto de um livro e de um livro tão
aventurado como este corresponde ao resultado final. Não o havia
proposto dessa forma, insisto. Ainda que, pelo que me dizes, algo disso
nele exista. Seu ponto de partida é a inauguração
barroca de sor Juana Inés de la Cruz, e como seu sonho augural prolifera
na larga trama que as poetas hispano-americanas vão tecendo sucessivamente,
com uma voz que se multiplica, e diversifica, mas que permanece fiel àquele
princípio divergente que, não somente entre as mulheres,
desenvolve-se como linha poética lateral que, por sua arriscada
condição, observa-se sempre como alheia (ou paralela) à
leitura, tenazmente histórica e viciosamente política, da
poesia hispano-americana. Erotismo e corpo, porém não no
sentido anedótico que se diz habitualmente, mas sim como penetração
e fecundação do corpo da realidade com o impulso seminal
de uma palavra que também, para obter essa energia, deve ser fecundada
reciprocamente no mesmo ato criador. Meu livro quer ser como sempre,
em meu caso uma leitura muito pessoal e, por isto, uma proposta de debate;
o que oferece é a imagem (já sei que às escritoras
militantes o termo lhes repugna, mas é assim) escura, lunar, movida
pelo impulso daquele sonho intelectual (nunca alienação)
que sor Juana experimentou como drama de sua outridade, que resultou ser
a outridade hispano-americana. Não quis fazer uma leitura que ceda
ante critérios femininos; leio, a partir de minha posição
masculina, a diferença proposta pela visão da mulher. E assim
cheguei à conclusão de que, sem essa chave feminina, nada
se explicará do todo na escritura poética hispano-americana.
Apontou José Ángel Valente que "a relação
entre eros e mística foi obscurecida em nossa tradição
por óbvios condicionamentos culturais. Tanto a partir de um monismo
espiritualista como de um monismo materialista reagente, experiência
erótica e experiência mística foram abusiva e parcialmente
interpretadas." Como observar o delineamento de Valente no âmbito
da poesia hispano-americana? Até que ponto a presença das
mulheres penso em Alejandra Pizarnik, Julia de Burgos, Olga Orozco, Blanca
Varela, Circe Maia, Marosa di Giorgio, entre tantas outras há
influído na subversão destes condicionamentos?
Vês? Citas José Ángel Valente (a quem tanto admiro
e a quem leio sempre com tanto interesse), e vemos que suas palavras nos
remetem ao mesmo temor que antes dizíamos provocara o surrealismo.
Porque a experiência mística (certamente, a verdadeira ruptura
com a ordem clássica, e não o barroco como nos dizem as histórias
da poesia espanhola), como a experiência erótica, nada são
sem o abandono e a entrega a essa vertigem conceitual e passional ante
o desconhecido. Entrega atrevida e assumindo todas as conseqüências.
Não entendo de outra maneira a experiência da poesia. E por
isso a representa melhor que ninguém a mulher. Ela não se
encontra condicionada por nenhum dos incontáveis interesses que
movem a escritura dos protagonistas masculinos de nossa poesia. Eles pretendem
ocupar, e manter, um lugar central na história. Por isso, atuam
a partir da prudência e do cálculo. Elas, da margem, não
querem suplantá-los no centro, mas sim propor sua diferença
como pólo excêntrico de um debate. Aquelas escritoras que
negam a diferença, somente imitam a cautela e a dependência
de seus pares masculinos, porém não aportam a singularidade,
evidente e necessária, que as caracteriza.
Uma proposta de Borges fala do Diabo como responsável pelo
batismo de todas as coisas no mundo, dado que vincula o nascimento a seu
lado escuro, proscrito, transgressor, e nos conduz a Lilith: "A palavra,
conseqüentemente, leva consigo a magia violadora de Lilith e, para
ser calada, terá que sofrer um esvaziamento ritual" (Teresa Cristófani
Barreto: Letras sobre o espelho. Sor Juana Inés de la Cruz).
Há uma passagem em teu El barco de la luna em que falas de
sor Juana, onde apontas como "discutível a velha posição
crítica de um arremedo gongórico por parte da poeta mexicana".
Em seu silêncio solitário, nomeou muitas coisas sor Juana.
A visão insustentável da crítica acerca desta notável
mulher, acaso não a explica o inaceitável que seja justo
uma mulher quem inaugure e ilumine, com sua experiência verbal, o
imaginário poético do continente americano?
Melhor do que eu, aqui responderia Lezama Lima, a partir de sua sabedoria
tão abundante quanto sua humanidade e, como sua palavra, "multifragmentada
pelo incessante desdobramento da respiração subdividida de
um asmático", como dissera o poeta Eugenio Padorno. Porque foi Lezama,
gongórico professo e confesso, quem advertiu a carência da
iluminação culterana daquele cordobês agro e insociável.
Faltava em sua escritura, precisamente, o risco do obscuro, o convencimento
poético de que somente no sonho está a verdadeira vida. E
essa aventura não se podia cumpri-la com o reconhecimento afirmativo
da realidade que ele faz, por mais desmedido que fosse em sua modelação
imaginativa, mas sim habitando seu revés, seu outro lado. Sor Juana
Inés de la Cruz lhe levava essa vantagem: ela habitava, e falava
a partir dele, esse outro lado, a partir do duplo onde se havia projetado
o espanhol sem entendê-lo como complementar necessário; a
escritora mexicana viu, além do mais, como essa habitação
e essa palavra suas conformavam-lhe a existência, mais do que sua
própria biografia ou sua mais próxima circunstância
histórica. Mulher ou monja? Sua eleição, sem dúvida,
a poesia. A ela não podia chegar sendo mulher; tampouco solucionava
seu dilema aceitar o hábito religioso. Sua voz revela-se então
como a palavra original desse ser que somente se cumpre e se reconhece
na experiência poética. E revela-nos, além do mais,
a outridade onde toma origem o imaginário poético americano,
porque o era também a do ser duplo que a tal experiência entrega-se
para afirmar sua identidade na incerteza. Naturalmente, já não
houve trégua depois dela, nem regressão: o sonho proliferou.
E não como tema ou recurso literário, como espaço
imprescindível para o ser e a palavra americanos. Porém habitar
o sonho é aceitar o abismo que como dizes, recordando Borges
é "o lado escuro, proscrito, transgressor". A mulher é o
sujeito melhor disposto para aceitar esse desafio que é um risco
definitivo: sua radical marginalidade converte-a no medium idôneo
que nos conecta com esse espaço e esse corpo do sagrado, onde cumprir
o verdadeiro debate da origem. Ela, a depositária da palavra.
Em uma entrevista com Gerardo Deniz, disse-me o poeta mexicano:
"embora renunciando fazer julgamentos literários, estou convencido
de que, sem seu comunismo, nem Vallejo nem Neruda seriam tão apreciados".
Neste teu mesmo livro, falas que Vallejo foi "seqüestrado por uma
leitura utilitária, sistematicamente equivocada".
Gerardo Deniz, poeta certamente a quem muito li e cuja escritura
me parece necessitada de uma reivindicação imprescindível,
põe o dedo na ferida, e diz a verdade quando sublinha essa intromissão
da política (da disciplina ideológica, melhor) na valoração
de Vallejo e de Neruda. Diria ainda mais: arriscar-me-ia a afirmar que
a valoração que se tem feito da moderna poesia em língua
espanhola, e sua rotineira ordenação histórica, estão
construída quase exclusivamente por (e sobre) essa infiltração
política. Deniz insiste: "sem seu comunismo, nem Vallejo nem Neruda
seriam tão apreciados". Teríamos que matizar. O que se nos
tem dito que seja Vallejo ou que seja Neruda, à parte de um maior
ou menor apreço crítico, não resulta ser o que são
de verdade nem um nem outro. Por isto, eu me referia à recepção
de Vallejo nos termos que citas: é um escritor seqüestrado.
Convinha que fosse assim, e que sua paixão crítica ou seu
dilaceramento terroso e carnal que fendem sua escritura que é seu
corpo, e fazem-na saltar por cima de convenções e circunstâncias
literárias, não fosse assumida senão no nível
mais tosco e imediato de significação, que é o utilitarismo
ideológico. E não é uma opinião minha, que
sou afinal de contas um forasteiro. Observa o que vallejianos ilustres
como Xavier Abril ou Américo Ferrari mostram através de suas
melhores aproximações críticas. E o mesmo ocorre com
Neruda. Que Neruda conheci quando comecei a aventurar-me por sua obra,
nos primeiros anos 60? O que críticos e historiadores haviam se
empenhado em oferecer desde a ladeira única e excludente de sua
poesia impura, dessa escritura pedestre e confirmadora que acabaria cerceando
o vôo iluminante e a energia indubitável de sua escritura
anterior. Logo compreendi o subterfúgio, e pude situar-me frente
à sua obra e ver que o Neruda dos anos 30, em torno de Residencia
en la tierra, vertiginoso e revelador, apagou-se em seu empenho de
assumir a impureza como ditado único para sua escritura. Este desvio
voluntário (eu diria que obrigatório, desde a coerência
ideológica que aceita, a partir de então, sua poesia) fechar-lhe-ia
todo acesso ao espaço renovador (e verdadeiramente poético)
que, nesse mesmo trecho cronológico, abriram e habitaram Lezama
e Westphalen e Gorostiza (e não menos Moro, Martín Adán
ou Girondo), para configurar essa vanguarda outra que é a que Octavio
Paz empenha-se em identificar com o período do segundo pós-guerra,
centrado na experiência poética que ele próprio protagoniza.
Este é um tema que deve ser revisado com atenção,
e que me preocupa de modo especial: há pouco participei de um seminário
sobre isto, na Brigham Young University (Utah, USA), e espero que aquelas
notas e reflexões derivem em um ensaio que me iludo de que o escreverei.
Retornemos a Hölderlin e sua inquietude maior: para que poetas?
Giambattista Vico postulou um ciclo de três eras no âmbito
da história da humanidade Teocrática, Aristocrática
e Democrática , culminadas por uma era de caos, de onde ressurgem
as demais e tornam a repetir-se incessantemente. Ernst Jünger, por
sua vez, recorda que "cada um dos séculos possui sua forma própria
de ataque o século XVIII, a subordinação, o XIX,
a proletarização, o XX, a numerificação", concluindo
que "no próximo a pessoa singular haverá de decidir a entregar-se
ou não completamente ao titanismo, uma vez que dele participar é
algo que não somente entranha perigos como também produz
fascinação". Por último, segundo o crítico
Harold Bloom, vivemos já na "era do caos". E a mesma inquietude
perdura: para que poetas?
Não temos que ir até Vico. As eras imaginárias
de nosso entranhável Lezama Lima fundam-se nesta mesma idéia
e a explicam. E, além do mais, sem a simplificação
exigida pelos media, que leva Harold Bloom (e seus editores) a reduzir
a anedota e portanto a best-seller o que é categoria e portanto
necessita de uma reflexão mais complexa. O velho Jünger, por
sábio e por velho, intui que nos aguarda um momento histórico
eu diria que esperançador no qual deverá desembocar,
este gregarismo que nos é imposto hoje em dia, por extinção
natural, na fronteira da decisão pessoal e transitiva, projetada
para uma era poética. Demonstrar-se-á que o romance é
uma forma literária sem futuro (já o estamos vendo: não
é vítima deste tempo utilitário e vulgar, por mais
que os romancistas professos considerem-se os grandes triunfadores da literatura
de hoje?), que seu esgotamento e volto às palavras de Bergamín
fará com que resplandeça a verdadeira e original expressão
criativa da linguagem, somente produzida se, com ela, se entrega a vida:
consumação e consumição que deve ser a poesia.
Para que poetas? Diria, isto sim, o contrário: para que romancistas?
A memória verdadeira, a que nos identifica, não pode ser
esse artifício aprendido para repetir evidências, reside em
um encontro e reconhecimento vertiginosos com a origem. Claro, isto impõe
renúncias, e que as máscaras caiam e que encaremos, com todas
as suas conseqüências, nossa verdadeira identidade. A de cada
um. O filósofo espanhol Eugenio Trías conclui La edad
del espíritu, um livro interessantíssimo e também
revelador em sua complexidade, com uma reflexão à qual valerá
à pena sempre retornar, e não somente do ponto de vista literário.
"Seria preciso imaginar escreve um verdadeiro encontro [
] da razão
ilustrada referida à transformação deste mundo e da
razão poética capaz de reencantar poeticamente o mundo. Já
que somente em forma poética (dichterisch) habita o homem,
testemunho do sagrado, esta terra que constitui seu âmbito de expansão
e de desdobramento. Porém esta forma poética não deveria
encontrar-se em completa dissonância com as exigências da vida
que a razão ilustrada satisfaz."
JORGE RODRÍGUEZ PADRÓN (Islas Canarias, 1943)
é crítico literário e estudioso da poesia hispano-americana.
Autor de Tentativas borgeanas (1989), Del ocio sagrado (1991),
El
pájaro parado (1992), El sueño proliferante y otros
ensayos (1993) e Antología de poesía hispanoamericana
1915-1980 (1984). É um dos raros críticos espanhóis
que discutem com seriedade as relações entre poesia espanhola
e hispano-americana. A entrevista aqui reproduzida é parte de um
largo diálogo entre Floriano Martins e Rodríguez Padrón,
e integra o livro Puerta lateral, ainda inédito.
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JP
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