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Atualizado em: 12.01.2000

 
Jorge Rodríguez Padrón


A INCONTESTÁVEL PRESENÇA

Diálogo com Jorge Rodríguez Padrón

Floriano Martins



 

– Se falamos de poesia espanhola, é conhecida a discussão em torno da palavra modernismo, que pode significar ao mesmo tempo uma escola literária e a definição de uma época. É verdade que o modernismo espanhol (da mesma forma que o hispano-americano) apresenta traços distintos do modernismo dos demais países europeus (da mesma forma que o modernismo brasileiro). Antes de tudo, tua opinião acerca do sentido exato do modernismo espanhol. Depois, suas relações com o modernismo nas Ilhas Canárias.

– Não haveria motivo de discussão a este respeito se não se houvesse utilizado essa mesma denominação (modernismo) para movimentos literários que, na realidade, respondem a propostas estéticas diversas, ainda que coincidam no fato de afrontarem esse período histórico, também necessitado de uma mais justa denominação e que, para nos entendermos, chamamos de modernidade. Vês? Tu mesmo aludes agora, por exemplo, ao modernismo espanhol e ao modernismo europeu (que teve muito pouco de literário) e ao modernismo brasileiro… Poderíamos inclusive complicar um pouco mais a questão somando a este debate o modernism norte-americano. Prefiro portanto centrar-me no modernismo em língua espanhola que, com propriedade, encheria o compartimento vazio do verdadeiro romantismo que não teve nossa literatura. Verdadeiro romantismo porque implica ruptura da imaginação e transitividade conseqüente até esse lugar reclamado com urgência por G. A. Bécquer como o espaço "onde a vertigem / com a razão me arranque a memória". E se Bécquer o solicitava como desejo, sua configuração corporal, sua carnadura em imagem, completa-a o modernismo desde a América Hispânica. Princípio de uma experiência poética que é também histórica: a América Hispânica dá à luz, com o modernismo, a imagem de seu futuro enquanto que único espaço para estabelecer sua identidade possível. Por isto será começo contemporâneo; duplo com o qual lhe era imprescindível dialogar – para entender-se a si mesma –, a identidade espanhola. Deu-se, no entanto, que a situação histórica espanhola, nesse momento, não era augural – como se passava na América –, mas sim final: a resposta dos escritores peninsulares viu-se assim forçosamente condicionada por uma reflexão sobre seu passado, que conclui em vontade regeneradora (isto é, uma volta ao princípio e uma revisão de todo o processo histórico nacional: memória e razão requeridas para explicar o explicável apenas poeticamente). Essa foi a contradição dos integrantes da geração do ‘98. E sua evidente limitação. Mais ainda: neles atuou um grande temor diante da liberdade imaginativa – formal e rítmica – que o modernismo propunha; e desejosos de dar com o espírito ou essência do espanhol, viram-se deslumbrados, mas também assustados, diante do atrevimento modernista. Insensíveis à sensualidade e à paixão amorosa, seriam escritores negados ao amor (e ao erotismo), pois entendiam a mulher somente como hospitalidade, como cobrimento. E por esse mesmo caminho se explica sua difícil relação com o outro (para Machado, "o outro que sempre vai comigo"; para Unamuno, a consciência trágica do ser ímpar). Compreender-se-á, pois, que os escritores peninsulares que se chamaram modernistas foram apenas imitadores de uma estética; não viveram a experiência existencial que haveria de obrigar-lhes a subverter a ordem convencional da expressão literária.

Os escritores do final do século nas Ilhas Canárias, por sua parte, encontrar-se-ão diante da evidência de sua diferença quando – como resultado do desastre colonial de 1898 – este arquipélago atlântico converteu-se em território fronteiriço que deve enfrentar o princípio de sua caminhada histórica no espaço da modernidade, onde seu reconhecimento aguarda entre a incerteza do possível. Ilhas ao fim e ao cabo, sua condição dupla reflete-se no debate permanente entre a segurança de seu centro e a projeção excêntrica, centrífuga, de sua identidade, somente completa quando se assume a manqueira que obriga a esse trânsito ao desconhecido. As Ilhas Canárias coincidem assim com a América Hispânica neste princípio, pois – além do mais – esse lugar de confluência e mestiçagem, que foi o arquipélago desde finais do século XVI, vive em permanente relação com o mundo. O cosmopolitismo de sua atividade comercial e portuária, que dispara ao final do século XIX com a presença singular dos colonos ingleses (homens de negócios, mas também exilados que esperam curar sua enfermidade irreversível), facilita aquele reconhecimento por meio do reflexo (e diálogo com) no outro. E tal experiência, ajudada por sua irreverência lingüística dialetal, baseada no uso de um ritmo (acento) diferente e de uma riquíssima capacidade expressiva da fala (gestualidade e silêncio como elementos básicos de significado), fará com que a escritura literária finissecular nas Ilhas Canárias constitua-se uma facção singular do modernismo hispânico, movida por idêntico sentido que impulsionara esse movimento na América Hispânica, mas não sem entender-se como subsidiária daquela inauguração. Desde um precursor como Domingo Rivera (1852-1929) até um pós-modernista (e algo mais) como é Rafael Romero, Alonso Quesada (1886-1925), passando pelo escritor paradigmático que foi Tomás Morales (1884-1921), ausentes quase sempre do debate histórico e crítico do modernismo espanhol, mesmo que Federico de Onís, Díez Canedo o Valbuena Prat tenham chamado a atenção sobre eles.

– Falando da aventura poética das Ilhas Canárias, recorda Valbuena Prat suas duas características centrais: o isolamento e o sentimento do mar. Por sua vez nos fala Pérez Minik de "uns temas singulares autônomos", a adaptação de umas características da lírica européia. No cenário da grande variedade cultural hispânica, qual é o contributo estético que melhor define a poesia canária?

– Já insinuei algo disto no que te dizia antes. Retomo o termo facção, do próprio Pérez Minik, que o utilizou para historiar e refletir sobre seu próprio movimento geracional, o da Gaceta de arte. Penso que facção é a forma mais precisa para determinar toda a contribuição peculiar (eu diria a diferença) da poesia escrita nas Ilhas. Mencionas também o professor Valbuena Prat; com efeito, foi ele o primeiro a advertir sobre o particularíssimo fenômeno dessa poesia. Talvez seu método de análise, ajustado em excesso à periodização histórica peninsular e de caráter exclusivamente histórico, foi um obstáculo para definir com exatidão o processo seguido pela poesia nas Ilhas Canárias. Valbuena falou, junto ao isolamento e o sentimento do mar, de cosmopolitismo e intimidade… Se observas bem, o que Valbuena propõe, embora não o diga de forma explícita, é o caráter duplo dessa escritura: uma poesia que, para ser, necessita enraizar-se em si própria (isolamento, intimidade), porém entendido como prolongamento ou transitividade naquilo que, como contrário complementar, necessita para completar-se (cosmopolitismo, sentimento do mar). Por isto, parece-me mais certeiro o critério da professora María Rosa Alonso que assinala a tensão entre um impulso centrípeto e outro centrífugo, que vem a ser o mesmo, porém sublinhando o sentido dialógico e dramático da relação entre ambos extremos, o que explica como a poesia das Ilhas Canárias, desde seu começo, na fronteira entre renascimento e barroco, tem sempre o caráter de algo inacabado que busca completar-se no inefável ou invisível, em seu prolongamento até o vazio e na habitação desse espaço inquietante ou sugestivo. Não tende à confirmação de algo mas sim à preocupação pelo ambíguo ou possível. Sempre se explicou (e se explicou mal) o princípio histórico desta poesia em relação estreita com os grandes ciclos da poesia pre-renascentista espanhola. Porém um poeta como Bartolomé Cairasco (1538-1610) não é, como se diz, um aventureiro do esdrúxulo, mas sim o primeiro intérprete – como sor Juana Inés de la Cruz, na tradição americana – do sentido duplo da diferença insular: descendente de nizardos instalados em Canárias, sua identidade dupla não somente lhe permitirá compreender o sentido daquela bipolaridade, mas também encontrar a linguagem, e os temas precisos que haverão de explicá-la para acabar lhe dando carta de natureza poética. Seu barroco não é nem o culteranismo gongórico nem o conceitualismo; é outra coisa, porque atende a outra realidade. Sua tradução da Jerusalem liberata é algo mais que uma tradução, uma explicação de sua identidade nesse contraste, que é reflexo, com o outro rosto de sua própria identidade. E seu livro Templo militante, galeria de rostos que operam em idêntico sentido. Esse título, além do mais, remete-nos a um espaço fechado (e sagrado) onde produzir-se-á a revelação da origem, e a consciência testemunhal que anima a visão que o poeta dá dessa revelação.

Sua mesma proposta a encontramos, e com paralela intenção, nos ilustrados insulares (Viera e Clavijo ou Clavijo e Fajardo ou o visconde de Buen Paso), habitantes do debate europeu do século XVIII, onde se reconhecem muito melhor que na reduzida polêmica entre castiços e afrancesados que fecha então o caminho à modernidade espanhola. Costuma-se chamar o visconde de Buen Paso de plagiário, porque seu "Soneto ao Teide" vinha a repetir (reflexo no qual reconhece seu próprio imaginário) o "Soneto ao Tejo", do português Francisco Rodrigues Lobo. E o mesmo se dá com os modernistas e pós-modernistas a quem antes me referi. E através deles chegaríamos aos surrealistas (ou melhor, vanguardistas) que, de 1928 (surgimento da revista La rosa do los vientos) até 1936 (começo da guerra civil e dispersão do grupo de Gaceta de arte), estabeleceram-se novamente, embora com um sentido mais polêmico e agressivo e arriscado, nessa mesma bipolaridade que os converte em fenômeno singularíssimo da literatura espanhola contemporânea.

– Tuas leituras apontam um grande momento da cultura canária centrado na presença indiscutível do surrealismo dos anos 30, dos escritores reunidos em torno da revista Gaceta de arte – com seus 32 números publicados, de 1932 a 1936, é indiscutível tratar-se de uma das mais importantes revistas dedicadas exclusivamente ao surrealismo em todo o mundo –, destacadamente Eduardo Westerdhal, Pérez Minik e García Cabrera. Contudo, são freqüentes ainda as negações de existência de surrealismo na Espanha, da mesma forma que no Brasil. Os argumentos, em ambas ladeiras, são os mesmos: a não utilização da escritura automática e a falta de uma formação grupal. É evidente a debilidade de tais argumentos. Meu interesse refere-se ao motivo real de tão obstinada negação, verdadeiramente uma obsessão de certa facção da cultura de nossos países.

– Seguindo com meu raciocínio anterior, satisfaria tua curiosidade neste aspecto. Estou completamente de acordo com o que dizes (sei que o estamos em muitas coisas). Como dizer que o surrealismo, para ser, deve ser escritura automática ou consciência de grupo? Tudo o que seja dever, imposição, é assunto alheio ao verdadeiro surrealismo. Acontece – isto sim – que o surrealismo introduz tal grau de violência no pensamento e na escritura, tal dispersão no conhecimento e tanto risco na visão da realidade e em sua expressão artística ou literária (estou pensando agora, por exemplo, no cinema de Luis Buñuel, que obrigou os escritores de Gaceta de arte a viver sua anedota mais "surrealista"), que a literatura espanhola – em paralela reação àquela havida ante a inauguração modernista – manifestou um temor e um retraimento que os poetas da geração de 27 avalizariam imediatamente com sua reverência aos clássicos e seu respeito pela tradição. Contra isto, a facção surrealista de Tenerife apostaria pela aventura do inconsciente e pelo risco da revelação nascida dessa aposta. A poesia surrealista das Ilhas Canárias (López Torres ou García Cabrera, Agustín Espinosa ou Gutiérrez Albelo) foi uma manifestação fugaz no tempo, certo; porém não podia instalar-se como fórmula, gênero ou movimento, pois seu espírito surrealista o impedia; se a isto somamos que a repressão com que se inicia a guerra civil acabou precipitadamente com o vigor revolucionário de seus protagonistas, tudo fica claro. Resistente foi, e graças a essa resistência iluminou o caráter inconcluso e duplo de uma diferença indiscutível. Juan Manuel Trujillo, fundador de La rosa de los vientos e polemista com Eduardo Westerdhal, afirmaria (e isto em 1934) que "as ilhas seguem buscando-se, buscando autor. Querem ter consciência de si mesmas […] porém sobretudo buscam os poetas. Buscam os poetas desencantados com os literatos. Somente um poeta poderá fazer o milagre. Melhor dizendo, dizendo exatamente: somente em um poeta poderão fazer as ilhas esse milagre." Não é este o mesmo poeta que reclamava, para a fundação de sua modernidade, o português Fernando Pessoa?

– Uma questão a mais em torno do surrealismo: a afirmação de Vittorio Bodini de que Juan Larrea teria sido "o pai desconhecido do surrealismo espanhol". Em tal sentido, como poderíamos situar a importância de nomes tais como Agustín Espinosa (o "caçador de metáforas") e José María Hinojosa?

– Tens aí um exemplo do que te dizia. Por que Juan Larrea deixa a sombra protetora da geração de 27 para instalar-se em Paris e escrever em francês? Porque a iluminação criacionista que lhe há transmitido Vicente Huidobro será, para o escritor espanhol, princípio de uma aventura sem retorno. O risco de uma língua poética que supere as formas obrigadas de sua língua materna. A afirmação de Bodini é muito certeira. Porém eu diria mais: Larrea foi esse "pai" do surrealismo espanhol. Agustín Espinosa é um caso similar. Mesmo que tenha feito alguma incursão na poesia propriamente dita, sua língua é a prosa à qual converte em forma da poesia, contradizendo seu sentido natural. Crimen, sua obra máxima (de 1934), é um romance? Como romance tem sido difundida; sua leitura, no entanto, convence-nos do contrário: é a poesia que se derrama além de seu limite extremo. Disse José Bergamín que a poesia começa justamente onde acaba o romance. Porém o caso é que Espinosa continua essa escritura peculiar no terreno do ensaio e da crítica: "Media hora jugando a los dados" é – presumivelmente – uma conferência sobre a obra do Pintor autodidata grancanário Jorge Oramas; a leitura deste texto singular nos precipita no abismo da sugestão poética.

– Uma vez mais o barroco: sua paixão prodigiosa e essa erotização da palavra que tem defendido, a sedução da escritura, seu corpo a um só tempo revelação e degustação. O sentido de ambigüidade e síntese que tomou o barroco na poesia hispano-americana. As relações possíveis entre uma lógica conceitual e a vertiginosa lucidez. Até que ponto teu livro El barco de la luna busca uma releitura do barroco na escritura poética hispano-americana?

– Para ser sincero, não o havia pensado assim. Porém não é estranho: nunca o projeto de um livro – e de um livro tão aventurado como este – corresponde ao resultado final. Não o havia proposto dessa forma, insisto. Ainda que, pelo que me dizes, algo disso nele exista. Seu ponto de partida é a inauguração barroca de sor Juana Inés de la Cruz, e como seu sonho augural prolifera na larga trama que as poetas hispano-americanas vão tecendo sucessivamente, com uma voz que se multiplica, e diversifica, mas que permanece fiel àquele princípio divergente que, não somente entre as mulheres, desenvolve-se como linha poética lateral que, por sua arriscada condição, observa-se sempre como alheia (ou paralela) à leitura, tenazmente histórica e viciosamente política, da poesia hispano-americana. Erotismo e corpo, porém não no sentido anedótico que se diz habitualmente, mas sim como penetração e fecundação do corpo da realidade com o impulso seminal de uma palavra que também, para obter essa energia, deve ser fecundada reciprocamente no mesmo ato criador. Meu livro quer ser – como sempre, em meu caso – uma leitura muito pessoal e, por isto, uma proposta de debate; o que oferece é a imagem (já sei que às escritoras militantes o termo lhes repugna, mas é assim) escura, lunar, movida pelo impulso daquele sonho intelectual (nunca alienação) que sor Juana experimentou como drama de sua outridade, que resultou ser a outridade hispano-americana. Não quis fazer uma leitura que ceda ante critérios femininos; leio, a partir de minha posição masculina, a diferença proposta pela visão da mulher. E assim cheguei à conclusão de que, sem essa chave feminina, nada se explicará do todo na escritura poética hispano-americana.

– Apontou José Ángel Valente que "a relação entre eros e mística foi obscurecida em nossa tradição por óbvios condicionamentos culturais. Tanto a partir de um monismo espiritualista como de um monismo materialista reagente, experiência erótica e experiência mística foram abusiva e parcialmente interpretadas." Como observar o delineamento de Valente no âmbito da poesia hispano-americana? Até que ponto a presença das mulheres – penso em Alejandra Pizarnik, Julia de Burgos, Olga Orozco, Blanca Varela, Circe Maia, Marosa di Giorgio, entre tantas outras – há influído na subversão destes condicionamentos?

– Vês? Citas José Ángel Valente (a quem tanto admiro e a quem leio sempre com tanto interesse), e vemos que suas palavras nos remetem ao mesmo temor que – antes dizíamos – provocara o surrealismo. Porque a experiência mística (certamente, a verdadeira ruptura com a ordem clássica, e não o barroco como nos dizem as histórias da poesia espanhola), como a experiência erótica, nada são sem o abandono e a entrega a essa vertigem conceitual e passional ante o desconhecido. Entrega atrevida e assumindo todas as conseqüências. Não entendo de outra maneira a experiência da poesia. E por isso a representa melhor que ninguém a mulher. Ela não se encontra condicionada por nenhum dos incontáveis interesses que movem a escritura dos protagonistas masculinos de nossa poesia. Eles pretendem ocupar, e manter, um lugar central na história. Por isso, atuam a partir da prudência e do cálculo. Elas, da margem, não querem suplantá-los no centro, mas sim propor sua diferença como pólo excêntrico de um debate. Aquelas escritoras que negam a diferença, somente imitam a cautela e a dependência de seus pares masculinos, porém não aportam a singularidade, evidente e necessária, que as caracteriza.

– Uma proposta de Borges fala do Diabo como responsável pelo batismo de todas as coisas no mundo, dado que vincula o nascimento a seu lado escuro, proscrito, transgressor, e nos conduz a Lilith: "A palavra, conseqüentemente, leva consigo a magia violadora de Lilith e, para ser calada, terá que sofrer um esvaziamento ritual" (Teresa Cristófani Barreto: Letras sobre o espelho. Sor Juana Inés de la Cruz). Há uma passagem em teu El barco de la luna em que falas de sor Juana, onde apontas como "discutível a velha posição crítica de um arremedo gongórico por parte da poeta mexicana". Em seu silêncio solitário, nomeou muitas coisas sor Juana. A visão insustentável da crítica acerca desta notável mulher, acaso não a explica o inaceitável que seja justo uma mulher quem inaugure e ilumine, com sua experiência verbal, o imaginário poético do continente americano?

– Melhor do que eu, aqui responderia Lezama Lima, a partir de sua sabedoria tão abundante quanto sua humanidade e, como sua palavra, "multifragmentada pelo incessante desdobramento da respiração subdividida de um asmático", como dissera o poeta Eugenio Padorno. Porque foi Lezama, gongórico professo e confesso, quem advertiu a carência da iluminação culterana daquele cordobês agro e insociável. Faltava em sua escritura, precisamente, o risco do obscuro, o convencimento poético de que somente no sonho está a verdadeira vida. E essa aventura não se podia cumpri-la com o reconhecimento afirmativo da realidade que ele faz, por mais desmedido que fosse em sua modelação imaginativa, mas sim habitando seu revés, seu outro lado. Sor Juana Inés de la Cruz lhe levava essa vantagem: ela habitava, e falava a partir dele, esse outro lado, a partir do duplo onde se havia projetado o espanhol sem entendê-lo como complementar necessário; a escritora mexicana viu, além do mais, como essa habitação e essa palavra suas conformavam-lhe a existência, mais do que sua própria biografia ou sua mais próxima circunstância histórica. Mulher ou monja? Sua eleição, sem dúvida, a poesia. A ela não podia chegar sendo mulher; tampouco solucionava seu dilema aceitar o hábito religioso. Sua voz revela-se então como a palavra original desse ser que somente se cumpre e se reconhece na experiência poética. E revela-nos, além do mais, a outridade onde toma origem o imaginário poético americano, porque o era também a do ser duplo que a tal experiência entrega-se para afirmar sua identidade na incerteza. Naturalmente, já não houve trégua depois dela, nem regressão: o sonho proliferou. E não como tema ou recurso literário, como espaço imprescindível para o ser e a palavra americanos. Porém habitar o sonho é aceitar o abismo que – como dizes, recordando Borges – é "o lado escuro, proscrito, transgressor". A mulher é o sujeito melhor disposto para aceitar esse desafio que é um risco definitivo: sua radical marginalidade converte-a no medium idôneo que nos conecta com esse espaço e esse corpo do sagrado, onde cumprir o verdadeiro debate da origem. Ela, a depositária da palavra.

– Em uma entrevista com Gerardo Deniz, disse-me o poeta mexicano: "embora renunciando fazer julgamentos literários, estou convencido de que, sem seu comunismo, nem Vallejo nem Neruda seriam tão apreciados". Neste teu mesmo livro, falas que Vallejo foi "seqüestrado por uma leitura utilitária, sistematicamente equivocada".

– Gerardo Deniz, poeta – certamente – a quem muito li e cuja escritura me parece necessitada de uma reivindicação imprescindível, põe o dedo na ferida, e diz a verdade quando sublinha essa intromissão da política (da disciplina ideológica, melhor) na valoração de Vallejo e de Neruda. Diria ainda mais: arriscar-me-ia a afirmar que a valoração que se tem feito da moderna poesia em língua espanhola, e sua rotineira ordenação histórica, estão construída quase exclusivamente por (e sobre) essa infiltração política. Deniz insiste: "sem seu comunismo, nem Vallejo nem Neruda seriam tão apreciados". Teríamos que matizar. O que se nos tem dito que seja Vallejo ou que seja Neruda, à parte de um maior ou menor apreço crítico, não resulta ser o que são de verdade nem um nem outro. Por isto, eu me referia à recepção de Vallejo nos termos que citas: é um escritor seqüestrado. Convinha que fosse assim, e que sua paixão crítica ou seu dilaceramento terroso e carnal que fendem sua escritura que é seu corpo, e fazem-na saltar por cima de convenções e circunstâncias literárias, não fosse assumida senão no nível mais tosco e imediato de significação, que é o utilitarismo ideológico. E não é uma opinião minha, que sou – afinal de contas – um forasteiro. Observa o que vallejianos ilustres como Xavier Abril ou Américo Ferrari mostram através de suas melhores aproximações críticas. E o mesmo ocorre com Neruda. Que Neruda conheci quando comecei a aventurar-me por sua obra, nos primeiros anos 60? O que críticos e historiadores haviam se empenhado em oferecer desde a ladeira única e excludente de sua poesia impura, dessa escritura pedestre e confirmadora que acabaria cerceando o vôo iluminante e a energia indubitável de sua escritura anterior. Logo compreendi o subterfúgio, e pude situar-me frente à sua obra e ver que o Neruda dos anos 30, em torno de Residencia en la tierra, vertiginoso e revelador, apagou-se em seu empenho de assumir a impureza como ditado único para sua escritura. Este desvio voluntário (eu diria que obrigatório, desde a coerência ideológica que aceita, a partir de então, sua poesia) fechar-lhe-ia todo acesso ao espaço renovador (e verdadeiramente poético) que, nesse mesmo trecho cronológico, abriram e habitaram Lezama e Westphalen e Gorostiza (e não menos Moro, Martín Adán ou Girondo), para configurar essa vanguarda outra que é a que Octavio Paz empenha-se em identificar com o período do segundo pós-guerra, centrado na experiência poética que ele próprio protagoniza. Este é um tema que deve ser revisado com atenção, e que me preocupa de modo especial: há pouco participei de um seminário sobre isto, na Brigham Young University (Utah, USA), e espero que aquelas notas e reflexões derivem em um ensaio que me iludo de que o escreverei.

– Retornemos a Hölderlin e sua inquietude maior: para que poetas? Giambattista Vico postulou um ciclo de três eras no âmbito da história da humanidade – Teocrática, Aristocrática e Democrática –, culminadas por uma era de caos, de onde ressurgem as demais e tornam a repetir-se incessantemente. Ernst Jünger, por sua vez, recorda que "cada um dos séculos possui sua forma própria de ataque – o século XVIII, a subordinação, o XIX, a proletarização, o XX, a numerificação", concluindo que "no próximo a pessoa singular haverá de decidir a entregar-se ou não completamente ao titanismo, uma vez que dele participar é algo que não somente entranha perigos como também produz fascinação". Por último, segundo o crítico Harold Bloom, vivemos já na "era do caos". E a mesma inquietude perdura: para que poetas?

– Não temos que ir até Vico. As eras imaginárias de nosso entranhável Lezama Lima fundam-se nesta mesma idéia e a explicam. E, além do mais, sem a simplificação exigida pelos media, que leva Harold Bloom (e seus editores) a reduzir a anedota – e portanto a best-seller – o que é categoria – e portanto necessita de uma reflexão mais complexa. O velho Jünger, por sábio e por velho, intui que nos aguarda um momento histórico – eu diria que esperançador – no qual deverá desembocar, este gregarismo que nos é imposto hoje em dia, por extinção natural, na fronteira da decisão pessoal e transitiva, projetada para uma era poética. Demonstrar-se-á que o romance é uma forma literária sem futuro (já o estamos vendo: não é vítima deste tempo utilitário e vulgar, por mais que os romancistas professos considerem-se os grandes triunfadores da literatura de hoje?), que seu esgotamento – e volto às palavras de Bergamín – fará com que resplandeça a verdadeira e original expressão criativa da linguagem, somente produzida se, com ela, se entrega a vida: consumação e consumição que deve ser a poesia. Para que poetas? Diria, isto sim, o contrário: para que romancistas? A memória verdadeira, a que nos identifica, não pode ser esse artifício aprendido para repetir evidências, reside em um encontro e reconhecimento vertiginosos com a origem. Claro, isto impõe renúncias, e que as máscaras caiam e que encaremos, com todas as suas conseqüências, nossa verdadeira identidade. A de cada um. O filósofo espanhol Eugenio Trías conclui La edad del espíritu, um livro interessantíssimo e também revelador em sua complexidade, com uma reflexão à qual valerá à pena sempre retornar, e não somente do ponto de vista literário. "Seria preciso imaginar – escreve – um verdadeiro encontro […] da razão ilustrada referida à transformação deste mundo e da razão poética capaz de reencantar poeticamente o mundo. Já que somente em forma poética (dichterisch) habita o homem, testemunho do sagrado, esta terra que constitui seu âmbito de expansão e de desdobramento. Porém esta forma poética não deveria encontrar-se em completa dissonância com as exigências da vida que a razão ilustrada satisfaz."
 




JORGE RODRÍGUEZ PADRÓN (Islas Canarias, 1943) é crítico literário e estudioso da poesia hispano-americana. Autor de Tentativas borgeanas (1989), Del ocio sagrado (1991), El pájaro parado (1992), El sueño proliferante y otros ensayos (1993) e Antología de poesía hispanoamericana 1915-1980 (1984). É um dos raros críticos espanhóis que discutem com seriedade as relações entre poesia espanhola e hispano-americana. A entrevista aqui reproduzida é parte de um largo diálogo entre Floriano Martins e Rodríguez Padrón, e integra o livro Puerta lateral, ainda inédito.



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