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Luís Antonio Cajazeira Ramos


Quer um livro?

in A Tarde
17.07.99
 

Henrique Wagner é um jovem poeta baiano, cheio de futuro. E é meu amigo. Há muitos meses, deixou comigo seus inéditos (toda a sua obra poética). Muitos poemas são bons, um é antológico: O Velho da Praça (não lembro bem o título). Há poucos meses, Henrique me fez uma visita. Viu a situação de penúria de meus livros, jogados por toda a casa, lembrou de sua própria penúria, e pediu uns livros, aqueles que eu não mais queria.

Ele vende livros, tem uma banca, uma lojinha, uma guia, sei lá o quê, nem onde, só sei que vende livros usados. E sempre precisa de livros, para ler e vender. E lê muito, talvez mais que eu. Dei-lhe mais de cem. O coitado não tem carro, meu prédio não tem elevador, perdi a conta das viagens que fez, carregado de livros da cintura ao queixo — seu suor é relíquia nos livros. Hoje, muita gente leu e lê livros amarelados pelo suor de Henrique Wagner.

Que alívio! Onde colocar livros que li — gostei ou não — e não mais lerei? Não sou bibliófilo, sou leitor. Minha mudança é uma única mala dentro do carro e nada mais. Nela, as roupas contingentes, uns CDs dos BBB e não mais que uma dúzia de livros de “meus” poetas. Leio todos, ou quase, os livros que compro ou ganho. E não os guardo, dôo-os.

Não costumo ficar com os de prosa, por melhores que sejam, e só retenho poetas que revisito. Acho que livros devem ser lidos, não? Adoro dar livros. Meu Fiat Breu foi quase toda a edição dada. Tantos parentes, colegas, amigos compraram e não leram, tantos ganharam e leram.

E o pobre do Henrique, não sabe em que confusão me meteu. Lá se foi o jovem livreiro, acompanhado do escudeiro Zeca de Magalhães, fazer um sebo itinerante, digam em que terreiro? No Instituto de Letras da Ufba. Levaram os ex-meus livros — e que celeuma provocaram. Estudantes indignados envolveram até a honra de minha mãe! Tudo porque eu teria vendido livros autografados por Ruy Espinheira Filho e outros menos queridos ou nem tanto. A dignidade da literatura baiana fora manchada indelevelmente, eu seria proscrito do meio, per omnia sæcula sæculorum.

Choveram laudas e laudas de e-mails para Ruy; um nervosíssimo professor quase agride Carlos Ribeiro, que ousava me defender; um circunspecto senhor acadêmico propunha um boicote definitivo à minha carreira, ai de mim. E Ruy, na certeza de que sua Obra Reunida iria na minha mala solitária, nem tchu pra ninguém. Mesmo porque, ele sabe que eu faço o que quiser do meu patrimônio.

Senhores, o crime que vocês me exigem, que eu arrancasse a folha da dedicatória do livro antes de dá-lo ou vendê-lo, é muito pesado. Imaginem Ruy, meados do século XXI, poeta estudado nos livros didáticos, seu livro de página arrancada, exatamente aquela que leva sua assinatura! Vocês, além de loucos, são uns hereges.

Em lugar de ocupar-se da vida alheia, façam como Soares Feitosa, que escreveu um romance sobre essa pendenga. Criou ele um personagem que lê, lê, lê, lê muito, lê compulsivamente, depois coloca os livros em caixas de papelão, na porta de casa, com um pequeno cartaz: “DÃO-SE LIVROS”. E o povo pega os livros, e lê os livros, e todos lêem os livros, e a cidade passa a ler livros, e todos passam a dar livros, e o livro circula, e as bibliotecas particulares passam a circular nas mãos de todos, e as cidades todas lêem livros, e o mundo lê livros, é a revolução cultural pela leitura.

Só não sei como termina o romance, que Feitosa guarda a sete chaves, antes de colocar na porta de casa, sob tabuleta.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Roberto Gobatto